Celso Lungaretti: 'Prescrição da pena de Luigi Bergamin abre precedente que poderá fazer cessar a vendetta contra Cesare Battisti'
Celso Lungaretti
celso lungaretti
Uma esperança para Cesare Battisti: a justiça italiana afinal se lembrou de que penas prescrevem. Havia esquecido
A Agência de notícias italiana Ansa informa que, nesta 3ª feira (11), o Tribunal de Justiça de Milão reconheceu a prescrição da pena de 16 anos e 11 meses de prisão pendente contra Luigi Bergamin, fundador do grupo Proletários Armados pelo Comunismo, ao qual pertenceu o escritor Cesare Battisti.
A condenação prescrevera no último dia 8. Bergamin, que estava foragido na França e havia se entregado à polícia de Paris no dia 29, acabou não passando nem duas semanas detido. E foi muito!
Encaro como um absurdo e uma desumanidade quererem enterrar atualmente um idoso numa masmorra por conta de atos a ele imputados (a Justiça italiana era totalmente tendenciosa e iníqua nos anos de chumbo, razão pela qual há muito se impõe minha anulação de todos esses julgamentos de cartas marcadas!), ocorridos no final da década de 1970.
Quatro décadas se passaram desde então. Digam o que quiserem os revanchistas, mantenho minha posição de que há um limite de tempo para que se faça justiça, caso contrário, quando os acusados estão reduzidos a decrépitos anciãos, a coisa vira mera vingança.
Nem mesmo em casos extremos como os de Hitler ou Bolsonaro, eu concordaria com que fossem encarcerados várias décadas depois de terem cometido seus crimes, talvez já gagás e sem se darem conta do que lhes ocorresse…
Aliás, a sentença italiana espantosamente reconheceu tal obviedade:
“Não só se passaram mais de 40 anos desde os crimes gravíssimos pelos quais Bergamin foi responsabilizado, mas, sobretudo, mais de 30 anos desde a irrevogabilidade da sentença. E em 8 de abril já passou o prazo máximo fixado“.
Quando foi julgado no STF o pedido de extradição apresentado pela Itália de Berlusconi contra o Cesare, o relatório do ministro Cezar Peluso, um fanático religioso cujo catolicismo exacerbado o fazia defender preceitos medievais que até a própria Igreja abandonara, me fez lembrar aquelas partidas de futebol pré-árbitro de vídeo, nas quais, em quatro ou cinco lances polêmicos, o árbitro, favorecia invariavelmente o mesmo time e era qualificado por torcedores e pela imprensa de ladrão!.
Pois bem, de umas dez alegações importantes da defesa de Battisti, o tal Peluso favoreceu a Itália… em todas! Inclusive quanto à prescrição da pena, que, segundo os cálculos do companheiro Carlos Lungazo (então pertencente à Anistia Internacional), do advogado Barroso e de um sem-número de juristas, já havia ocorrido.
Peluso, acuado, esquivou-se, afirmando que não tivera tempo de aprofundar o assunto em seu relatório (!). Risível, se não fosse trágico pretender desgraçar um homem sem ter certeza de que ainda era legal julgá-lo…
O que me trouxe esta ocorrência de uma década atrás à lembrança é o fato de que uma juíza também de Milão decidira interromper a contagem de tempo para a prescrição utilizando o pretexto de que Bergamin havia se tornado um delinquente habitual (quiçá uma expressão equivalente ao nosso crime continuado, que o tradutor terá vertido ao pé da letra),
Felizmente, na decisão desta terça-feira o tribunal não caiu na esparrela e decidiu pela prescrição, pois a sentença que condenara Bergamin a mais de 16 anos era provisória (por tratar-se de um réu ausente, já que estava fora da Itália).
A corte ressaltou que, decorridos 30 anos de uma sentença que impôs pena provisória a um acusado fora do seu alcance, “cessa o interesse do Estado na sua execução”.
Também nisto o precedente de hoje poderá beneficiar o Cesare, pois sua condenação à prisão perpétua se deu em 1987 e, segundo tal raciocínio, já estaria prescrita quando ele foi reconduzido à Itália em janeiro de 2019.
Há uma luz no fim do túnel para Battisti. (por Celso Lungaretti)
Celso Lungaretti: 'Ao avistarem um apedrejamento, muitos apanham pedras também, mas os dignos se colocam entre os linchadores e seu alvo'
Celso Lungaretti
Uma última palavra sobre as desculpas do Lula por ter libertado o perseguido político que jamais quis libertar
Fiquei muito satisfeito em ver publicado pelo Observatório da Imprensa o meu desagravo ao Cesare Battisti diante das deploráveis declarações do Lula a seu respeito (videaqui).
Pois nunca o jogo da formação de opinião foi tão desequilibrado como hoje em dia, inclusive desencorajando alguns que tinham o dever moral de ir contra a corrente avassaladoramente dominante, mas preferiram não queimar seus filmescom o sistema do qual, no fundo, fazem parte, ainda que cultivando a imagem de rebeldes.
Houve, do outro lado, uma enxurrada de textos aplaudindo o posicionamento do Lula (ou recriminando-o por só agora tê-lo tomado), como se fosse uma grande novidade e não mais do mesmo.
Tão pouco solidário ele sempre foi ao Cesare que, tendo o acórdão do Supremo que confirmava caber a ele a última palavra sobre o caso sido publicado em 16 de abril de 2010, o Lula só foi dar sua decisão em 31 de dezembro de 2010,oito meses e meio depois!
Para um preso político, o que Battisti jamais deixou de ser, tal espera equivaleu a uma tortura a mais, e das piores!
Mas Lula não hesitou em deixar o Cesare mofando na prisão apenas para que a sua decisão não fosse objeto de críticas adversárias na campanha eleitoral daquele ano. Tal é o homem e tais são suas prioridades…
E tratou do assunto com tal desleixo que a última edição de 2010 doDiário Oficial da Uniãojá estava pronta e teve de ser remanejada à última hora, com a retirada de outro texto qualquer, para que ela ainda fosse publicada durante a presidência de Lula.
Quem terá se lembrado, na enésima hora, dessepequeno detalhe? O Gilberto Carvalho? O Tarso Genro? O Suplicy? Lula estava esquecendo de fazer a lição de casa porque não dava a mínima ou porque preferia mesmo esquecer? Os historiadores talvez um dia nos esclareçam…
Vale acrescentar, aliás, que o Lula estava sendo perfeitamente coerente com a postura por ele adotada a partir da década de 1980, tudo fazendo para expelir do PT tendências de esquerda como a Libelu e a Convergência Socialista.
Então, como meus artigos não são reproduzidos nem nos espaços da direita (aí incluídos os veículos da grande imprensa, todos eles burgueses na sua essência, embora alguns tentem convencer-nos de que não têm o rabo preso com o poder econômico) nem nos que oscilam na órbita do PT ou evitam contrariá-lo, foi auspicioso ter sido rompido desta vez o monolitismo.
É assim que eu avalio não só a publicação no OI, como também as noDireto da Redação(vide aqui), no site do escritor Cláudio Tognoli (videaqui) e no jornal ROL(videaqui): são valiosos contrapontos, respiradouros que deixam passar a verdade.
Lembro-me do imenso amargor que senti nos anos de chumbo, quando afinal saí dos cárceres da ditadura militar e tomei conhecimento de todas as afirmações equivocadas ou simplesmente mentirosas que os muy amigoshaviam feito a meu respeito quando eu estava impossibilitado de apresentar minha versão dos acontecimentos.
Então, jamais deixaria de me posicionar face às declaraçõesOPORTUNISTASeCOVARDESdo Lula, nem que fosse apenas no meu blog e pouco me importando com quantas outras retaliações viesse a receber (já foram tantas ao longo dos tempos…).
De resto, registro que o Carlos Lungarzo teceu suas considerações sobre o assuntoneste post, na linha de defender a imagem do Cesare sem criticar o Lula, por quem continua tendo grande admiração.
E, por último, abro um espaço para o sindicalista Magno de Carvalho, que foi extremamente dedicado ao Cesare e, inclusive, o responsável por ele ter escolhido Cananeia (litoral sul paulista) para morar, pois lá, como vizinhos, poderia prestar-lhe assistência mais efetiva.
É que o Magno também escreveu um artigo, mas ele não aparece em nenhuma busca virtual, pois foi ao ar tão-somente no Facebook.
Então, embora haja nele trechos que eu não subscrevo, publico-o abaixo na íntegra, para que também possa ser acessado pelos eventuais interessados em conhecer o outro lado, o dos apoiadores do Cesare, que a grande imprensa omitiu escandalosamente.
Fala de duas decepções, uma primeira que não passa de jogo de cena e a outra bem real e cada vez maior.
Ou tal ficha cai finalmente para a esquerda brasileira, ou muitos outros desastres virão… (por Celso Lungaretti)
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magno de carvalho
A DECEPÇÃO DE LULA COM BATTISTI
E A NOSSA DECEPÇÃO COM LULA!
Lula afirmou, num programa de debates no último dia 20, que ficou decepcionado com o fato de Cesare Battisti ter admitido sua participação na morte de quatro pessoas nos anos de chumbo (anos 70) na Itália.
Nesta época, Cesare Battisti juntamente com milhares de trabalhadores e jovens, participou da luta armada contra o governo e paramilitares que implantaram um regime de terror na Itália, que prendeu e matou milhares de pessoas.
Cesare tinha vinte e poucos anos e integrou uma das mais de cem organizações armadas o PAC – (Proletários Armados pelo Comunismo).
Os quatros mortos em questão eram: um militar, um carcereiro e dois paramilitares assassinos e torturadores. Cesare assumiu sua participação, negando-se a entregar qualquer companheiro.
Será que Lula esquece-se de que não só na Itália mas também no Brasil nos anos 70, milhares de trabalhadores e jovens se levantaram em armas contra uma ditadura militar que também prendeu, torturou e matou centenas ou milhares de lutadores?
Será que Lula também esqueceu que aqui os que lutaram com armas na mão contra a ditadura e foram presos e sobreviveram, acabaram sendo absolvidos por uma anistia ampla geral e irrestrita, mesmo aqueles julgados por mortes de militares e agentes da repressão do Estado terrorista?
Será que Lula esquece que, além de anistiados, muitos destes lutadores ainda receberam e recebem reparação econômica pelos danos causados pela perseguição naqueles anos terríveis?
Reparações pagas desde o governo de FHC, no seu próprio governo, assim como no da Dilma, que também participou da luta armada?
Será que Lula esquece ou não sabe que muitos destes lutadores que foram julgados pelos chamados crimes de sangue ajudaram a construir o Partido dos Trabalhadores?
Lula fala de sua de sua decepção com o companheiro perseguido por 40 anos por sua luta e que hoje cumpre uma absurda prisão perpétua numa solitária e ainda diz que a esquerda brasileira também está decepcionada com Cesare Battisti.
Mas Lula sabe que uma grande parte da verdadeira esquerda, assim como uma grande parte dos trabalhadores e do povo pobre do país, está há muito tempo decepcionada com ele.
Infelizmente, esta decepção ajudou em muito a eleição do fascistoide que governa este país. (por Magno de Carvalho (foto ao lado), diretor do Sintusp e membro da Executiva Nacional da CSP-Conlutas).
Lula, ataca quem está preso na Itália mas deixou que secundaristas e torcedores de futebol agissem contra Bolsonaro em lugar do PT
Celso Lungaretti
Lula faz autocrítica, mas não a que está nos devendo há anos e realmente ajudaria agora
O ex-presidente Lula, numa entrevista à TV Democracia, pediu desculpas à esquerda italiana e às famílias das supostas vítimas de Cesare Battisti. Mas esqueceu de dizer muitas coisas, então, a bem da verdade, vou colocar os pingos nos is.
Em meados de 2008 recebi telefonema de Brasília, de um participante do Comitê de Solidariedade a Battisti, apelando-me para que entrasse naquela batalha de opinião pública.
Aceitei de imediato. Não o fizera antes porque nunca tive compulsão por holofotes e acreditava que outros esquerdistas já lhe estariam fornecendo suficiente apoio. Mas, tenho a solidariedade revolucionária como um valor sagrado; quando recorrem a mim e eu tenho uma contribuição a dar, jamais a nego.
Então, ao tomar conhecimento de que um único jornalista (Rui Martins) vinha sistematicamente refutando as falácias da imprensa burguesa a respeito do Battisti, mas o fazia desde a distante Suíça, percebi que faltava alguém complementando seus esforços no palco principal dos acontecimentos.
Ignorava se o Battisti era ou não culpado do que o acusavam, mas sabia que:
— o governo italiano cometera um rosário de ilegalidades durante os anos de chumbo, atuando com tendenciosidade e rigor extremos contra os ativistas de esquerda e empenho bem menor contra os responsáveis pelos grandes morticínios causados pela direita, como o massacre de Bolonha (85 mortos e mais de 200 feridos) e o atentado da Piazza Fontana (17 mortos e 88 feridos), havendo até hoje questionamento sobre provável acobertamento dos mandantes;
— 29 anos depois do último dos quatro assassinatos dos Proletários Armados pelo Comunismo cuja culpa foi atirada nas costas de Battisti, tendo ele desistido da política, constituído família e se consagrado como escritor, era uma perseguição odiosa a que lhe moviam Berlusconi e seus neofascistas, obcecados em obterem um troféu impactante para exibir; e
Bolonha: pior massacre dos anos de chumbo italianos
— seria a hipocrisia suprema o Brasil extraditar Battisti após ter abrigado carrascos como o coronel haitiano Albert Pierre (que, chefiando os Tonton Macoutes, fora responsável por mais de 500 episódios de assassinatos e torturas) e o ditador paraguaio Alfredo Stroessner.
No primeiro contato pessoal que tive com Papuda (vejam aqui as minhas impressões), tive absoluta certeza de que ele não era homem capaz de matar ninguém. Na luta armada brasileira e depois, na carreira jornalística, conhecera muitos que o eram e havia gritante diferença. O muito que li posteriormente sobre o caso e sobre a montagem do segundo julgamento italiano (no qual, à revelia, foi agravada sua pena) só veio confirmar minha intuição inicial.
No entanto, após o pusilânime Evo Morales cometer suicídio moral, entregando-o à Itália como René Barrientos entregara Che Guevara à CIA, Battisti, já bastante abalado pela perseguição sem fim em que se tornara sua vida, fez uma barganha podre com a Justiça italiana.
Aceitou admitir a culpa por homicídios pelos quais fora condenado sem provas reais em troca de bom tratamento na prisão, com direito a receber o apoio da família, comunicar-se amiúde pelos meios eletrônicos com o filho brasileiro e escrever seus livros (estes pontos acordados nem sequer estariam sendo cumpridos pelas autoridades italianas, segundo ele se queixa nas suas cartas recentes!).
De que sua surpreendente confissão de culpa foi fajuta, não tenho a mais remota dúvida. Afinal, é público e notório que, dos quatro assassinatos que delatores premiados cometeram e lhe imputaram para serem libertados o quanto antes, dois foram praticamente simultâneos, não havendo nenhuma possibilidade material de ele estar presente em ambos. Por que haveria ele de confessar até um crime que não poderia ter cometido de jeito nenhum?
Candidatura fantasma: confusionismo e perda de tempo
Quanto a Lula, que sempre se colocou na contramão de uma transformação em profundidade da sociedade brasileira, preferindo apenas negociar pequenas concessões com o poder burguês e por meio delas garantir o voto dos coitadezas (tanto que já na década de 1980 tudo fazia para expurgar as tendência de esquerda que atuavam dentro do PT), não é de hoje que ele está contra Battisti.
Como principal porta-voz do comitê de solidariedade no Brasil, muitas vezes eu recebia informações sigilosas de companheiros jornalistas, indignados com o jogo de interesses políticos e econômicos nos bastidores do caso. Então, tive informação segura de que:
— o Lula estava disposto a lavar as mãos e omitir-se, caso o STF decidisse por si só extraditar Battisti;
— mas, se a decisão final lhe coubesse, ele vetaria a extradição, porque não queria indispor-se com alguns dirigentes influentes do PT para os quais rechaçar as pressões italianas era uma questão de honra.
O desespero do ministro Gilmar Mendes quando seu colega Ayres Britto votou a favor de que a última palavra coubesse ao presidente da República, como sempre foi a tradição brasileira, serviu como atestado eloquente de que a informação que eu havia recebido era correta.
Tão transtornado Mendes ficou com tal posicionamento que chegou a ser grosseiro em plenário com o Ayres. Por que? Porque sabia que aquele voto era decisivo (ou seja, estava ciente das intenções do Lula).
De resto, ao invés dessas desculpas perfeitamente dispensáveis acerca do Caso Battisti, o que Lula está nos devendo é uma autocrítica pelos erros fatais cometidos ao longo da atual década:
Manifestantes de 2013 foram abandonados à sanha dos inimigos
—começando em 2013 pelo abandono dos manifestantes do Passe Livre que foram triturados por polícias e judiciários estaduais reacionários, ante a indiferença do PT, o que levaria adiante à perda das ruas e à reação pífia quando do impeachment da Dilma; e
— terminando por haver inviabilizado a união da esquerda contra Bolsonaro na eleição presidencial, além de ter desperdiçado tempo precioso com sua ridícula candidatura fantasma, dando mais importância à obtenção de uma espécie de desagravo por suas condenações do que ao imperativo de salvar os brasileiros do pesadelo neofascista que se prenunciava.
Isto para não falar de haver reduzido o PT a uma caricatura de partido oposicionista, a ponto de recusar-se a enfrentar nas ruas a escalada golpista do Bolsonaro em maio/junho últimos, deixando que secundaristas e Gaviões da Fiel fossem correr riscos em seu lugar. (por Celso Lungaretti)
Cesare Battisti, 64 anos, será enterrado vivo numa masmorra italiana. O pretexto: episódios obscuros de 4 décadas atrás!
UM INOCENTE É DESTRUÍDO PARA OS NEOFASCISTAS EXIBIREM FORÇA E CONQUISTAREM HOLOFOTES
A cabeça de Battisti não será troféu do Berlusconi. Bem feito!
Nunca me pesou tanto escrever sobre um episódio importante. Mas, não deixarei de dar uma palavra final sobre o Caso Battisti.
Ele havia integrado o inexpressivo grupelho Proletários Armados para o Comunismo, um dentre centenas que pegaram em armas na Itália dos anos 70 depois da traição histórica do PCI ter levado ao desespero os esquerdistas sinceros daquele país.
Jogando suas dignas tradições no lixo, os comunistas italianos primeiramente combateram (até em batalhas de rua) a contestação jovem de 1968, depois se mancomunaram com a putrefata Democracia Cristã para chegarem ao poder (algo semelhante à aliança entre PT e PMDB no presente século).
Uma atordoada juventude de esquerda, já não tendo partido da política convencional que lhe inspirasse quaisquer esperanças, embarcou na aventura da luta armada – e se deu mal, principalmente a partir do verdadeiro tiro pela culatra que foi o assassinato de Aldo Moro por parte das Brigadas Vermelhas.
O inimigo, com o PCI à frente, soube capitalizar ao máximo tal episódio chocante, insuflando uma desmedida histeria anti-ultras que tornou a Itália, durante alguns anos, um híbrido de Estado policial: mantinha algumas instituições funcionando normalmente, mas sua polícia e sua Justiça se desequilibraram por completo, atingindo paroxismos de tendenciosidade em seus julgamentos de cartas marcadas.
“famoso, tornou-se alvo preferencial dos neofascistas”
Nesse clima de caça às bruxas se deu a condenação de Battisti à prisão perpétua, baseada unicamente nas delações premiadas de antigos companheiros que, sabendo-o a salvo na França, atiraram em suas costas uma responsabilidade que ele nunca teve, por quatro episódios que terminaram em morte.
Embora nem a mim ele haja admitido isto, fiquei com a certeza de que a transferência de culpas não se deu à revelia de Battisti. Pelos valores da esquerda revolucionária daquele tempo (e falo como quem a ela pertenceu convictamente), nenhum militante digno, ainda mais supondo-se inatingível pelas forças repressivas, deixaria de dar sua contribuição para a libertação de companheiros. Prestar solidariedade era um dever de honra para nós.
Como zelador de edifícios e outras profissões subalternas que exerceu na França, sob a proteção do premiê François Mitterrand (o qual, sabendo das injustiças e arbitrariedades que a Itália perpetrava contra seus ultras, ofereceu-lhes abrigo desde que levassem existências comuns, abstendo-se de atividades políticas), Battisti estava praticamente esquecido.
Bastou obter sucesso literário como escritor de novelas policiais para, alçado à condição de famoso, tornar-se um alvo preferencial das fanfarronices neofascistas, um troféu que Silvio Berlusconi moveu céus e terras para poder exibir triunfalmente. Contudo, por uma questão de timing, acabou sendo agora privado dos holofotes que buscou de forma tão obsessiva (bem feito!).
“não demora e vai abandonar Lula e o PT também”
Assim, por eventos obscuros de quatro décadas atrás, um cidadão pacato e produtivo de 64 anos, com um filho brasileiro para sustentar, está sendo remetido ao inferno das prisões italianas, das quais dificilmente sairá com vida (até porque várias vezes já manifestou sua intenção de suicidar-se, de preferência a suportar tal calvário).
O pretexto para sua destruição são três assassinatos que não cometeu e um quarto que até mesmo a Justiça italiana deixou de atribuir-lhe ao ficar provado que ele não poderia estar fisicamente presente no chamado local do crime, mas que a indústria cultural continua lhe imputando para fins de manipulação desavergonhada.
O verdadeiro motivo é bem outro: provar que o sistema pode esmagar a bel-prazer seus dissidentes, desestimulando qualquer resistência à desumanidade, neste momento em que a barbárie avança em passo acelerado, minando as bases de nossa civilização.
De resto, deixando de lado os personagens que fizeram exatamente o que deles se esperava e não merecem sequer ser citados num artigo para pessoas de família (seus nomes equivalem a palavrões!), mencionarei apenas dois que fizeram aquilo de que poucos os imaginavam capazes.
Um é Luiz Fux, ministro do STF que tomou uma decisão coerente com os preceitos legais em outubro de 2017, quando ninguém imaginava que a extrema-direita fosse chegar ao poder no Brasil, e assumiu posição diametralmente oposta quando uma nova correlação de forças políticas se configurou na eleição presidencial.
Outra é o presidente da Bolívia Evo Morales, que incidiu na mesma ignomínia de um antecessor repulsivo: franqueou o território do seu país para forças estrangeiras caçarem Battisti, assim como René Barrientos o fizera em 1967 com Che Guevara.
Não me estenderei sobre Morales porque teria dificuldade para evitar os vômitos. Darei a palavra a Roberto Jefferson, que conhece bem como funciona a cabeça dessas figuras da politicalha sórdida.
Depois de constatar que Morales havia lavado as mãos com relação a Battisti, Jefferson concluiu: “O índio é pragmático. Não demora e vai abandonar Lula e o PT também”.
Alguém duvida? (por Celso Lungaretti)
Com a decisão que tomar sobre Battisti, Evo Morales mostrará quanto vale (e se vale alguma coisa)
EVO MORALES HONRARÁ A CORAGEM DE LULA OU VAI SER CAPACHO DOS RICOS E DOS PODEROSOS, COMO RENÉ BARRIENTOS?
Cabe a Evo provar que se mira no exemplo de Che…
Quando acontece um episódio como a prisão de Cesare Battisti na Bolívia, toneladas de wishful thinking são acrescentadas ao noticiário, motivo pelo qual é arriscadíssimo tirar conclusões sobre o que a imprensa burguesa trombeteia, dando urros de vitória.
Pode ser tudo tão falso quanto as mentiras de campanha do Bolsonaro e a facada mandrake que nenhum veículo de primeira linha do Brasil até agora ousou investigar a fundo.
Mas, alguns paralelos históricos me ocorrem:
…e não no do abjeto e infame Barrientos.
— o Supremo Tribunal Federal foi abjeto e infame e, 1936, ao aprovar a entrega de Olga Benário aos nazistas e, consequentemente, à morte;
— Getúlio Vargas foi abjeto e infame ao acumpliciar-se com tal assassinato, quando lhe coube dar a palavra final;
— o STF foi abjeto e infame em 2009, ao aprovar a entrega de Cesare Battisti aos neofascistas de Berlusconi, fingindo ignorar que se tratava de um perseguido político condenado no arremedo de julgamento italiano que fora encenado em meio à histeria provocada pela morte de Aldo Moro;
— Lula salvou a honra brasileira e a honra do Supremo ao não repetir a abjeção e infâmia que vitimaram Olga;
— infelizmente, as lições do passado de nada serviram e o STF acaba de criar uma novidade no Direito, as decisões condicionadas a quem vença as eleições (antes de a extrema-direita conquistar sua vitória de Pirro em urnas emasculadas por mentiras mais do que suficientes para obrigarem à anulação do pleito, respeitaram-se os muitos preceitos legais que impediam a entrega de Cesare e lhe garantiam a condição definitiva de residente legal no Brasil, depois a legalidade foi mandada às favas, juntamento com todos os escrúpulos de consciência);
— agora caberá a Evo Morales decidir se respalda o ato de coragem de Lula em 2010 ou se repete a abjeção e a infâmia de René Barrientos, que em 1967 abriu o território boliviano para a caçada e execução de Che Guevara, sob o comando de oficiais estadunidenses.
Espero que Evo tenha o brio de um Touro Sentado e dê aos Generais Custers da atualidade o tratamento que eles merecem! (porCelso Lungaretti)
Celso Lungaretti: 'Temos todos de empurrar novamente as pedras montanha acima. Enquanto vivermos!
QUEM TRAVA O BOM COMBATE LEVA A VIDA INTEIRA ENTRE ALTOS E BAIXOS. EU NÃO A TROCARIA POR NENHUMA OUTRA
Uma das imagens que eu mais identifico com a sina dos revolucionários é a de Sísifo levando a pedra ao topo da montanha, para logo vê-la despencar pelo outro lado. Simboliza tanto a trajetória da minha geração quanto os altos e baixos que têm me marcado a existência nestes tristes trópicos.
A coisa vem de longe. Lá pelos meus 15 anos, percebi que não me encaixava nas perspectivas rotineiras dos jovens de baixa classe média da Mooca, bairro proletário de São Paulo que esquecia seu passado heroico e caminhava para a desproletarização.
Meus colegas de escola queriam virar advogados, engenheiros, médicos; arrumarem bons empregos; terem belas casas, belas esposas e belas proles. Eu não queria nada disso.
Nem sabia direito o que queria, então fui procurar nos livros. Kafka, Sartre, Camus, Cony. Eles confirmaram o que eu já pressentia: a sociedade burguesa era indigna de que eu ajudasse a mantê-la funcionando. Mas, onde estava a saída?
Foi quando o marxismo me encontrou. E passei quase dois anos na transição de sonhador para revolucionário, aprendendo a colocar em prática o que antes só elucubrava.
Em 1968, o que eu e meus sete companheiros secundaristas queríamos era avançar cada vez mais para o centro dos acontecimentos. Tragicamente, conseguimos. O saldo: dois assassinados, cinco presos e muito torturados, uma paranoica. E a devastadora derrota da opção para a qual contribuíramos com nossos fervor e nosso sangue, a luta armada.
Ao sair de uma casa dos mortos pior ainda que a retratada por Dostoievski, tive novo encontro providencial: com a geração das flores e da contracultura. Numa comunidade alternativa no Jardim Bonfiglioli juntei os cacos, superei os traumas dos porões e retomei gosto pela vida.
Mas, aquele paraíso entre quatro paredes era outro corpo estranho em meio à intolerância e ao medo que grassavam no estado policial. Não podia dar certo por muito tempo. Mais uma pedra que não se manteve no topo da montanha.
Veio a fase dos circuitos literários marginais, os livros bancados por nós mesmos e vendidos para os amigos, as festas para esquecermos nossa tristeza, os espetáculos de poesia, os debates; até de uma Bienal nosso grupo participou, com o projeto nordestino do companheiro Chico Diabo. O vento do tempo levou tudo isso.
2009: Caso Battisti em julgamento no STF
Obrigado a me incluir cada vez mais no jornalismo para sobreviver, tentei ressuscitar aquelas críticas de música e cinema que outrora discutiam a sociedade em interação com a arte, ao invés de apenas fornecerem subsídios para consumidores de discos e filmes. Quebramos a cara, eu e alguns críticos amigos. Não era o que a indústria cultural queria ou tolerava da parte de quem produzia conteúdos para ela.
Acabei tendo de atuar num jornalismo que detestava (editorias de economia, agências de comunicação empresarial, serviço de imprensa governamental, etc.) por mera questão de subsistência. As finanças melhoraram, a satisfação profissional evaporou.
Vez por outra um bom combate, como a greve de fome dos quatro de Salvador em 1985 (vide aqui) e a defesa do Paulo de Tarso Venceslau quando quase todos lhe voltavam as costas em 1997 (vide aqui).
Orgulho-me muito de, no primeiro caso, ter colocado a solidariedade revolucionária acima dos cálculos eleitoreiros de um partido de esquerda que se descaracterizava a olhos vistos; e no segundo, de haver sido dos primeiros a alertar para o ovo da serpente (corrupção) que acabaria destruindo o PT e boa parte da esquerda.
A esquerda dilapidou o capital político que acumulara
Cheguei ao fim da linha no jornalismo profissional no ocaso de 2003. Passei dois anos de enormes dificuldades, mas consegui a anistia do Ministério da Justiça, o esclarecimento de episódios em que fora muito injustiçado no passado e a publicação do meu livro.
Reconstruí a vida em 2006, as situações que haviam saído de controle se ajeitaram, veio minha segunda filha, ocupei-me intensamente da luta pela liberdade do Cesare entre 2008 e 2011. Mas, quando parecia marchar para uma velhice tranquila, as pedras começaram a rolar montanha baixo de novo.
A indenização retroativa que me permitiria sair do aluguel e manter minhas finanças equilibradas esbarrou numa sabotagem burocrática (em parte por preconceitos ideológicos, em parte devido à lerdeza habitual do Estado brasileiro quando o que está em jogo são os direitos violentados de cidadãos comuns) cujos efeitos ainda perduram após 13 anos, 11 dos quais de disputa judicial por mim travada contra o poder de fogo imensamente superior da União.
A esquerda que alçáramos da derrota devastadora nos anos de chumbo para a posição de principal força da redemocratização brasileira desperdiçou o capital político acumulado à custa do sangue e dos tormentos de companheiros valorosos: despencou nos últimos anos para uma situação de desprestígio popular próxima àquela em que se encontrava na década de 1970.
Cesare Battisti, cuja salvação fora uma das maiores vitórias dos brasileiros com espírito de justiça em todos os tempos, viu sua situação já definida de residente legal ser pulverizada por pressões italianas e consequentes decisões juridicamente aberrantes dos togados brasileiros. Sua pedra também tombou e ele se vê obrigado a retomar, idoso, a sina cheia de incertezas de um perseguido político.
Temos todos de empurrar novamente as pedras montanha acima. Até quando? Enquanto vivermos.
Sem dúvida, cometemos erros que tornaram ainda mais desigual o enfrentamento com um inimigo que sempre teve todas as vantagens e trunfos. Por eles pagamos um preço muito alto, individual e coletivamente.
Só nos resta seguirmos lutando, pois foi assim que nos construímos e só assim morreremos aliviados: se as vitórias duradouras não estavam ao nosso alcance, os que nos mantivemos íntegros temos nossa coerência como consolo. Os que lambuzaram com o melado da sociedade burguesa, conspurcado pelo suor e sangue alheios, nem isto.
E dos pósteros, só desejamos que “quando chegar o tempo em que o homem seja amigo do homem, pensem em nós com um pouco de compreensão” (Brecht).