Sergio Diniz da Costa: 'A ética no Direito e a inteligência espiritual'
O Quociente Espiritual (QS) permite que seres humanos sejam criativos, mudem as regras, alterem situações
A sociedade ocidental sempre priorizou a razão, entendida esta como “raciocínio que usamos para solucionar problemas lógicos”, como única forma de o ser humano apreender a realidade que o cerca. E de tal forma a razão foi entronizada que psicólogos desenvolveram testes para medir esse tipo de inteligência, classificando-o por graus, mais conhecido como Q.I. (Quociente de Inteligência). O Q.I. indicaria as habilidades ou talentos de uma pessoa e, desta forma, quanto mais alto o índice, maior seria a sua inteligência.
Alguns pensadores ocidentais, incluindo cientistas, no entanto, intuíram outro patamar dentro do campo da inteligência. Na memorável obra “O Pequeno Príncipe”, Antoine de Saint-Exupéry filosofava que “É com o coração que se vê corretamente; o essencial é invisível aos olhos”. Einstein afirmou com convicção: “A imaginação é mais importante do que o conhecimento”; e indo mais além, chegou à conclusão que “O homem erudito é um descobridor de fatos que já existem – mas o homem sábio é um criador de valores que não existem e que ele faz existir”. Em meados da década de 1990, o psicólogo americano Daniel Goleman, phD da Universidade de Harvard, trouxe a público pesquisas realizadas por numerosos neurocientistas e psicólogos, que detectaram uma nova modalidade de inteligência, à qual denominaram de inteligência emocional (QE). O QE “dá-nos percepção de nossos sentimentos e
dos sentimentos dos outros. Dá-nos empatia, compaixão, motivação e capacidade de reagir apropriadamente à dor e ao prazer. Conforme observou Goleman, o QE constitui requisito básico para emprego efetivo do QI”.9 A teoria da inteligência emocional, portanto, redefiniu o que é ser inteligente.
Nos estertores do século XX, as pesquisas sobre o comportamento humano avançaram ainda mais, a ponto de se falar de um terceiro quociente, que pode descrever totalmente a inteligência humana. Trata-se do Quociente Espiritual, ou QS (Spiritual Quocient). Segundo os estudiosos dessa nova faceta da inteligência, por meio do QS, “abordamos e solucionamos problemas de sentido e valor”; é “a inteligência com a qual podemos pôr nossos atos e nossa vida em um contexto mais amplo, mais rico, mais gerador de sentido, a inteligência com a qual podemos avaliar que um curso de ação ou caminho na vida faz mais sentido do que outro. O QS permite que seres humanos sejam criativos, mudem as regras, alterem situações. O Quociente Espiritual (QS) é a fundação necessária para o funcionamento eficiente do QI e do QE. É a nossa inteligência final. (…) O QS dá-nos a capacidade de escolher. Dá-nos senso moral, a capacidade de temperar normas rígidas com compreensão e compaixão e igual capacidade de saber quando a compaixão e a compreensão chegaram a seus limites. Usamos o QS para lutar com questões acerca do bem e do mal, e imaginar possibilidades irrealizadas – sonhar, aspirar, nos erguermos da lama. (…) Nós o usamos para lidar com problemas existenciais – problemas em que nos sentimos pessoalmente num impasse, na armadilha de nossos velhos hábitos, nas neuroses, ou quando temos problemas com doença ou sofrimento. O QS nos torna conscientes de que temos problemas existenciais e nos dá meios para resolvê-los – ou pelo menos para encontrar paz no trato com eles. E nos dá um sentido ‘profundo do que significam as lutas da vida”.10
Segundo a física e filósofa Danah Zohar, “As indicações de um QS altamente desenvolvido incluem: capacidade de ser flexível, grau elevado de autopercepção e capacidade de enfrentar e usar o sofrimento, capacidade de enfrentar e transcender a dor, capacidade de ser inspirado por visão e valores, relutância em causar dano desnecessário, tendência para ver as conexões entre coisas diversas (ser ‘holístico’), tendência acentuada para fazer perguntas do tipo ‘Por quê? Ou ‘O que aconteceria se…’ e procurar respostas ‘fundamentais’ e ser o que os psicólogos denominam de ‘independente do campo – isto é, possuir capacidade de trabalhar contra convenções”.11 A mesma autora ensina a maneira pela qual podemos aprimorar o QS: “De modo geral, podemos aprimorar nosso QS passando a usar mais o processo terciário – a tendência de perguntar por que, procurar conexões entre coisas, trazer para a superfície as suposições que vimos fazendo sobre o sentido por trás e no âmago das coisas, tornando-nos mais reflexivos, estendendo-nos um pouco mais além de nós mesmos, assumindo responsabilidade, tornando-nos mais conscientes, mais honestos com nós mesmos e mais corajosos”.12
Ética é a ciência do comportamento moral dos homens em sociedade (Adolfo Sánchez Vásquez, apud Renato Nalini, Ética geral e profissional, p. 26). Divide-se em dois grandes ramos: ética geral e ética aplicada; esta última, desdobra-se em outros, como a ética ecológica, a ética familiar, a ética empresarial, ética profissional… “.13
Se são mesmo verdadeiras as afirmações de Saint-Exupéry e de Einstein, conclui-se que não se pode mais esperar do profissional do Direito apenas um QI elevado ou uma memória prodigiosa, que o torna apenas um operador do Direito. No Direito do século XXI, espera-se dele uma clara percepção de seu próprio sentimento e dos sentimentos dos outros. Espera-se dele empatia, compaixão, motivação e capacidade de reagir apropriadamente, principalmente à dor da coletividade. Espera-se dele, portanto, uma acurada inteligência emocional. Mas, na busca e na vivência de um Direito mais humano, que visará a abordagem e a solução de problemas de sentido e valor, com a colocação de atos e a vida em um contexto mais amplo, mais rico, mais gerador de sentido, mais criativo, que haverá de contribuir para a mudança das regras e a alteração das situações, mister se fará o desenvolvimento da inteligência espiritual. E, quando esse dia chegar, o profissional do Direito deixará de ser apenas um homem erudito, descobridor de fatos que já existem e tornar-se-á um homem sábio, criador de valores que não existem e que ele fará existir.
Diante das nossas reflexões, porém, um profissional do Direito atuante, que vivencia o dia a dia das lides judiciárias, poderia refutar as ideias expostas, sob a afirmação de que “a teoria, na prática, é outra”, pois é sabido por todos que a atuação na advocacia vem se tornando uma prática contínua de poucos, diante dos inúmeros problemas que afetam a classe, a começar da infinidade de profissionais que anualmente demandam do mercado de trabalho (a maioria mal preparada, como o Exame da Ordem e os concursos públicos bem o demonstram), os excessos de recursos processuais e a comprometida estrutura do Poder Judiciário, o que acarreta a lentidão na aplicação da Justiça e contribui para o empobrecimento desses profissionais.
Diante de um quadro desse, deparamo-nos amiúde com advogados respondendo a processos administrativos, decorrentes de infrações ao Estatuto da OAB e ao Código de Ética e Disciplina da OAB. Dentre as infrações previstas nos vinte e nove incisos do art. 34 do Estatuto, as que mais chegam à Comissão de Ética e Disciplina dizem respeito ao agenciamento de causas, mediante participação nos honorários a receber; angariar ou captar causas, com ou sem intervenção de terceiros; prejudicar, por culpa grave, interesse confiado ao seu patrocínio; receber valores, da parte contrária ou de terceiro, relacionados com o objeto do mandato, sem expressa autorização do constituinte; locupletar-se por qualquer forma, à custa do cliente ou da parte adversa, por si ou interposta pessoa; recusar-se, injustificadamente, a prestar contas ao cliente de quantias recebidas dele ou de terceiros por conta dele; reter, abusivamente, ou extraviar autos recebidos com vista ou em confiança; deixar de pagar as contribuições, multas e preços dos serviços devidos à OAB, depois de regularmente notificado a fazê-lo; incidir em erros reiterados que evidenciem inépcia profissional e praticar crime infamante.
De todas as infrações apontadas, observa-se que uma delas (falta de pagamento das contribuições devida à OAB) reflete um problema financeiro. Outra (incidência de erros reiterados que evidenciam inépcia profissional), diz respeito à má qualidade do ensino jurídico. As demais demonstram claramente um desvio ético, cuja raiz é encontrada nas profundezas do caráter do profissional.
Como corrigir-se desvios éticos do profissional do Direito? Provavelmente seria mais pertinente se perguntar: como preveni-los? É evidente que a prevenção depende muito mais da criação recebida pelo ser humano, nos primeiros anos de vida. Mas à escola, e especificamente às Faculdades de Direito cabem parcela significativa dessa prevenção, na medida em que busquem mudar a atual concepção de seus currículos, o qual prioriza o ensino estritamente técnico, adequando-o a uma concepção onde há de se priorizar o estudo da ética, da Filosofia do Direito, da Sociologia e da Filosofia. Somente assim emergirá o profissional do Direito do século XXI, que, no alto de sua inteligência espiritual, substituirá a experiência de base “Penso, logo existo”, e vivenciará o grandioso pensamento de Leonardo Boff: “sinto, logo existo”.14
(artigo publicado na revista Prática Jurídica, Ed. Consulex, n.º 41, 31 de agosto de 2005, seção Know How, p. 40-42)
Sergio Diniz da Costa
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