Pedro Novaes: 'Eu, artista'

   Pedro Israel Novaes de Almeida: ‘EU, ARTISTA’

Sonhei que era artista.

O estrelato começou quando deixei cair, no chão de uma exposição, o velho radinho de pilhas, que havia acabado de retirar do conserto. Em questão de minutos, uma multidão cercava o aparelho, com teorias a respeito do simbolismo da obra.

“É um clamor pela humanização da mídia”, ponderou uma senhora, logo rebatida por um barbudo de óculos: “É um grito desesperado, de alguém espoliado pela ação desumana do capitalismo internacional, que sustenta a desinformação que escraviza o povo cansado e sofrido”.

Tentei reaver o dito cujo, e só não fui linchado por haver confessado ser o proprietário da “arte”. Flashes iluminavam o ambiente, e as perguntas da imprensa só pararam quando declinei o nome: “Pedro Almeida”, demasiado simples para alguém de renome internacional.

Deixei o rádio ali mesmo, no chão, e fui ao banheiro. Fui forçado a sair correndo, em virtude de um incêndio no cesto de lixo.

Com a calça nas canelas, caí, e acabei cercado por outra multidão. “É um protesto contra os dinossauros que criminalizam o nu artístico”, sentenciou uma moça com calça de jeans, rasgada ainda na indústria. “Um gênio, pois está com calças, e nu” disse o pelado da obra anexa.

Tratei de subir a calça, e pedi desculpas pelo acontecido. “Foi a labareda que acelerou a caminhada”, disse.

“É poeta”, exclamou um senhor de terno e gravata. “É um vidente, prevendo um grande incêndio que vai salvar a humanidade”, respondeu a acompanhante.

Como a barra da calça ainda soltava fumaça, tratei logo de soprá-la. “Também é cantor lírico, soprano”, gritou, entusiasmada, a velhinha.

A duras penas, consegui driblar os curiosos e sair da exposição, levando meu radinho. Na calçada, senhor com cara de santo, já alvo da Lava Jato, estava retido por uma multidão, flagrado tentando subornar um guarda de trânsito.

“ Convém esperar pela polícia, para que a justiça determine uma solução”, aconselhei. Imediatamente, alguns transeuntes pediram que me candidatasse a legislador, para irradiar legalismo e humanismo irrestritos.

Outro grupo, que queria das uns tapas no sujeito, começou a gritar que ele estaria solto em algumas horas, ou cumprindo férias em suntuoso cárcere domiciliar, esbanjando os milhões que havia roubado. Diziam que eu era um banana, e que não devia ser candidato a nada. Resolvi ficar quieto.

Saí do ambiente, e fui seguido por um terceiro grupo, mais numeroso, gritando que eu havia demonstrado ser um sábio, com pendor político, líder nato, pois havia fugido da controvérsia, como se a tentativa de suborno não existisse. De repente, os grupos começaram uma batalha campal, aos gritos de “coxinha”, mortadela”, “banana”.

Antes mesmo de acordar, fiquei com saudades do período em que era só mais um artista.

pedroinovaes@uol.com.br

O autor, temporariamente sem estômago para assuntos sérios, é engenheiro agrônomo e advogado, aposentado.