Celso Lungaretti: 'É imperativo somarmos nossos esforços aos daqueles que igualmente respiram liberdade e sufocam sob o autoritarismo'

Celso Lungaretti: ‘MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA EM TERRENO MINADO’

Só ingênuos esperavam que um Jair Bolsonaro da vida trocasse a retórica miliciana pela de estadista no momento da vitória eleitoral.

Os que priorizamos os interesses maiores do povo brasileiro sabemos que a pacificação dos espíritos é desesperadamente necessária para evitar-se mais derramamento de sangue e ponto de partida para podermos oferecer algum alívio aos pobres, vulneráveis e excluídos que padecem há quatro anos sob a pior recessão da nossa História.

Mas, salta aos olhos que nunca foi esta a intenção dos que moveram os cordéis por trás da cortina para que um inadequadíssimo Bolsonaro ascendesse à presidência da República, com direito ao escamoteamento dos debates eleitorais e a ser beneficiado pelo pior estelionato eleitoral (a fraude das fake news + o abuso de poder econômico que a viabilizou) já perpetrado no Brasil. Caso contrário teriam escolhido um negociador, não um feitor.

No processo eleitoral de 2014 já exigiam que, fosse quem fosse o(a) eleito(a), impusesse o ajuste fiscal, principalmente as reformas previdenciária e trabalhista. Dilma Rousseff empossou o neoliberal Joaquim Levy como ministro da Fazenda para entregar-lhes a encomenda, mas ambos fracassaram.

Michel Temer, a opção seguinte, também não conseguiu desarmar a bomba-relógio da Previdência. Então, concluíram que só um Bolsonaro seria capaz de enfiar goela dos trabalhadores adentro medida tão impopular.

Há também as restrições ambientais que predadores gananciosos querem esmagar com seus tratores e derrubar com suas motosserras. E mais privatizações que os tubarões do mercado esperam ver concretizadas em condições extremamente vantajosas para eles, de pai para filho. Para tudo isso precisam de um Bolsonaro.

Que ninguém se iluda: os envolvidos nesse medonho projeto autoritário sabem que haverá protestos pipocando de todo lado e contam com o chicote presidencial para manietar os inconformados.

Então, o discurso de quem empunhará o látego foi bem coerente. Não há por que dele esperarmos comportamento diverso, já que até agora vem fazendo exatamente o que prometia. Hitler era assim e muita gente influente também não quis acreditar que estivesse sendo sincero.

Quando um país encontra-se praticamente dividido ao meio e um dos lados tenta impor suas soluções a ferro e fogo, acaba-se chegando a uma guerra civil, a um autogolpe ou a um golpe de Estado dado por outros.

A primeira lição de sobrevivência nos dias difíceis que nos aguardam em 2019 é: não atirarmos as Forças Armadas nos braços do inimigo.

O altos comandantes militares estão cientes de que a situação brasileira é extremamente delicada, que não há soluções fáceis para fazer a economia voltar a crescer e de que desembestar o uso da força de nada servirá, como nada resolveu na intervenção no Rio de Janeiro (por eles desaconselhada desde o primeiro momento).

Ademais, não estão dispostos a atrelarem-se a projetos pessoais (conforme Carlos Lacerda constatou em 1964), nem a comprometerem seu prestígio associando-se aos desatinos de um personagem que veladamente excluíram do seu circulo. Quando dão golpes de Estado, põem no poder generais, não capitães.

Mas, se as turbulências gerarem uma situação insustentável, forçando os militares a escolherem entre o governo (que terá se tornado) impopular e os que o estiverem enfrentando nas ruas, os fardados tendem a tomar o partido do primeiro, ainda que a contragosto.

Precisaremos evitar a qualquer preço um confronto fora de hora, com uma correlação de forças totalmente desfavorável a nós, pois isto só beneficiaria nosso pior inimigo.

Em 1964 o esquema golpista era minoritário nas Forças Armadas, mas o desacato à hierarquia militar por parte de cabos e sargentos (insuflado por provocadores como o Cabo Anselmo) e a relutância do presidente João Goulart em permitir a punição dos revoltosos fizeram os oficiais superiores aderirem em massa à conspiração.

Em 1968 a linha dura da caserna precisava de um pretexto para forçar a radicalização do regime dando um golpe dentro do golpe. Encontrou-o num discurso piegas proferido pelo deputado Márcio Moreira Alves apenas para constar nos anais, durante uma sessão em que a Câmara Federal estava às moscas. Foi o pivô da crise que conduziu à assinatura do AI-5 e ao terrorismo de Estado pleno.

Então, nos dias difíceis que virão, tudo de que não precisaremos vão ser bravatas e inconsequências com resultados desastrosos. Sem estridência, mas com serenidade e determinação, poderemos frustrar os planos mais nefastos do novo governo; e, sem uma base de sustentação real (ele se beneficiou apenas de um estado de espírito passageiro), não tardará a cair, como caiu o disparatado Jânio Quadros e o vazio Fernando Collor. Um Bolsonaro tende a durar tanto quanto eles no poder.

A segunda regra de ouro: buscarmos a união de todos que prefiram viver num país de verdade e não numa terra arrasada. Chega de sectarismo e de disputas canibalescas por nacos de poder! Agora se evidencia de forma gritante a existência de valores comuns que vale a pena preservarmos, ainda que isto implique abrirmos mão de alguns de nossos interesses imediatos. Se conseguirmos reagrupar as forças que se uniram para dar um fim à ditadura de 1964-1985, venceremos de novo.

A alternativa é monstruosa demais para nem ao menos tentarmos fazer o certo e o necessário. Muito sangue correrá se não formos capazes de produzir uma saída civilizada para os impasses atuais, que doravante só se agravarão.

Por último: nenhum dos alvos das pregações de ódio pode ficar sozinho e desprotegido. Pessoas e agrupamentos deverão estar sempre em contato com seu círculo específico e com outros que os possam ajudar em emergências. Estruturas de apoio devem ser criadas por parlamentares, por jornalistas, por juristas, por pessoal médico, pelo movimento estudantil, etc., pois explosões de violência poderão ocorrer a qualquer momento, em qualquer lugar. A que ponto chegamos!

Enfim, as crises servem para testar-nos e, neste caso, também para reaprendermos verdades óbvias que estávamos esquecendo. Como a de que é imperativo de somarmos sempre os nossos esforços aos daqueles que igualmente respiram liberdade e sufocam sob o autoritarismo.

(por Celso Lungaretti)