Ivan Fortunato: 'Corpo, conhecimento, cidade… Universidade!'

Ivan Fortunato

Corpo, conhecimento, cidade… Universidade!

Este texto foi escrito como proposta de reflexão de uma disciplina cursada no primeiro semestre de 2019, no Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos Humanos e Outras Legitimidades, ofertada na Universidade de São Paulo. Apresenta-se como um ensaio, no qual se apresentam apenas lascas de ideias que precisarão de tempo para amadurecimento, florescendo ocasionalmente desde que, como um jardim, sejam cultivadas com zelo.

Na disciplina “Corpo: Conhecimento e Compreensão na Cidade”, fomos provocados a olhar o, ao e para o corpo de diversas maneiras, seja retornando semioticamente a um princípio da existência humana no plano terrestre, seja retomando barbáries da eugenia, ou tão somente mirando para coisas mais prosaicas, como pegar um metrô na metrópole paulista ou produzir em casa, artesanalmente, um tonel de cachaça…

Fragmentos múltiplos e complexos de uma existência igualmente múltipla e complexa, mas que não se traduz em uma linha do tempo pronta e acabada. Afinal, passado/presente/futuro tornam-se um único momento, ao mesmo tempo em que as experiências (ou lições) que se passaram se vertem em motivações para um outro futuro… ou apenas conformismo.

Logo no começo dessa disciplina, vários desafios foram lançados na metafórica arena de debates que se criou quando se organizou uma sala de aula em círculo, fazendo os olhares se entrecruzarem, possibilitando/permitindo aproximações que não se explicam a não ser pelo afeto… Eis os reptos fundantes da disciplina:

Somos o que pensamos?

Somos o que comemos?

Somos máquina ou corpo relacional?

Corpo e mente, inimigos ou aliados indissociáveis?

Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou? [1]

Mas, é claro, não há como responder tais questionamentos a não ser de forma contingencial, no aqui-e-agora circunstancial que se cria no instante em que se materializam as perguntas. Por isso, pode-se até conjecturar que essas (e tantas outras) interrogações são perenes, acompanhando a própria existência humana. E, pelo fato de que não se respondem, exceto no flagrante é que devem, amiúde, serem lançadas ao ar, individual e coletivamente. Afinal, suas respostas revelam propósitos existenciais, perfazendo com que a existência seja muito mais singular e relevante que a mera existência terrestre.

Ao longo do curso da disciplina, em que se discutiam avidamente propósitos coletivos de existência, alguns fragmentos se tornaram mais evidentes, fossem angustiantes ou jubilosos. Esses, portanto, engrenam este texto.

Para alcançar tal objetivo, foram selecionados dois excertos, representando, respectivamente, angústia e júbilo, sendo: (I.) a relação entre o ser humano e as máquinas, e (II.) uma dúvida a respeito da função social da Universidade.

Assim, a respeito da relação humano/máquina, Raul Seixas já cantava, em 1974:

A civilização se tornou complicada

Que ficou tão frágil como um computador

Que se uma criança descobrir

O calcanhar de Aquiles

Com um só palito pára o motor [2]

Cantor de vanguarda, Raul parecia divisar anos vindouros nas suas canções. Nada de “profeta do apocalipse”, como diz ter sido chamado por imbecis, pois ele já prenunciava um dia de eclipse vindouro que deixaria a nu tudo o que cantava. Não obstante, pode-se inferir que Raul tinha um aguçado senso crítico, sendo capaz de prenunciar coisas futuras a partir de uma leitura profunda do pregresso da civilização. Por isso, dentre outros, já conseguia perceber a fragilidade que há em uma sociedade subordinada às máquinas.

Mas, os computadores e sua capacidade de conectar tudo e a todos virtualmente foram cada vez mais seduzindo a vida, promovendo facilidades, agilizando negócios e a comunicação, encurtando o tempo de tudo, tornando todos os prazos “para ontem” ou, melhor, para “anteontem”. Tudo é virtual, tudo vai pra nuvem. No concreto, no visceral, só há máquinas e não se consegue ir ou chegar sem elas, apesar delas. Há um dito em tom de anedota, cuja autoria desconheço, cuja narrativa é axiomática e sintomática: as máquinas servem para resolver alguns dos problemas que não existiam antes delas.

Nessa conjuntura, entendo que o célebre filme hollywoodiano “O Exterminador do Futuro” é apenas uma alegoria sobre nosso tempo vivido em função do digital, virtual e outros gadgets: se algum recruta do futuro não retornar ao início do século XXI para impedir a proliferação das máquinas, a existência da vida logo estará em xeque.

Toda essa preleção a respeito da fragilidade social diante o domínio maquínico foi colocado em destaque ao longo das semanas de estudo na disciplina na Pós-Graduação. Isso porque as aulas aconteceram na Cidade Universitária, em São Paulo, distante cerca de algo parecido com duas horas de viagem de carro desde a cidade de Itapetininga, no sudoeste paulista, onde minha vida acontece.

Certa quarta-feira, por conta de um acidente na Rodovia Castelo Branco, o trajeto que poderia durar até menos que duas horas, em condições ideais de pressão e temperatura (obviamente), já estava ultrapassando a angustiante marca das três horas. Praticamente estacionado na estrada, apenas conseguia pensar na ironia que há em se ter um velocímetro que alcança impressionantes 200 quilômetros por hora e, após quase uma hora cronometrada por mais um dispositivo que nos controla, menos de 5% dessa capacidade havia sido conquistada. Ao olhar para frente, só era possível observar uma infinidade de veículos igualmente parados, impotentes.

Eis, então, que uma metáfora se apresenta. Seria ao acaso, se não tivesse envolvido pelas questões fundantes, provocadas pela disciplina: trata-se da paisagem percebida pelo retrovisor do automóvel. Para trás, uma fila interminável de carros, demonstrando que não seria possível retroceder, nem se quisesse, conforme capturado na fotografia a seguir (paradoxalmente flagrada pela câmera digital do meu aparelho celular).

 

Assim, pensei na vida regida pelas máquinas e entendi que tanto para trás (ou passado) quanto para frente (ou futuro) dependem de uma compreensão complexa das circunstâncias da vida (ou presente). Seria possível, então, evitar o domínio das máquinas? Ou estamos todos fadados a viver “Um dia de fúria”, tal qual Michael Douglas [3]?

Perguntas que não cessam, mas ressoam, ecoam, permanecem incomodando… Tudo isso enquanto, certamente, os prazos continuam pressionando corpo e alma, as tarefas seguem acumulando, virtual e concretamente na palma da mão, e o tempo não para. Ou para? Sendo medido não por um calendário que segue adiante, mas, por uma ampulheta, sendo cíclico?

Deixando tais perguntas pairando no tempo e espaço da escrita e da leitura, é possível avançar (na linearidade do texto) para o segundo e derradeiro fragmento/momento da disciplina, que foi eleito para esse livre pensar/escrever: uma pergunta feita, na casualidade do debate sobre a “Breve história da humanidade [4]”, trazendo à metafórica arena da disciplina ideias bastante consubstanciadas a respeito do papel da universidade.

Acalorada pela conjuntura nacional a respeito do anuncio de cortes (ou contingenciamentos) das verbas da educação pelo governo federal, a discussão sobre o papel da universidade é profundamente complexa. Perpassa, sem dúvida, pela histórica formação de elites intelectuais que sobrepujam a classe trabalhadora. Mas, mais importante, atua na produção de conhecimento humano sobre o mundo vivido e sobre a própria humanidade. Seja esse conhecimento pronto e acabado para modificar algo urgente e emergente, seja um conhecimento que provoca as certezas, colocando em xeque as estruturas sociais, culturais, econômicas, produtivas etc. etc.

Em essência, a universidade “serve” à sociedade, pois é o espaço legitimado para produção e promoção de saberes de forma plural, séria, profunda. Deve-se ligar à sociedade em seu entorno, agindo em conjunto na solução de problemas, mas também na sua antecipação e na produção de um mundo melhor (no sentido mais prosaico que se possa imaginar). Por outro lado, deve, também, desligar-se da sociedade, promovendo o livre exercício da reflexão, da criatividade, da inovação, da arte…

Dessa forma, a universidade cumpre legitimamente com seu papel social quando, por exemplo, uma disciplina da pós-graduação traz à superfície provocações e problematizações a respeito da própria condição humana, suscitando o pensamento crítico.

Assim, ao tratar do corpo e sua complexa relação com o conhecimento e a compreensão na cidade, temos o Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos Humanos e Outras Legitimidades revelando uma maneira bastante substancial de servir à sociedade. Afinal, seus egressos já não podem mais alegar desconhecimento ou ingenuidade a respeito de temas profundos, sejam as origens da própria espécie, seja como a eugenia pode ser silenciosa nas relações cotidianas, seja a saúde coletiva que piora com o capitalismo industrial etc. etc.

 Enlevar o pensamento, a reflexão, a crítica, o conhecimento… Eis, então, a universidade, na cidade, no corpo, na humanidade!

 

Ivan Fortunato  

Aluno regular do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos Humanos e Outras Legitimidades. Professor do Instituto Federal de São Paulo, campus Itapetininga e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de São Carlos, campus Sorocaba. Contato: ivanfrt@yahoo.com.br

Notas

[1] MOTA, André; NERLING, Marcelo Arno; ROCHA, Eucenir Fredini. Plano de Atividades – Corpo: conhecimento e compreensão na cidade. São Paulo: Diversitas, 2019, Mimeo.

[2] Canção “As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor”, composição de Raul Seixas, álbum Gita, Philips Record, 1974.

[3] Em referência a cena inicial do filme de 1993, cujo título original é “Falling Down”. Nessa cena, o protagonista está preso em um engarrafamento provocado pelo excesso de veículos e obras na pista. Cansado da situação, decide, por impulso, abandonar a máquina e seguir se caminho usando seu corpo, a pé.

[4] Em referência ao livro “Sapiens: uma breve história da humanidade” de Yuval Noah Harari, usado como bibliografia básica na disciplina, publicado no Brasil em 2016 pela LP&M, tradução de Janaína Marcoantonio.