Os nossos, os outros: ‘O vergalho’

Elaine dos Santos: “Os nossos, os outros: ‘O vergalho’”

Elaine dos Santos
Elaine dos Santos
Imagem criada por IA do Bing - 04 de julho de 2025, às 10:04 PM
Imagem criada por IA do Bing – 04 de julho de 2025,
às 10:04 PM

Não ousaria tecer digressões sobre a obra literária produzida por Machado de Assis na exiguidade de um breve ensaio, mas os seus textos são fonte constante de inspiração para refletir sobre o ser humano e a nossa sociedade.

Recentemente, na região central do Rio Grande do Sul, houve um crime (creio que é a palavra mais adequada), em que um agricultor, lenhador, teria investido contra a polícia ambiental e foi morto com três tiros – as imagens foram captadas por câmeras de segurança interna da propriedade, mas nem todas as ações ficam claramente evidenciadas.

A primeira impressão que emergiu (parafraseando Chapolin Colorado: “Quem poderá nos salvar” se a polícia mata? Teria havido uma denúncia feita por vizinhos de desmatamento ilegal, teria sido mera coincidência a presença da polícia ambiental na propriedade. O agricultor teria se agitado, investido contra os dois policiais com um machado.

A segunda questão, que me foi posta pela esposa de um ex-aluno, foi: por que nos choca tanto a morte de um igual se, no Brasil, pessoas são mortas diariamente pelas forças de segurança, quer seja por tiros dirigidos diretamente a elas ou por balas perdidas em tiroteios?

De imediato, o capítulo “O vergalho”, do romance ‘Memórias póstumas de Brás Cubas‘, considerado a primeira obra realista de Machado de Assis, veio à memória.

O narrador seguia pela rua e ouviu os impropérios ditos por um homem ao seu escravo. Achegou-se e encontrou o seu ex-escravo Prudêncio, já alforriado, a bater sem medida em um escravo que adquirira. Solicitou que Prudêncio perdoasse o escravo, o que ele fez sem demora, demonstrando resquícios da submissão absolutamente servil.

Brás Cubas seguiu o seu caminho e passou a tecer reflexões sobre a cena que assistira, sobre a (re) duplicação da violência e ponderando que Prudêncio, que fora seu escravo, cobrava com juros a violência que sofrera.

O Brasil é um país forjado na força, na violência. Os portugueses quando aqui chegaram, quando começou o efetivo povoamento, por volta de 1530, principiaram uma verdadeira chacina do povo indígena que não se resignava à escravidão. Por outro lado, inúmeras mulheres indígenas foram sexualmente violentadas, nasceram mestiços sem pai.

Aliás, esse modo de agir acabou encontrando eco exatamente entre os senhores de engenho, que emprenhavam as suas melhores escravas para, com os filhos mestiços delas, aumentarem a mão de obra nas fazendas. Há registros que se pode buscar na própria História oficial, que escravos homens eram escolhidos para engravidar escravas mulheres para que nascessem crianças mais saudáveis para o trabalho.

Mentalmente, revisito a História do Rio Grande do Sul, que foi feita sob o lombo de cavalos, o estado mais meridional do Brasil, um dos últimos a ser ocupado, região em que vivo na atualidade.

Primeiro, vieram bandeirantes que expulsaram jesuítas portugueses. Quando os jesuítas espanhóis estabeleceram os Sete Povos das Missões, era o tempo dos tropeiros paulistas que vinham em busca do gado para produzir charque e das mulas para o transporte nas Minas Gerais. Nesse caso, valiam-se das mulheres indígenas como empregadas, como amantes, abandonando-as quando partiam, muitas delas encontrando-se grávidas.

A violência entre nós, como ao escravo Prudêncio, que pertencera a Brás Cubas, faz parte do imaginário social. Nos últimos anos, parece ter sido banalizada, bem como a morte – mas a morte do outro: do negro, do homossexual, da mulher. Que estranha sociedade formamos que somente a morte ‘do nosso’, do branco, do agricultor, do reconhecido como trabalhador, consegue nos assustar, comover?

Hoje, como nos tempos de doutorado, quando analisamos o romance ‘O matador‘, de Patrícia Melo, eu tenho medo dessa sociedade. Enquanto comentávamos a obra de Patrícia Melo, uma colega disse: “Mas eles (os pobres, os nascidos na periferia) não têm apego à vida!” Outra colega replicou: “Como tu consegues afirmar isso? Eles, os outros, também tiveram uma mãe que os amou, sonhos que se frustraram, desejos não realizados.” Somos, enfim, todos humanos. Por que essa relação sempre tão violenta e tão ‘comum’?

Elaine dos Santos

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