Artigo de Guaçu Piteri: BAR DO POVO (cont.)
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( continuação )
A cena mais curiosa que se passava entre os três ocorria quando Ferreira e Jaime se punham a discutir junto ao balcão do bar atraindo a atenção de Honório que se aproximava da porta, mas não entrava. Ficava em posição estratégica junto à soleira ouvindo a conversa, atentamente, pronto para a eventualidade de ser convidado a opinar. Mas só se manifestava se fosse convocado para intermediar a pendenga. Se não solicitassem sua interferência não se intrometia. Ouvia calado. Não tardava, porém, até que a controvérsia se tornava mais acirrada. Honório, chamado a opinar, tinha a resposta na ponta da língua. Pronunciava o veredicto de forma direta, doesse em quem doesse.
Mal concluía o julgamento era contestado e inquinado de faccioso. De árbitro decaía à condição de litigante. Envolvia-se na discussão, tomava partido e incendiava a disputa.Nessas ocasiões, ocorria o que eu procurava evitar a todo o custo. Queriam ouvir minha opinião. Eu tentava me esquivar, mas quando não era possível aceitava pacientemente o constrangimento que obedecia sempre o mesmo ritual. No começo, advertiam-me das restrições à validade do meu julgamento. Começavam por me alertar de minhas limitações:
— Vamos ver o que tem a dizer o rapaz… (O termo rapaz era enfatizado para desqualificar-me a intervenção).
— Deve ter algum conhecimento. Afinal, não há de ser só para lustrar a carteira que vai à universidade.
“Algum conhecimento”, “lustrar a carteira” pensava eu sentindo-me acuado e desprezível.
Reticente e respondendo com evasivas, nem sempre conseguia me manter neutro como era meu desejo. Quando não era possível me omitir, já se sabia, antecipadamente, a reação dos contendores. Quem se sentisse vitorioso proclamava com empáfia:
— Não falei? Canso de repetir, mas esses dois teimosos são incapazes de compreender.
As partes que se julgavam prejudicadas – sempre havia duas nessas condições – se voltavam contra mim. Perguntavam o que me ensinavam na escola antes da clássica conclusão: quando digo que a educação, neste país vai de mal a pior…
A verdade é que, a despeito da intervenção de quem quer que se atrevesse a intermediar a contenda, os litigantes nunca chegavam ao consenso. Apelavam, então, ao derradeiro recurso. Sem parar de discutir, seguiam na direção da barbearia, distante cerca de vinte metros. Jaime, mais jovem e mais afoito, ia à frente seguido de Honório e de Ferreira que, mais lerdo porém mais agressivo, provocava:
— Vamos consultar o pai dos burros, pipoca. Quero ver, então, qual será a desculpa dos sabichões.
No modesto salão do barbeiro, de cerca de quatro metros de frente por seis de fundo, os contendores compulsavam pilhas de livros que Honório tinha sempre à mão para pesquisa. Abriam e folheavam o dicionário, os livros de humanidades, conforme o tema da discórdia. Liam, reliam, argumentavam e seguiam na polêmica interminável.
Rivais apaixonados, o que fazia dos três litigantes amigos inseparáveis? Como eram? Como pensavam?…
*Tópicos do liro Sonhar é Preciso – Edifieo; 2008, esgotado
(Continua)