Celso Lungaretti: 'Nem sempre os grandes homens são os que se colocam sob os holofotes. Apollo Natali foi enorme e merece muito ser lembrado!'
No dia 31 de julho de 2018, aos 82 anos, morreu Apollo Natali, grande jornalista, extraordinário cronista e um dos melhores seres humanos que conheci.
O texto abaixo foi o que escrevi e publiquei (então em 4 partes) nos dias seguintes, sob a emoção da perda de um amigo de três décadas. Fiel às praxes do ofício que para ambos foi mais do que mero ganha-pão, só voltarei a republicá-lo em 2028, se ainda estiver vivo. Espero que muitos outros companheiros de profissão e/ou de ideais ajudem a manter viva a memória do Apollo, que nunca obteve um reconhecimento à altura do seu talento porque nunca o buscou, humilde por natureza e por opção. Mas, pelo menos seus escritos, parte dos quais linquei ao longo do texto, merecem muito ser lembrados! (Celso Lungaretti)
“Convivi com a italianada de um punhado de cortiços na fronteira entre o Brás e a Mooca, em São Paulo, nas ruas Coronel Cintra, rua da Mooca, Caetano Pinto, Carneiro Leão.
Marechiare“.
vovó do mato, onde passava temporadas na meninice e onde passaria o resto dos seus anos:
“
Maria Fumaça
“.
Maria Fumaça? Com certeza! do Bixigado mato
Naquele tempo os pais botavam os meninos para trabalhar desde muito cedo. E o Apollo, nas suas andanças pela cidade (se bem me lembro, fazia entregas de pequenos volumes), certa vez conheceu a velha redação de O Estado de S. Paulo na rua Major Quedinho.
Ficou fascinado, até porque havia vendido jornais pelas ruas durante muito tempo (também fora engraxate). Com talento precoce para a escrita, decidiu que era aquilo que queria ser na vida.Foi se aproximando, oferecendo serviço, mostrando textos. Deram-lhe algumas reportagens fáceis para o testarem. E foi ficando, quebrando galhos, preenchendo lacunas.
Acabou incorporado à equipe da edição de Esportes do Jornal da Tarde, que saía às segundas-feiras e era uma grande atração do então florescente vespertino. Mas sem registro, embora recebesse uma remuneração mensal. Coisas do capitalismo.
circo da Fórmula 1, indo de país em país para descrever os preparativos de cada etapa, as provas em si, as coletivas no encerramento.
Seria um presente dos céus para qualquer um, menos para o Apollo. A ideia de ficar longe dos pais e da família enquanto perambulava pelo mundo como um cigano o horrorizou. Deixou a chance passar.
Gostava mesmo é do batente de redação. Lembrava com orgulho de seu espírito de iniciativa quando as tropas do general golpista Olympio Mourão Filho começaram a se movimentar em direção ao Rio de Janeiro no funesto 31 de março de 1964.
A sede antiga do Estadão Estadãodr. Júlio [Mesquita, o patrão], avaliando que a urgência o autorizava a não respeitar os degraus hierárquicos.
Fundada a Agência Estado em 1970, finalmente se tornou jornalista com carteira assinada, fazendo exatamente o que queria e amava.
Mas, com o tempo iria caindo na real. Nem a pena movia montanhas amiúde, nem apenas o bom desempenho conduzia alguém sem protetores influentes ao topo da profissão.
merreca a mais do que ganhavam os redatores comuns e o obrigava a esticar o expediente por várias horas que não lhe eram pagas.
Pediu aumento e, quando mesquinhamente o negaram, optou por abrir mão da sub-chefia e receber um pouco menos para ter muito mais tempo livre. Mas, não era a solução que almejara. Suas mágoas ainda eram grandes quando o conheci, em 1988.Tornamo-nos amigos, algo previsível em função das muitas afinidades que tínhamos, como jornalistas e como pessoas. Inclusive a de ele ser kardecista e eu haver passado uns seis anos da minha meninice frequentando um centro espírita com minha mãe. Então, mesmo tendo deixado as religiões de lado, eu entendia os papos dele sobre o espiritismo e podia trocar ideias com conhecimento de causa.
“de bem com a vida, espalhando boas vibrações” Quando estava prestes a estrear A última tentação de Cristo, que causara muitas polêmicas pelo mundo, eu recebi convite duplo para a pré-estréia, pois continuava escrevendo sobre cinema para algumas revistas.
Levei o Apollo e percebi que lhe deu enorme satisfação conhecer aquele círculo sofisticado e poder depois conversar com os colegas da redação sobre um filme que ainda não estava em cartaz e nenhum deles assistira.
Era singela sua reação, um homem vivido, 15 anos mais velho do que eu, que se fascinava com aquilo que para mim virara rotina há muito tempo. Tal encantamento de menino, fui percebendo, era uma característica sua, daí estar quase sempre de bem com a vida, espalhando boas vibrações ao seu redor.
Já marchando para a aposentadoria, lá pelos seus 55 anos, tomou a temerária decisão de demitir-se para dar assistência ao pai que estava no final da vida. Disse-me que o velho era pesado e suas duas irmãs não aguentariam carregá-lo para o banheiro, além de ser uma situação constrangedora para as duas partes.[Apesar de nunca lhes ter sobrado dinheiro, poderiam contratar um enfermeiro, claro. O que o Apollo queria, sobretudo, era dar amor e consolo ao pai nos meses finais. Talvez tenha evitado reconhecer isto por recear que soasse piegas.]
Temer era secretário da Segurança no início dos ’90
O FGTS foi suficiente para bancar o quase um ano que ele passou cumprindo, em tempo integral, o dever de bom filho.frilas encomendados pela assessoria de imprensa de um amigo amigo da onça chegava ao fim e ele parecia prestes a recorrer aos seguranças, o Apollo interveio.
esquentadinho a ir tomar café com ele lá fora.Era como sempre agia quando os ânimos esquentavam na redação: um apaziguador, que permanecia equidistante das partes e ia de uma à outra para aparar arestas e facilitar a reaproximação.
De jornalista a quebra-galho: nada derrubava o Apollo! Depois de dois ou três anos tentando ainda sustentar-se como jornalista, curvou-se à evidência dos fatos. Já ouvira as desculpas dos muitos conhecidos e quem não o conhecia tendia a negar-lhe emprego por considerá-lo velho demais ou pela sua aparência humilde e roupas baratas.
furos e/ou redigir textos cada vez melhores, não dando muita bola para trajes nem para certificações formais, o que nos fazia malvistos pelos selecionadores profissionais.
travava
Formatura, em fevereiro de 2008 De quebra, Apollo realizou o antigo sonho de obter um diploma de jornalismo — que não lhe fora necessário para o exercício da profissão, pois nela já atuava quando o curso se tornou obrigatório para os ingressantes na carreira.
Mesmo sem esperança nenhuma de voltar ao jornalismo diário, passou quatro anos nas Faculdades São Judas Tadeu e, septuagenário, se graduou brilhantemente.
meninos (seus colegas) nas práticas e segredos da profissão. E familiarizou-se com a internet, passando a usar e-mails para espalhar seus textos entre as dezenas de jornalistas que conhecia.
depois, dos meus.
E andou bancando impressões baratas do seus textos, que entregava de graça para moradores de rua venderem. Uma pequena contribuição, mas a única que estava em condições de dar, para a subsistência dos excluídos.
Grupo Estado!
[Mesmo se o extravio tiver mesmo sido acidental, a aceitação desta tese abriria um precedente juridicamente aberrante, pois os reclamados poderiam dar sumiço em tudo que lhes causasse problemas…]
A burocracia kafkiana lhe negou aposentadoria integral Não podia comprar roupas? Aceitava de bom grado as que um sobrinho dispensava por estar crescendo rapidamente.
lata velhaSó superestimou sua resistência a doenças, até porque parecia imune a elas. Então, jamais se preocupou em ter um convênio de saúde, nem deixou os amigos e conhecidos saberem que não possuía nenhum. Octogenário, sem fazer exames periódicos, foi surpreendido por um câncer de medula que se alastrou rapidamente e o matou em três meses.O que mais ouvi dos presentes ao velório e ao enterro foi que só então perceberam, em toda sua extensão, a falta que o Apollo faria em suas vidas. Talvez porque, eles como eu, tínhamos a impressão de que estaria sempre ao lado, alegrando-se conosco nos bons momentos e ajudando-nos a superar os maus.
Quando o caixão baixou à terra, nenhum de nós tinha a ilusão de que encontraria adiante quem cumprisse o mesmo papel. Era insubstituível.
Enquanto o Apollo era vivo, nunca me ocorreu ter de explicar a quem não o conhecia por que, afinal, se tratava de uma pessoa tão diferente, exemplar de uma espécie quase extinta nos tristes tempos presentes.
Não que se trate de um grande filme, longe disto. Mas é um trecho que impacta. Ademais, o despojamento e a frugalidade franciscana eram características marcantes do Apollo, um kardecista que talvez nem se desse conta disto, pois jamais me disse uma palavra sequer sobre os santos católicos.
Insuspeitadas afinidades com S. Francisco de Assis
Foi um dos melhores cronistas que algum dia li. Não fazia má figura como repórter, noticiarista, redator, editorialista e editor, mas nas crônicas se superava. Percebia-se nele um homem que sempre convivera com as pessoas simples, conhecia profundamente a realidade das ruas, a tudo observando com olhar compassivo, solidário à dor dos humildes e sempre disposto a ajudá-los no limite de suas forças e recursos.Por suas crônicas desfilam personagens inesquecíveis:
- intelectual de rua
intelectual de rua
- vovó do matoplantada Júlia Sapeca
La Cucaracha era mesmo hino… de Pancho Villa! meio a meiocrônicas do além).
La Cucaracha!
), com direito a puxão nas orelhas dos meritíssimos:““.
guerras santas do Apollo, que queria ver a igualdade de todos perante a lei prevalecer sobre o corporativismo dos altos serviçais da classe dominante.
) o Apollo revelou:“Desde a traumatizante decisão do STF que derrubou a obrigatoriedade, venho manifestando em prosa e verso meu tormento com aquela postura cavernosa do tribunal maior do país.
Cartas ao Congresso inteiro em defesa do jornalismo Meus mais aflitivos lamentos em defesa da obrigatoriedade do diploma de jornalismo traduziram-se no envio de mais de 600 cartas, a cada um dos 80 senadores, 520 deputados federais e às Mesas Diretoras do Senado e da Câmara“.
) em louvor às cartas manuscritas de outrora.
Botava tanta fé na força de suas palavras datilografadas na folha em branco, com assinatura no final, que nunca tive coragem de dizer-lhe que a quase totalidade dos parlamentares, juízes e membros do Executivo delega a subalternos a abertura da correspondência.
desconhecidos. Dão mais importância a um vereador de Santa Cruz de Minas (o menor município do Brasil) do que ao autor de um texto magistral como os do Apollo…
“não se conformava ao ver a pior face das pessoas”
Era amarga a decepção dele quando, a mando de ministros e até da presidente da República, algum burocrata empedernido respondia com desconversa, saindo pela tangente e até fingindo não haver entendido direito o que estava bem claro na mensagem do Apollo.
Eu, que dessa gente só esperava o pior, absorvia facilmente o golpe. Ele, que sempre esperava o melhor das pessoas, não se conformava ao ver-lhes a pior face: a verdadeira.Também me comovia seu desencanto com os rumos do jornalismo, a ponto de haver dito certa vez que não lamentara tanto lhe terem impossibilitado a readmissão na Agência Estado após a morte do pai, pois não se identificava com a nova realidade das redações (em que os ganhos tecnológicos chegam junto com a perda do idealismo e o embotamento da solidariedade para com os indefesos).
) na qual lamentou o fim de uma de suas mais caras ilusões:“Eu acreditava ter a imprensa o poder de transformar a realidade. Tal era minha ingenuidade!
Oh, que saudade da minha infância querida e ingênua, do meu tempo das reportagens, editorias e fechamento de páginas na redação, em que me sentia um rei ao fazer o feijão com arroz que o patrão mandava.
”
Muito eu ainda poderia escrever sobre o grande amigo e o jornalista por vocação e teimosia, que tantas barreiras transpôs para chegar aonde sonhara, sem, contudo, jamais obter reconhecimento à altura do seu enorme talento.
Mas, nas redações e na vida, tudo tem um fim. E eu temo que, se alongasse este tributo, haveria cada vez menos leitores a acompanhá-lo, salvo nossos contemporâneos, os idosos.
Eu, Celso Lungaretti, desta vez coloco fora de lugar a minha assinatura, antecipando-a por um bom motivo: a palavra final só poderia pertencer ao Apollo!
“Florzinha, pardalzinho, ouçam, eu também entro e saio da minha casa todo santo dia, e vai chegar um momento em que vou entrar e não vou voltar mais. A mando de um poder maior, chega também para mim o tempo de ir embora. Saio carregado por quatro mãos agarradas àquelas alças douradas, sagradas, que sustentam corpos sem vida.
Mas não vai terminar nunca a festa de cores e de vida intensa na companhia desses meus amiguinhos.
Quando eles voltarem amanhã e tornarem a encher de alegria meu velho coração, vou correndo fazer um pedido aos dois.
“