Artigo de Marcelo Paiva Pereira: 'Intervenção urbana em favelas'

favelaINTERVENÇÃO URBANA EM FAVELAS

No Brasil as favelas tem sido objeto de políticas de intervenção desde os anos 30 do século XX, em razão de suas influências espaciais e sociais nas áreas urbanas. Em três são os principais tipos de política de intervenção, na ordem temporal de surgimento:

  1. desfavelamento;
  2. reurbanização;
  3. urbanização.

Referidas políticas de intervenção vem sendo praticadas desde o surgimento de cada até o presente, na razão do interesse público para as peculiaridades de cada favela. Serão examinadas como abaixo seguem.

Do Desfavelamento

Esta intervenção urbana é um processo de erradicação de favelas e teve início nos anos 30 – e 40 – do século XX em diferentes cidades brasileiras, permeado por um contexto de modernismo existente à época.

Quando da proclamação da República – aos 15.11.1889 – a corrente filosófica dominante no Ocidente era o Positivismo de Auguste Comte, a qual atribuía natureza científica às ciências sociais, tornando-as mais rigorosas e menos especulativas nas pesquisas e teorias.

Foi sob essa corrente que o Brasil proclamou a República e reorganizou-se legislativamente com codificações normativas infraconstitucionais, das quais o Código Civil de 1916 e o Código Penal de 1940 foram expoentes que revogaram, respectivamente, as Ordenações do Reino e a Consolidação das Leis Penais, visando à positivação do conhecimento e das ciências sociais (das quais o Direito faz parte). Dentro desse panorama estavam as vertentes do modernismo e do sanitarismo.

Quanto ao modernismo, este tem o escopo de inovar em todas as frentes do conhecimento, criando novos conceitos e valores em substituição dos anteriores, provocando a ruptura do historicismo que até então permeava as cargas valorativas das sociedades. No Brasil, entendeu-se pela supressão de todos os valores e culturas existentes antes da República, como era a escravidão e tudo o quanto a ela se assemelhasse. Nas cidades brasileiras da época os cortiços e as favelas eram os ambientes dos ex-escravos e outras pessoas sem raiz (solidez patrimonial e familiar), devendo ser removidos do ambiente urbano (modernista) que se pretendia inaugurar.

Quanto ao sanitarismo, este tem o escopo de eliminar todos os focos de propagação de doenças e epidemias no ambiente urbano, porém, desprovido de recursos tecnológicos (mais) eficazes. Esta carência tecnológica limitava as possibilidades de combate às doenças e criava aversão pelos ambientes inadequados (insalubres) ao bem estar individual e social. Nas cidades brasileiras da época, os cortiços e as favelas eram os ambientes mais hostis ao sanitarismo, devendo ser removidos do ambiente urbano.

O desfavelamento consiste em retirar os favelados do ambiente urbano em que se encontram e realoca-los em locais periféricos, ainda que em habitações adequadamente planejadas e construídas para recebe-los. O gravame resultante foi o distanciamento dos locais de trabalho e da infraestrutura urbana, como são exemplos o serviço de transporte público e as áreas de comércio, serviços e lazer.

Aludido tipo de intervenção urbana foi muito utilizado nas cidades do Rio de Janeiro (1930 até 1970), Recife (final dos anos 30 do século XX) e São Paulo (1971 em diante). São exemplos de desfavelamento as obras da Vila Kennedy, Vila Aliança e Vila Esperança, todas na cidade do Rio de Janeiro (década de 60 do século XX).

Da Reurbanização

A reurbanização teve início na década de 70 do século XX, que experimentou vertiginoso crescimento das cidades – e das favelas – e é um processo resultante da reação ao desfavelamento, tendo por preservar onde se encontra o morador da favela, mas beneficiando-o por serviços urbanos e construções mais adequadas à moradia e ao bem-estar. É, pois, o direito à localização na cidade que se tornou o bem maior do favelado e objeto de interesse público (e político).

O morador da favela quer mais do que mera habitação: a ele interessam os equipamentos públicos existentes nas cidades, os quais favorecem a circulação de pessoas, serviços e bens e que também permitem o lazer.

A cidade do Rio de Janeiro abraçou essa ideia, aproveitando-se dos modelos de habitações em construção na Europa do pós-guerra, cujas cidades foram devastadas pelas Forças Armadas dos Aliados e da Alemanha nazista, que lá se enfrentaram (1939-45).

As habitações populares do Pedregulho, do Conjunto Marquês de São Vicente e Catacumbas são exemplos desse processo de intervenção, construídos entre 1946 e 1958. Foram construídos no mesmo local onde antes havia favelas, porém, todas periféricas à cidade do Rio de Janeiro (assemelhando-se ao desfavelamento).

Paralelamente ao poder público carioca, a Igreja Católica também promoveu ações de reurbanização de favelas na cidade do Rio de Janeiro, através da instituição intitulada Cruzada São Sebastião, criada em 1955 por D. Helder Câmara, como abaixo seguem:

  1. na favela Parque da Alegria, ocorreu a (re)urbanização pelo sistema cooperativista e de esforço próprio, mediante permissão da EFCB – Estrada de Ferro Central do Brasil – proprietária dos terrenos;
  2. no bairro de São Sebastião, no Leblon, removeu as favelas existentes para atender às obras dos parques proletários e dos prédios residenciais;
  3. na favela Morro Azul, uma parte dos favelados, que habitava as áreas de risco, foi removida para um edifício construído nessa favela, enquanto os demais permaneceram em seus locais de moradia, mas todos beneficiados por melhorias (sistema viário, escadas, bicas d’água, esgoto, etc.).

Em 1966 o escritório Quadra Arquitetos inovou no tratamento dado à reurbanização de favelas, ao prestar assessoria aos moradores, conduzindo os trabalhos de reurbanização com técnicas arquitetônicas e urbanísticas. As favelas que tiveram essa assessoria foram do Catumbi e Brás de Pina.

Nesse momento discutia-se o desenho urbano das favelas e as alternativas de remodelação menos gravosas do que a remoção. Mas os entraves da legislação urbanística impediam a reprodução urbana nas favelas nos moldes exigidos pelas administrações públicas.

O poder público assumiu a questão das favelas através de suas secretarias ou de divisões de assistência social, tendo desenvolvido projetos para várias favelas, como são exemplos a favela do Gato em Niterói, a de Brasília Teimosa em Recife e a de Alagados, em Salvador. No que se refere ao tratamento jurídico do uso do solo pelos favelados, eles somente poderiam utiliza-lo para moradia, e não para serviços nem comércio.

Na cidade de São Paulo, a favela Recanto da Alegria foi objeto de reurbanização (1985) promovida pelo Laboratório de Habitação da Faculdade de Arquitetura Belas Artes, coordenado por Nabil Bonduki.

Nessa favela – assim como em outras assistidas pela prefeitura paulistana – eram demolidas todas as casas, o local era reparcelado e reconstruídas as casas com infraestrutura; mas, diferentemente das outras favelas, a do Recanto da Alegria apresentou desenho urbano e processo de execução diferenciados, cujos projetos foram adaptados às necessidades de cada morador e a execução das obras foi em mutirão.

A reurbanização das favelas ocorreu em muitas cidades, das quais se destacam Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Vitória e Santos. Cabe salientar que, na reurbanização de favelas, é “conditio sine qua non” a demolição dos barracos e casas precárias e a construção de habitações com infraestrutura adequadas ao bem estar. O gravame é o elevado custo para os cofres públicos e as dificuldades de realocação dos favelados durante as obras.

Da Urbanização

A urbanização de favelas foi o resultado de experiências bem sucedidas em favelas das cidades do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte em introduzir infraestrutura urbana parcial para minimizar os gravames nelas existentes. Para assim fazerem, desenvolveram novos padrões de infraestrutura básica a elas, visando ao fornecimento de energia elétrica e água das redes públicas.

Em Belo Horizonte, desenvolveu-se o “kit” de iluminação pública, consistente em poste metálico mais leve e mais barato, muitas vezes sem medidor de consumo e com baixas cargas. Foi um marco, inovador, para urbanizar as favelas a baixo custo ao poder público. Em seguida, utilizou-se do PEAD, tudo de polietileno flexível para fazer a distribuição de água aos favelados.

Para coletar os esgotos, criou-se o esgoto condominial em Pernambuco, chamado de esgoto comunitário no Rio de Janeiro. A argamassa armada, desenvolvida pelo arquiteto João Filgueiras Lima – vulgo Lelé – para canalizar córregos e as escadas drenantes foram utilizadas em favelas de Salvador. A argamassa armada também foi acolhida para canalizar córregos em favelas de São Paulo, Itapevi e Rio de Janeiro.

A característica da urbanização é a preservação da maioria das habitações nas favelas, demolindo somente as de elevado risco e as necessárias para a abertura de vias públicas ou para canalização de córregos ou esgotos. Neste processo não se derrubam as casas (como ocorre na reurbanização), para reduzir custos ao poder público. Na urbanização de favelas há a introdução de equipamentos públicos adaptados à realidade espacial e econômica dos moradores, com vistas à melhoria da qualidade de vida deles nesse mesmo local.

Da urbanização integrada

Referido subtítulo se reporta ao processo de urbanização de favelas, criado em 1983 pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social – SMDS – do município do Rio de Janeiro, com a finalidade de estruturar ações permanentes nas favelas.

À luz desse processo, desenvolveu-se o conceito de ação planejada e ampla em favelas, batizada de urbanização simplificada. Para arrecadar recursos externos à prefeitura, a SMDS criou o Programa de Urbanização Integrada, com o qual visava a ações plurianuais de urbanização – e não mais obra a obra, como antes se fazia.

Referido processo de urbanização teve início nos anos 80 do século XX, quando as prefeituras assumiram as favelas como realidade social e urbana, indissociável das questões urbanísticas dos seus municípios.

Nesse processo de urbanização integrada, as favelas devem ser beneficiadas com a total integração das suas habitações à infraestrutura urbana, sendo esta a dos acessos ao transporte, água, esgoto, drenagem, coleta de lixo, luz, iluminação pública, pavimentação, paisagismo e mobiliário urbano, com a legislação do planejamento urbano do município.

Da urbanização de favelas como política urbana e social

Em três são os programas de urbanização integral de favelas que mereceram destaque em razão do arrojo experimentado e dos profissionais envolvidos:

  1. programa de urbanização de favelas de São Paulo na gestão de Luíza Erundina (1989 a 1992);
  2. programa de saneamento ambiental do reservatório de Guarapiranga (1992; 1995 em diante);
  3. programa favela-bairro do Rio de Janeiro na gestão de César Maia (1993 a 2008).

Em relação ao programa de urbanização de favelas de São Paulo na gestão de Luíza Erundina (1989 a 1992), inovou-se às favelas visando, com o mais amplo atendimento, responder à necessidade global dos assentamentos de acessarem a infraestrutura e o saneamento básico.

Pretendeu-se com essa inovação em fazer obras em diversas favelas a baixo custo e com padrões urbanísticos passíveis de incorporação à manutenção urbana. Nabil Bonduki – arquiteto superintendente da HABI (setor responsável por habitação social na SEHAB – independente da COHAB) – definiu a diretriz básica de urbanização sem demolições.

Os profissionais envolvidos foram bem sucedidos na elaboração de uma estrutura gerencial capaz de multiplicar as ações, descentralizando os contatos e o desenvolvimento dos programas de necessidade a cada favela e centralizando as licitações e o acompanhamento dos projetos e obras.

Em relação ao programa de saneamento ambiental do reservatório de Guarapiranga (1992; 1995 em diante), o propósito foi recuperar esse reservatório para o abastecimento de água à região metropolitana, em razão das favelas à sua margem liberarem esgotos ou por impedirem a implantação de redes de esgotos aos bairros vizinhos. Nesse programa, as favelas eram os agentes acessórios – e não os principais – de sua execução.

Em relação ao programa favela-bairro do Rio de Janeiro na gestão de César Maia (1993 a 2008), incorporaram-se ações de ampliação de oportunidades de melhoria das condições socioeconômicas aos favelados, valendo-se de programas de geração de renda e emprego e de construção de equipamentos sociais nas favelas.

O programa favela-bairro incorporou em seus projetos equipamentos públicos, áreas verdes e de esportes. Também admitiu a construção de algumas unidades para locação comercial, inclusive para pessoas externas à favela. Inovou, esse programa, na criação do POUSO – Posto de Orientação Urbanística e Social – que tem a finalidade de evitar a ocupação dos espaços públicos da favela por outras construções e a deterioração das obras; também inovou na coleta de lixo ao criar o gari comunitário, que faz a coleta do lixo de maior porte, móveis velhos, entulhos e etc., paralelamente à coleta do sistema público, que coleta o lixo nas ruas acessíveis e nos pontos de transbordo (local para onde vai o lixo coletado pelos garis comunitários).

DA CONCLUSÃO

O tema aborda três tipos de intervenção urbana em favelas, as quais surgiram ao longo do tempo em momentos distintos, coexistindo na razão dos interesses políticos e econômicos de cada período em que a sociedade entendia a urbanização e seus efeitos sociais.

Enquanto no início do século XX a urbanização foi entendida como sinônimo de ordem social e progresso tecnológico e científico, a erradicação das favelas (o desfavelamento) dos centros urbanos era a posição dominante do poder público – e da própria sociedade. Neste período a insalubridade era um gravame perigoso à saúde pública, havendo precárias técnicas de combate às doenças e endemias.

A reurbanização melhorava a qualidade das moradias dos favelados, mas era executada em favelas na periferia dos centros urbanos, de modo a deixar os moradores à margem dos benefícios dos serviços e equipamentos públicos das cidades. Também era muito onerosa aos cofres públicos.

A urbanização integrada foi o modelo mais adequado aos poderes públicos quanto à relação custo-benefício, inclusive para os moradores das favelas, visto ser executada com equipamentos planejados, de menor custo, e com maior diversidade de equipamentos públicos, introduzindo-se praças arborizadas, quadras esportivas e outros, do interesse de cada comunidade de favelados.

A intervenção urbana em favelas era tratada como gravame de ordem pública e social, posta à margem dos planejamentos urbanos. A partir da década de 80 do século XX foram tratadas pelos poderes públicos como questão urbana, fazendo parte do tecido urbano e dos gravames das cidades, devendo ser objeto de soluções urbanas integradas.

Qualquer delas é garantida pelo direito à moradia, expressamente prevista no art. 5º, XXII e XXIII, da Constituição Federal, que tratam do direito à propriedade e à função social da propriedade, corroborada pelo art. 1228, caput e §§ 1º ao 5º, do Código Civil, além de outros diplomas legais.

Em suma, a intervenção em favelas é uma realidade indissociável da vida nas cidades, devendo os poderes públicos operarem no tecido urbano em geral e nas favelas em especial com o fito de as integrarem ao ambiente urbano e atingir o bem estar dos favelados e dos demais habitantes urbanos. Nada a mais.

 

Marcelo Augusto Paiva Pereira.
(o autor é aluno de graduação da FAUUSP)

 

BIBLIOGRAFIA

OBRAS PESQUISADAS

ASSIS, Olney. Aulas de sociologia do direito. Complexo Educacional Damásio de Jesus. Não publicado. Nov/dez. 2010.

BRASIL. Código Civil. Código de Processo Civil. Código Comercial. Constituição Federal. Legislação Civil, Processual Civil e Empresarial. Organizado por Yussef Said Cahali, 13ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.

BRASIL. Código Penal. Código de Processo Penal. Constituição Federal. Legislação Penal e Processual Penal. Organizado por Luiz Flávio Gomes, 13ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.

BUENO, Laura Machado Mello. Projeto e Favela: metodologia para projetos em urbanização. Capítulo 4: Desenvolvimento dos Métodos de Ação e Projeto em Favela, FAUUSP, 2000, págs. 161 a 206.

 

SITES PESQUISADOS

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