Em 1994, o visionário jornalista Hélio Rubens (in memoriam) deu vida ao Jornal Cultural ROL, um marco na história da comunicação cultural brasileira. Desde sua criação, o periódico se consolidou como um veículo de referência para a divulgação e o fomento da cultura em suas diversas formas, abrangendo artes, literatura, cinema, TV, teatro, pintura, dança e música.
Ao longo de três décadas, o Jornal Cultural Rol se destacou por sua cobertura ampla e plural, valorizando a riqueza e a diversidade da produção cultural brasileira. Através de reportagens, entrevistas, críticas e ensaios, o periódico contribuiu para a formação de público, o reconhecimento de artistas e a democratização do acesso à cultura.
O Jornal Cultural Rol também se consolidou como um espaço de debate e reflexão sobre os desafios e as perspectivas do cenário cultural brasileiro. Através de colunas, artigos, premiações e fóruns, o jornal promoveu o diálogo entre artistas, intelectuais, gestores públicos e o público em geral, fomentando a construção de políticas públicas e iniciativas que impulsionam o desenvolvimento cultural do país.
O legado do Jornal Cultural ROL se estende para além das matérias e posts publicados. A paixão pela cultura, a busca pela excelência jornalística e o compromisso com a democratização do acesso à cultura continuam a inspirar profissionais e amantes da arte em todo o país.
Ao celebrar os 30 anos do Jornal Cultural ROL, celebramos também a força e a vitalidade da cultura brasileira. Que este legado continue a iluminar o caminho para as próximas gerações, inspirando a criação de novos espaços de diálogo, reflexão e produção cultural, para que a cultura continue a florescer e a enriquecer a vida de todos nós.
Neste momento especial, é importante render uma homenagem ao idealizador do Jornal Cultural ROL, o jornalista Helio Rubens. Sua visão, seu talento e sua paixão pela cultura foram essenciais para a construção deste veículo de comunicação tão importante para o cenário cultural brasileiro. Sua memória e seu legado continuarão a inspirar nosso trabalho e a nos guiar na missão de promover a cultura em todas as suas formas.
Para mim, é motivo de grande orgulho e honra participar do Jornal Cultural ROL como editor setorial e colunista. Ao longo desta minha pequena trajetória e pouco mais de um ano, tive a oportunidade de colaborar com uma equipe talentosa e dedicada, comprometida com a missão de promover e celebrar a cultura brasileira em suas múltiplas expressões.
Desejo que nos próximos 30 anos, o Jornal Cultural ROL seja marcado por muito mais conquistas e realizações. Que nosso editor-chefe, Sergio Diniz, continue a nos guiar brilhantemente neste caminho jornalístico. Que o nosso jornal continue a ser uma ferramenta poderosa de divulgação da nossa cultura brasileira, promovendo o diálogo, a reflexão e a valorização da nossa rica e diversa produção cultural.
Parabéns, Jornal Cultural ROL! Parabéns Editores, Colunistas e Correspondentes FELIZ 30 anos
J.H. Martins
Editor Setorial de TI e Colunista do Jornal Cultural ROL
Sergio Diniz“Era singular aquele movimento de abrir-fechar do céu…” Microsoft Bing – Criação do designer
Era singular aquele movimento de abrir-fechar do céu. E o homem deitado na grama do parque deleitava-se com aquele espetáculo apoteótico. Ele contemplava e sorria. De vez em quando, ensimesmava-se, franzia o cenho como quem quer ter alguma dúvida esclarecida e apresentava ligeiros espasmos passageiros. Mas, apesar disso, deliciava-se com o majestoso espetáculo de abrir-fechar do céu.
A tarde esparramava o seu manto cor-de-rosa na natureza, fato este que mais ainda enfeitava, à vista do pequeno observador, o vai e vem, o abrir-fechar do céu.
Talvez algum transeunte mais curioso perguntasse a alguém mais esclarecido o significado de tal coisa, Aliás, uma pequena multidão foi-se formando para observar o inaudito fenômeno. Porém, para o homenzinho deitado na grama do parque, aquilo era natural e ele não se importava com a multidão que, agora, estava desmesuradamente grande.
E a multidão crescia mais e mais e, logo, uma terrível balbúrdia tomou conta do lugar. Alguém, temeroso de que eclodisse alguma tragédia generalizada, tratou logo de chamar o Estado-Maior das forças Armadas e, dentro de pouco temo, todos os soldados daquele país compareceram àquele lugar.
Todavia, a multidão acotovelava-se cada vez mais para presenciar o fenômeno celeste.
Os jornais começaram a publicar em seus periódicos o fato; o rádio e a televisão correram fazer suas reportagens no local. E a notícia saiu nas primeiras páginas de todos os jornais do mundo, em letras garrafais: “ESTRANHO FENÔMENO DESPERTA A CURIOSIDADE DOS MORADORES DE UMA CIDADE DO INTERIOR E AS MAIORES AUTORIDADES DE TODOS OS PAÍSES”.
Logo que a notícia explodiu ante o público, todas as pessoas, de todos os países, acorreram para aquela localidade. Entretanto, a cidadezinha não comportava todo mundo. E um desequilíbrio geográfico foi causado na Terra. E ela saiu de seu eixo.
Os oceanos começaram a ocupar as partes antes não ocupadas e quase todos os homens e animais pereceram afogados. Menos, um: o homem que estava deitado na grama do parque, agora tranquilo pela ausência da confusão sonora e demográfica.
E ele continuava deleitando-se com o fenômeno de abrir e fechar do céu.
Sergio DinizO Estranho Microsoft Bing – Imagem criada pelo designer
A porta entreabriu-se lentamente. Lá fora era noite. A noite mais fria do ano. Uma neblina de morte pairava nas ruas da cidade adormecida. Tudo era silêncio. Raro era o instante em que se ouvia um ganido de cão vadio perdido na névoa viscosa, que abraçava as ruas sujas e sem ecos humanos.
─ Boa noite! Posso entrar? ─ Foram as únicas palavras que se ouviram de fora.
─ Entre! ─ eu disse, quase que num espasmo.
O estranho adentrou pela sala aquecida por uma lareira crepitosa. Tirou o chapéu de feltro amarrotado e úmido e preparava-se para tirar o sobretudo quando, como se eu despertasse somente naquele momento, reparei numa das mãos do homem; ela segurava uma mala preta que causava uma desagradável impressão. Parecia pesar como um haltere. Mas, não era somente o seu aspecto plúmbeo que assombrava à primeira vista; parecia conter algo sinistro em seu interior.
Talvez essa impressão fosse causada pela pouca luz que se difundira naquele canto da sala, por isso adiantei ao visitante:
─ Por favor, queira chegar até aqui! Lá fora está muito frio e nada como uma lareira para descongelar o sangue ─ Falando assim, quis dissipar aquele ar denso que parecia fazer parte do ar noturno que espalhava-se lá fora.
O estranho adiantou uns passos medidos e mergulhou na claridade que escapava da lareira. Seu semblante era rude, como o de um viking em plena batalha de morte. A testa adiantava-se do rosto, deixando os olhos perdidos nas órbitas profundas. E de seus olhos emergiram dois brilhos metálicos, que causavam a sensação de se estar diante de uma fera assassina. O seu nariz aquilino adiantava-se proeminentemente da face encovada, dando-lhe um ar tragicômico. A boca, de lábios finos e rachados, cerrava-se num silêncio lúgubre. Do lado esquerdo de sua face podia-se notar uma cicatriz, causada por um corte profundo, com certeza. O queixo avançado impetuosamente, de arestas marcantes, dava-lhe um caráter resoluto. Seus cabelos, de corte comum, deixavam as orelhas descobertas que, terminando em pontas, davam-lhe uma aparência malévola.
─ O senhor parece assustado ─ balbuciou o estranho, com voz gutural.
─ Ah! É impressão sua ─ menti, com receio de deixar transparecer o meu íntimo. ─ Mas, queria sentar-se, por favor. O senhor deve estar cansado, não?
A massa humana sentou-se sem dizer palavra. Tentei manter um diálogo, a fim de descarregar a eletricidade que tomava conta do ambiente. Entretanto, parecia inútil a tentativa. Por fim, disse-lhe, inopinadamente:
─ A farsa não pode continuar por muito tempo!
O homem pareceu surpreso e, remaniscando, levantou e colocou-se numa atitude de defesa.
─ Sim, a farsa deve acabar! ─ E, virando-se para o meu lado, encarou-me com olhos decididos.
─ Quero dizer que… ─ Não pude continuar a frase; Berta, minha governanta, irrompeu pela sala e, com palavras sussurradas, confiou-me algo ao ouvido.
O estranho inquietou-se ainda mais.
─ Não, Berta, não quero que você continue com aquilo!
─ Desculpe-me, eu não queria… e, sem poder terminar a frase, caiu num pranto copioso.
Olhei pra ela com olhos de compaixão, acariciando seu coque branco. E em voz baixa falei-lhe, delicadamente:
─ Berta, continue com seus afazeres.
Ela saiu, enxugando as últimas lágrimas e desculpando-se, continuamente.
─ Ela poderia ter ficado? ─ indaguei ao estranho.
─ Não! ─ foi sua resposta. ─É melhor que tudo fique entre nós dois.
─ Como queira ─ respondi, com certa humildade.
─ Não devemos prolongar por mais tempo o nosso assunto ─ insistiu o vulto humano. ─ As horas escoam rapidamente ─ arrematou.
─ Sim eu compreendo. Siga-me! O que procura está nos subterrâneos da casa. Venha por aqui.
Virei-me e nos dirigimos ao porão, No caminho, desculpei-me pela arrumação da casa. A entrada do porão estava fechada desde que eu contratara Berta como governanta. Com a Vinda dela, cuidei que seria melhor trancar aquela passagem e ficar com a chave em meu poder. Questão de segurança, simplesmente.
Entramos, com a porta rangendo como um moribundo que foi molestado em seu leito de morte. Densas teias infestavam aquele umbral úmido, que dava ao espírito uma sensação de abandono, de desolação.
─ Eis o que veio buscar ─ disse-lhe, depois de vasculhar aquele interior que há muito não via pessoas.
O estranho assentiu com a cabeça e avançou para pegá-la, quando se ouviu um grito lancinante cortar o silêncio que reinava naquele lugar desconfortável.
─ Berta! ─ exclamei, lembrando que a simpática velhinha ficara sozinha lá em cima.
Tive o ímpeto de correr para a parte superior da casa, quando fui subitamente preso pelo braço hercúleo do visitante.
─ Não vá! ─ disse-me, energicamente. ─ É melhor para você permanecer aqui. É muito tarde para Berta. O que tinha que ser feito, o foi.
Num gesto brusco, desvencilhei-me daquela garra poderosa que esmagava meu braço. Colocando as mãos no rosto, solucei em voz alta:
─ Meu Deus! Como pude me esquecer de Berta? Eu deveria saber que ela seria incapaz de se defender sozinha.
─ Infelizmente Berta não servia para os meus planos.
Aquela voz estentórica martelou meus ouvidos e, numa agonia de morte, perguntei-lhe:
─ E eu? O que acontecerá comigo? Cumpri com a minha parte, não?
─ Sim, você foi muito útil. Deixarei esta mala; quando eu estiver fora desta casa, poderá abri-la. Adeus!
E, virando-se em direção à porta, sumiu pelos degraus ascendentes. Pude ouvir o barulho da porta da frente se fechando.
Fez-se alguns segundos de silêncio que pareceram toda uma eternidade. Logo após, abri o fecho daquela mala fatídica.
Nas ruas gélidas da velha cidade adormecida, quebrou o silêncio cúmplice um grito final, que se perdeu em alguma ruela imunda. Depois, fez-se silêncio, novamente, raramente quebrado pelos ganidos de algum cão vadio que perambulava sem rumo pela cidade perdida na neblina.
Sergio Diniz da Costa: Conto ‘Em busca do meu Natal’
Sergio DinizUm menino descalço, com camisa desbotadae um caução surrado... Criador de imagens do Bing
“A primeira impressão que tive foi de que se tratava de uma criança de rua, abandonada. E, em assim o sendo, tudo daquela vitrine e do interior da loja representava-lhe tão somente sonhos.”
A vitrine e o interior da grande loja da esquina estavam totalmente tomados pela decoração de Natal.
Um Papai Noel mecânico, tamanho adulto, postado na entrada da loja, tocava as músicas tradicionais de Natal, atraindo, assim, os transeuntes.
No interior da loja, uma enorme variedade de brinquedos, a maioria aparentando alta tecnologia, deslumbrava os olhos das crianças… e preocupava os bolsos dos adultos!
Do lado de fora da loja, eu observava, um tanto quanto alheio, a disputa pelos presentes da moda. E ali eu estava, a princípio, para comprar alguma lembrança para familiares, parentes e amigos.
De repente, algo me chamou a atenção; ou melhor, alguém! Ao meu lado, somente então observei que uma criança também olhava a vitrine e o interior da loja.
Era um menino, magrinho, aparentando ter entre 7 a 9 anos de idade. Estava descalço e vestia uma camisa já desbotada e um calção surrado.
A primeira impressão que tive foi de que se tratava de uma criança de rua, abandonada. E, em assim o sendo, tudo daquela vitrine e do interior da loja representava-lhe tão somente sonhos.
Todavia, ainda que aparentando ter consciência disso, o menino se deleitava, apenas pelo contemplar do grande Papai Noel, dos brinquedos, dos enfeites e das luzes natalinas.
Aquela imagem gerou-me uma mistura indefinida de sentimentos. E, num primeiro momento, lembrei-me que um dos meus propósitos dos finais de ano ─ até esse momento nunca realizados ─ era escolher uma daquelas cartinhas que as crianças pobres colocam nos correios, na esperança de ganharem presentes, e os pais, uma ceia de Natal.
Vi, naquele instante, naquele garotinho, a oportunidade real de reconciliação com minha consciência.
Entusiasmado, e sem pensar nos gastos, antes mesmo de procurar saber seu nome, perguntei-lhe qual dos brinquedos da loja ele gostaria de ganhar.
Ele olhou-me com um olhar de grata surpresa e, sem titubear, apontando para um canto da loja, respondeu:
─ Aquele ali, o autorama!
─ Autorama? ─ perguntei-lhe, meio que contendo uma risada.
─ Sim, o autorama ─ ele insistiu, convicto.
A minha surpresa e a minha risada tinham razão de ser, pois esse brinquedo, pelo menos na época da minha infância, era um dos brinquedos que toda criança sonhava ganhar. E, naqueles moldes, deixou de ser fabricado há muito tempo.
─ Mas, filhinho, eu não estou vendo esse brinquedo naquele canto. E não estou vendo, porque ele não existe mais. Ele não é mais fabricado. Você tem certeza de que ele está lá?
─ Tenho, tio! Olha lá os carrinhos correndo…
─ Filho, você não prefere outro brinquedo?
─ Não, tio! Eu morro de vontade de ter um autorama!
A insistência dele despedaçou meu coração e, ao mesmo tempo, me deixou preocupado. Comecei a pensar que ele poderia ter algum problema mental. E, diante desta hipótese, tentei desviar o rumo da conversa.
─ Como é o seu nome, filhinho?
Ele me olhou como se não tivesse ouvido a pergunta. E, sem insistir nela, fiz outras tantas:
─ Qual é a sua idade? Onde você mora? Onde estão seus pais? Você está na escola?
Não obtive nenhuma resposta a elas, porém.
Diante desse silêncio, olhei novamente pra dentro da loja, procurando por algum brinquedo do qual, talvez, ele pudesse gostar.
Ao me deparar com um, com o qual apostei como um substituto, decidi-me por oferecê-lo à minha enigmática criança. O menino, todavia, já não estava mais ao meu lado. Ele estava virando a esquina. E, ao completar a curva, desapareceu da minha vista. E, num primeiro momento, para sempre da minha vida!
Aquela partida repentina deixou-me perplexo, desorientado, angustiado…
E somente naquele momento dei-me conta de que, quando menino, eu também desejava, ardentemente, ter um autorama. Entretanto, assim como outros tantos brinquedos, nunca o tive!
E também percebi, somente naquele momento, e agora mais claramente, que nem o Papai Noel tocando as músicas natalinas, nem a grande árvore de Natal toda decorada, nem os brinquedos, nem os enfeites e nem as luzes natalinas exerciam mais em mim o mesmo efeito de outrora.
Eu me tornara adulto e já entrando na terceira idade. E as muitas perdas, de coisas e de pessoas pela vida afora, levaram consigo, também, o encanto do Natal.
Olhei novamente para a esquina, tentando, mais uma vez, encontrar o garotinho. Mas, ele se fora, definitivamente. E, com ele, em seguida, eu também. Em busca do meu Natal… do meu Natal-menino!
Sergio Diniz da Costa: Conto ‘O menino que brincava nas nuvens’
Sergio DinizMenino olhando as nuvens Criador de imagens do Bing
Meu compromisso, no centro da cidade, era às 17h. Resolvi chegar às 16h e sentei-me num dos bancos da praça central de uma das maiores cidades do Interior do Estado de São Paulo, com 361 anos de fundação e uma população de aproximadamente 640 mil habitantes, que o tempo, a Administração Pública e os empresários e artistas transformaram-na numa bela e progressista cidade.
Com a maioria de suas ruas asfaltadas, prédios em construção pululando por todos os cantos, comércio pujante, com uma miríade de empresas e pessoas físicas prestadoras de serviços e uma significativa frota de veículos circulando diariamente, reflete bem uma cidade moderna, porém com toda sorte de problemas, incluindo a violência, sempre aumentando, como o são os grandes centros urbanos.
Assim eu mergulhava em meus pensamentos enquanto, aparentemente ao acaso, abri em uma das páginas do livro de poemas que trouxera, a fim de aguardar o horário do meu compromisso. No alto da página, o título: “Eu Sou Aquele Menino”, do poeta brasileiro Paulo Bomfim, membro da Academia Paulista de Letras e conhecido como “O Príncipe dos Poetas Brasileiros”. Eu já o conhecia e ele se tornara um dos meus preferidos, quando então estudante do ensino médio, tive a oportunidade de assistir a uma palestra desse grande poeta.
Grato pelo “acaso”, e já um tanto quanto absorto, comecei a ler os versos, em meia voz:
“Eu sou aquele menino/ Que o tempo foi devorando,/ Travessura entardecida,/ Pés inquietos silenciando/ Na rotina dos sapatos,/ Mãos afagando lembranças,/ Olhos fitos no horizonte/ À espera de outras manhãs/…”
─ Ei, moço, tá falando sozinho?
Assustado, interrompi a leitura. Um garotinho de camisa branca, short marrom e descalço, aparentando cinco anos de idade, me olhava, com uma mão segurando os dedos da outra e com uma expressão interrogativa.
─ Ah, não, eu estava declamando um poema em voz alta. Apenas isso ─ respondi, um tanto quanto encabulado e, certamente, corado, uma vez que, em termos de comportamento, sou do tipo sanguíneo.
─ Poema? O que é um poema? ─ mais uma vez ele me questionou.
A pergunta me pegou de surpresa. Em primeiro lugar, por ter vindo de uma criança com tão pouca idade. Depois, porque, apesar de eu ser um escritor e poeta ─ meu compromisso era com um novo amigo que me pedira ajuda para publicar um livro ─, senti-me sem didática suficiente para explicar algo que, para mim, era tão simples.
─ Poema é um… é um…. Travei! De repente, olhando para dentro de mim mesmo parecia que toda a teoria desse gênero literário sumira da minha memória, apesar de tão bem guardada que estava (assim eu pensava) no meu cérebro, na gaveta ‘Poemas’.
“E agora, José?” ─ pensei rapidamente com meus botões, lembrando o famoso poema do inesquecível poeta mineiro Drummond de Andrade.
Ainda imerso em pensamentos confusos, e sem a resposta esperada, quase que respondi a ele, como respondeu Drummond, no mesmo poema: “… A festa acabou/ a luz apagou,/ o povo sumiu,/ a noite esfriou…”.
Na verdade, em me sentindo o mesmo José de Drummond, percebi que aquele garotinho tinha-me colocado contra a parede. E, de repente, não mais que de repente (Drummond, sempre Drummond…), essa sensação me trouxe certa irritação, pois, afinal de contas, aquele filhote de homem colocara em xeque um adulto estudado, um escritor, um intelectual, e a primeira vontade que tive foi de mandar aquele pingo de gente procurar seus pais. “Aliás, onde estavam os pais dele?” ─ perguntei a mim mesmo.
Antes de responder a ele, perguntei-lhe:
─ Como é o seu nome, meu filho?
─ Tato! ─ ele respondeu com certo orgulho no olhar.
─ Tato?! ─ exclamei, agradavelmente surpreso, pois esse também era o meu apelido de infância. E, a partir daquele momento, senti um carinho e admiração especiais por aquele menino questionador.
─ Quantos anos você tem, meu jovem curioso?
Ele me apontou uma das mãos aberta e respondeu:
─ Assim, ó!
Entendi que ele queria dizer 5 anos e somente naquele momento me chamou a atenção algo em seu rosto: uma cicatriz!
Aquela constatação, aliada à idade dele, me causou uma estranhíssima sensação, uma sensação de déjà vu, uma vez que eu, na mesma idade dele, fui vítima de um acidente caseiro que me custou uma cicatriz ─ e no mesmo lado do rosto que a dele! ─, fato esse que me transformou num menino e adolescente tímido e complexado.
Essa constatação me trouxe um sentimento de profunda simpatia e solidariedade por aquele garotinho. E lágrimas abundantes, também.
Senti uma vontade irreprimível de abraçá-lo, de pegá-lo em meu colo, de fazer milhares de perguntas sobre sua vida…
E levantei-me, a fim de fazer isso. Todavia, algo ainda mais estranho aconteceu: aquela figura simplesmente desapareceu da minha visão!
Estupefato, deixei-me cair sentado no banco, mergulhado num turbilhão de perguntas sem respostas. E, num primeiro momento, senti vontade de sair correndo, correndo daquela praça, sem nenhum destino, à espera, talvez, de que o vento no meu rosto decifrasse as dúvidas.
Entretanto, o adulto que me tornei falou mais alto e, respirando calma e profundamente, tentei me recompor e, como se nada tivesse acontecido, meio que automaticamente, continuei a leitura, agora em voz alta, do poema iniciado:
“─ Ai paletós, ai gravatas,/ Ai cansadas cerimônias,/ Ai rituais de espera-morte!/ Quem me devolve o menino/ Sem estes passos solenes,/ Sem pensamentos grisalhos,/ Sem o sorriso cansado! Que varandas me convidam/ A ser criança de novo,/ Que mulheres, só meninas,/ Me tentam cabular/ As aulas do dia a dia?/ Eu sou aquele menino/ Que cresceu por distração.”
Mal terminando a leitura, senti que meus olhos já não focavam mais o ambiente em que me encontrava; um estado de devaneio começou a tomar-me o corpo, a mente e o espírito. Já não conseguia mais sentir o próprio corpo e o som ambiente: uma mistura de buzinas, música de publicidade e vozes, destacando-se a de um evangélico que pregava como um João Batista no deserto. Tudo começava a diminuir de intensidade.
Os ponteiros do relógio giraram no sentido anti-horário. Os segundos, os minutos, as horas, os dias, os meses, os anos escoaram numa velocidade vertiginosa, como se aquela ampulheta imaginária fosse a Máquina do Tempo, da fantástica história de H.G. Wells. E, de repente parando, à minha frente uma folhinha pendurada na parede apontou o ano: 1965. Cinquenta anos se passaram, numa volta ao passado!
Estamos numa tarde de verão de uma Sorocaba de meio século atrás, com uma população cujo censo de 1960 apontava uma população de 138.323 habitantes.
Há cinquenta anos, a cidade tropeira já se destacava na região pelo número de habitantes, mas, apesar disso, ainda era uma típica cidade do Interior, com muitas áreas verdes (e mato), ruas de paralelepípedos e de terra onde, nestas, a criançada fazia buracos no chão pra brincar de bolinha de gude ou de cachuleta, ou, ainda, de pega-pega, unha na mula e outras brincadeiras que o Tempo levou consigo para as Páginas da Memória.
Era uma época em que os ponteiros do relógio pareciam caminhar a passos lentos e os dias escoavam como a própria eternidade.
Começo a caminhar por uma das ruas, sentindo-me como um espectro, um fantasma semelhante a Ebenezer Scrooge, o velho avarento de ‘Um Conto de Natal’, célebre história do escritor inglês Charles Dickens.
Aquela rua me desperta uma emoção há muito tempo não sentida. Uma saudade dolorida de um tempo em que, nos bairros, principalmente os mais pobres, os vizinhos mantinham uma relação de amizade muito próxima.
Pouquíssimas casas tinham televisores ─ em preto e branco ─, o que levava os vizinhos que os tinham a abrir a casa para os que não desfrutavam desse privilégio.
Nas festas mais importantes do ano, como o Natal, todas as portas se mantinham abertas para um intercâmbio de frutas natalinas e de quitutes, conforme a especialidade de cada vizinho.
Caminho absorto, à procura de pessoas queridas, porém, apenas ouvindo ecos do passado.
É um final de uma tarde de verão e, no mesmo lugar de sempre, deparo-me com o menino que um dia eu fui. Um menino de 5 anos de idade, com um corte de cabelo tipo ‘americano’, de camisa branca (já um tanto surrada), de calção e descalço, sentadinho no degrau de uma casa.
A rua, àquela hora, já se mostrava praticamente vazia. Ele era a única criança fora de casa.
Os vizinhos já conheciam o garoto e sua inclinação contemplativa e já não mais estranhavam aquela figura miúda, magrinha que, de vez em quando, mergulhado em pensamentos, saboreava um pedaço de pão seco.
Um passante mais atento talvez observasse que ele, naquele momento eterno, olhava apenas para cima. E um ou outro até perguntava o que ele estava fazendo. E, para quem perguntasse, a resposta era sempre a mesma: olhando as nuvens!
Para os adultos, em particular as mulheres, olhar as nuvens parecia coisa própria de quem quer verificar o tempo, para poder secar roupas no varal. Ou de meteorologistas, antes de consultar seus gráficos.
Para aquele menino, todavia, as nuvens tinham outro significado. Principalmente as do tipo ‘cumulus’, que são aquelas de contornos nítidos, com base aplainada e bem definidas, formadas em baixas altitudes e que, sob a ótica dele lembravam montanhas, castelos e animais.
Para aquele menino sonhador, de um tempo de infância interiorana, de horas lentas, ruas de terra ou de paralelepípedos e de poucos carros, aquelas nuvens representavam um enorme Parque de Diversões. E seu desejo era, um dia, alcançar o topo daqueles algodões branquíssimos que, para ele, tinham consistência e poderiam, dessa forma, ser escalados.
Seu sonho, no entanto, tinha um obstáculo intransponível: como chegar até elas? E os dias passavam, as tardes se faziam noite e, nos outros dias, pelo verão afora, lá estava aquele pequeno ‘filósofo da natureza’, à espera de um foguete imaginário ou mesmo um Pegasus que o levaria, literalmente, ‘às nuvens’.
Se os vizinhos em geral já não estranhavam aquele devaneio diário, um ou outro o interpelava, zombando dele ou apenas a título de curiosidade:
─ Tato, mas por que tanto você olha paras as nuvens?
E a mesma resposta já estava na ponta da língua:
─ Por que eu gosto, ué!
─ E por que você gosta tanto assim de ver as nuvens?
Aquela pergunta parecia exercer um efeito mágico no espírito do menino e ele, feito um adulto, um cientista ou, mais precisamente, um poeta, respondia, entusiasmado:
─ Tá vendo aquela ali? ─ E, apontando para uma não muito arredondada, a definia:
─ Aquela parece um cachorro.
─ E aquela outra, bem grande, no meio do céu? Aquela é a que eu mais gosto. Ela parece assim como se fosse um monte de travesseiros, um em cima do outro, formando uma montanha. Eu morro de vontade de subir e de brincar nela!
Os adultos sorriam diante daquelas palavras, para eles tão destituídas de realidade. E, despedindo-se do menino, certamente pensavam: “Criança tem tanta imaginação!”
E o menino ali continuava, qual uma sentinela. E, naqueles poucos e fugidios momentos, como num filme projetado em alta velocidade, o vi crescendo; crescendo e continuando a querer brincar nas nuvens.
Mas, assim como as nuvens se desmancham, sopradas pelo vento, aquele menino foi se desfazendo à minha frente e, com ele, as casas, a rua toda… e a minha infância, também!
Uma sirene ecoou estridentemente no ar e meu coração disparou. Abri meus olhos e, assustado e decepcionado, percebi que estivera sonhando. Estava na mesma praça onde ouvia as mesmas buzinas, a mesma música de publicidade e as mesmas vozes, num ruído que parecia ensurdecedor.
Consultei o meu relógio: marcava 16h15. Praticamente o mesmo horário em que conversava com o menino.
Com um sentimento de tristeza a apertar meu peito, não senti vontade de continuar a leitura dos poemas. E, menos ainda, de me levantar do banco.
Contudo, logo mais teria que cumprir o compromisso assumido.
Num esforço redobrado, reuni forças e levantei-me, ainda visivelmente contrariado.
Naquele momento um homem passou por mim carregando um espelho grande. Olhei para ele e me vi refletido. E me vi ainda mais velho e abatido, como se o espelho fosse o famoso retrato de Dorian Gray.
Uma brisa, porém, pareceu roçar meu rosto. Apesar da tarde quente e sem vento, podia jurar que em todas as árvores ao redor as folhas se agitavam, suavemente.
Um passarinho multicolorido voou de uma das árvores em minha direção e, passando por mim, ganhou altura.
Segui seu voo com meus olhos e, somente naquele momento, percebi uma gigantesca nuvem cumulus bem no centro da minha visão.
E, no topo dela, alguma coisa me chamou a atenção: era um menino!