Rafael Venancio: 'A Águia da Imperatriz'
A Águia da Imperatriz
Um dos grandes lugares-comum do tarot quando o assunto é o terceiro Arcano Maior, o da Imperatriz, é falar de seu escudo. Sendo o Tarot de Waite o baralho mais famoso dos dias atuais, vemos lá e cá falarem do escudo da Imperatriz com o símbolo do feminino, que também representa o glifo astrológico do planeta Vênus, como sendo a principal chave para entender a mensagem desta carta.
Assim, todo mundo gosta de falar da energia yin da Imperatriz, de sua fecundidade e criatividade, mas também de sua indecisão e volatilidade. Logo, muitos começam a dar aulas sobre Afrodite e, óbvio, sua contraparte romana, Vênus.
No entanto, o que esquecem é que o símbolo de Vênus foi posto, de propósito, por Arthur E. Waite, na elaboração de seu tarot para ‘reforçar’ esse lado yin do arcano, complementando com o lado yang do arcano seguinte, o Imperador.
Só que, o que muitos esquecem, é que no Tarot mediterrâneo do Renascimento, seja da Itália ou da França, o escudo da Imperatriz oferece uma outra mensagem, mais obscura para o ideário atual dos tarólogos de plantão.
Usando o Tarot de Marselha como exemplo, o mais popular hoje dos baralhos renascentistas mediterrâneos, o escudo da Imperatriz apresenta uma águia. Em Marselha, essa águia é dourada em um fundo dourado, o que seria um erro heráldico, mas muito significativo para entendermos esse arcano do tarot.
A mudança entre o Símbolo de Vênus para o Símbolo da Águia Dourada possui uma influência gigantesca em termos de mitologia grega. Afinal, a Águia é símbolo de Zeus e quem seria a Imperatriz dele?
Sim, ela: Hera, deusa da família e inimiga de Afrodite.
A ideia de que a Imperatriz no Tarot de Marselha seria Hera, se reforça pelo significado da cor dourada na heráldica. O dourado representa a fidelidade, uma das principais marcas de Hera (bem como sua notória cobrança para todos os deuses). Afinal, foi por causa da infidelidade sistemática de Zeus, bem como a de Afrodite com Ares, que Hera armou os maiores de seus planos.
Para a sociedade ateniense e romana, que era nada conservadora em costumes sociais (e especialmente sexuais), Hera era a deusa menos venerada do Olimpo e a mais satirizada como ‘mulher amarga’ ou mesmo ‘mal-amada’, em contraposição à ‘mulher mais mulher de todas’, ou seja, a ‘bem-amada’ Afrodite.
No entanto, se observarmos em um escopo maior da Antiguidade, em sociedades helênicas onde o culto à família e à fidelidade era valorizado (tais como Samos e Micenas), Hera era a deusa que mais ganhava honras, superando até mesmo os três irmãos supremos (Zeus, Poseidon e Hades).
Ao retirar a referência à Hera e transformando a carta da Imperatriz em um arcano dedicado à Afrodite (tal como os Amantes), Waite prestou, de certa maneira, um desserviço interpretativo para a ambiguidade posta por esse arcano maior.
Afinal, tal como eu disse no começo dessa crônica, a Imperatriz é fecundidade e criatividade, mas também volatilidade e indecisão. Esse ‘8 ou 80’ ou ‘luz e sombra’ da Imperatriz, se apresenta tanto na carta retirada da maneira direta ou invertida, uma característica única desse arcano. Esse ‘8 ou 80’, de toda e qualquer maneira, é Hera em sua mais pura essência.
Hera é fertilidade porque ela é mãe de um panteão de deuses que já nasceram olimpianos.
Hera é criatividade porque, até mesmo em seus castigos, ela o faz de maneira elaborada e mirabolante (e não simplesmente punitiva). Lembrem-se sempre que os 12 trabalhos de Hércules saíram de sua mente.
Hera é indecisão porque ela, por sua fidelidade à família, não pode cumprir o que deseja de fato (por exemplo, ‘acabar com a raça’ de Zeus, aquele ninfomaníaco…).
Hera é volatilidade porque ela é cíclica, que são as mulheres com seus ciclos hormonais, lunares e místicos.
Ah, mas o tarólogo chato que me lê pode perguntar: “Onde está o amor em Hera?’. “Esse amor feminino é essencial na leitura da fecundidade da Imperatriz”, continua o expert a querer me corrigir…
E eu apenas respondo com outra pergunta: “Sabe de onde vem a palavra Hera em grego?”. “Não? Pois, segundo Platão, Hera vem de eratê, ‘amada’. Isso é reforçado pelo nome romano dela, Juno, que vem de diove, ‘amor’. Para os romanos (especialmente aqueles de pequenas comunidades ou de baixa classe social), Juno era a deusa do amor e da fecundidade, não Vênus.
Assim, tal como Hera e Juno, a Imperatriz é amada, por isso é fecunda. Tanto é assim que, no Tarot de Marselha, ela possui um visível ventre de grávida junto com o seu belo escudo de águia.
Então, fica a minha dica: quando observar a carta da Imperatriz não caia na artimanha de Waite e apenas faça como os romanos, saúde-a!
Ave Juno Regina! Salve Juno Imperatriz!
Rafael Venancio
rdovenancio@gmail.com