Pedro Novaes: 'Morrer, sorrindo'
MORRER, SORRINDO
A vida é um ciclo.
Começa com o nascimento e termina, sempre, com a morte. Salvo um grande número de casos, a morte é vista com tristeza e algum inconformismo.
Houve um passado, de triste memória, em que os velórios eram realizados no domicílio. A cena era trágica, vez ou outra animada pela presença de mais de uma viúva.
Velórios existiam que eram verdadeiros regabofes, com direito a salgados, doces, chás e cafés. O ambiente era propício à realização de pequenos negócios, e as dívidas do finado eram sempre lembradas, ainda que inexistentes.
As conversas mais ouvidas davam conta das virtudes do falecido, mesmo quando raras. Todos parecemos um pouco melhores, após a morte.
É preciso uma altíssima dose de irrealismo, para crer que a morte iguala as pessoas. Pobres costumam ter vida mais breve, e despedidas mais sofridas.
O progresso humano tem, como regra, o contínuo alongamento da vida. Há poucas décadas, ultrapassar a barreira dos sessenta anos era uma peripécia, a poucos permitida, e hoje são comuns pessoas com mais de noventa anos.
Os emocionados esforços da família, para preservar a memória e imagem do falecido, começa por talheres, passando por joias e objetos de arte, até atingir a seara judicial, com imóveis, veículos e créditos em geral.
As aposentadorias tendem a atrair cada vez menos a atenção dos herdeiros, desprestigiadas por uma ou outra reforma. Filhas solteiras, emocionadas, juram solteirice eterna, em pleno velório.
As mortes têm reflexos negativos em toda a família. Cessa a tomada de empréstimos consignados, em nome do falecido, e diminui o número de pessoas aptas a assumirem multas de trânsito de terceiros.
A solidariedade humana surge como em passe de mágica, mesmo quando a viúva não apresenta dotes esculturais ou grande cultura. Documentadamente triste e desinteressada costuma ser a reação dos animais domésticos cuidados pelo finado.
A cremação vem substituindo a construção de grandes e suntuosos jazigos, e diminuem a cada dia os espaços disponíveis em cemitérios. Jazigos modernos são edificados com muitas estantes, alojando gerações.
A morte é o destino natural da vida, e costuma documentar a verdadeira crença dos que ficam. É comum o desespero e inconformismo, em muitos que dizem acreditar que o finado partiu para reencontros históricos, vida eterna ou céu.
Nesta quarta-feira gelada, com absoluta falta de assunto, veio a morte, logo ela, salvar o artigo da semana, que julgávamos natimorto.
O autor, vivo, é engenheiro agrônomo e advogado, aposentado.