Carlos Carvalho Cavalheiro: 'Como chegamos até aqui?'

Carlos Cavalheiro

Como chegamos até aqui?

A proposta de centralização de poder e, em consequência, a ascensão de governos autoritários – o que se generalizou a chamar de fascismo – é, apesar da imprecisão do termo, uma aberração inerente à própria democracia liberal que a utiliza como um processo de freio e contrapeso para conter o avanço das ideias socialistas. De uma maneira mais simplista, o autoritarismo é um cão de guarda que aguarda a oportunidade de atacar o adversário de seu dono.

Porém, como todo animal irracional, o cão de guarda – o autoritarismo – não possui consciência de seus atos, age por instinto, defende o dono ao mesmo tempo em que lhe usurpa o lugar. Combate o adversário do liberalismo e, depois, acostuma-se com o lugar em que chegou e volta-se contra o próprio dono.

Portanto, o autoritarismo age sempre quando a democracia liberal (burguesa) se vê ameaçada. É um oportunista que aparece no momento que lhe é propício. O seu alimento é a crise institucional, econômica, política e social. O seu discurso, o latido do cão de guarda, empresta-lhe a autoridade que convence momentaneamente o público. O cão traz, portanto, a sensação de segurança no momento de fragilidade das instituições.

A crise ocorre por um conjugado de situações, das quais a econômica se destaca, mas não é primordial, em que diversos setores da vida humana são atingidos. O depósito de credibilidade que parcela significativa da população faz em relação aos políticos perde o seu capital. Os políticos são incapazes de resolver ou mesmo administrar a crise e, então, surge o desespero.

Uma das lições que todos devemos ter na vida é que ninguém morre afogado por não saber nadar, mas sim por ter deixado o desespero tomar conta da situação. Se a serenidade estivesse presente no momento da possibilidade do afogamento, bastava ao pretenso afogado que mantivesse seu corpo esticado e rígido para que boiasse, evitando assim o afogamento. Mas o desespero obstaculiza a razão e a vítima tenta sair da situação da maneira menos óbvia: tentar nadar quando nunca aprendeu a fazer isso.

A analogia com a ascensão dos governos autoritários parece fazer algum sentido. No desespero de tentar sair de uma situação caótica, opta-se pelo discurso menos provável: o da saída da crise pelas mãos de um salvador autoritário.

Portanto, o autoritarismo torna-se uma alternativa viável quando, em meio a uma crise, todas as outras alternativas conhecidas parecem ser ineficazes. A ascensão do fascismo na Itália, do nazismo na Alemanha, do salazarismo em Portugal, do franquismo na Espanha, do Estado Novo getulista no Brasil, do peronismo na Argentina… todos esses modelos de governos autoritários, praticamente subsidiários do fascismo italiano, alcançaram o poder durante um momento de crise e de inviabilidade de solução política por governos de esquerda e de direita. A aposta na centralização do poder por um chefe de Estado e de governo, ou seja, pela extrema-direita, é um fenômeno inerente aos momentos de crise do liberalismo e na pouca credibilidade do socialismo.

E nenhum desses governos autoritários citados nasceu sem antes ter uma chancela da “legalidade” e do apoio popular. Salazar, por exemplo, passou de Ministro das finanças do governo militar português a Primeiro-ministro de um regime ditatorial nomeado de Estado Novo. Hitler foi nomeado Chanceler (Primeiro Ministro) do governo alemão do presidente Hinderburg. Quando este morreu, Hitler simplesmente concentrou o poder em suas mãos, com apoio de boa parte dos alemães. Getúlio Vargas era presidente do Brasil, quando instaurou a ditadura do Estado Novo com a justificativa de que havia um plano comunista para dominar o país. Mussolini foi nomeado Primeiro-Ministro italiano pelo rei Vitor Emanuel III, após realizar um ato de propaganda fascista em que demonstrava poder e apoio popular e que ficou conhecido como “A marcha sobre Roma”.

Todos esses estadistas ascenderam ao poder com algum verniz de legalidade e com forte apoio popular. Esse fato garantiu a esses governos estabilidade por algum tempo. É fato que houve governos autoritários que sobreviveram por décadas. O salazarismo e o franquismo, por exemplo, duraram até meados da década de 1970.

Atualmente, o autoritarismo é um fantasma que assombra o Brasil. O atual governo brasileiro tem mostrado em seus discursos – tanto do chefe maior do Executivo quanto por meio de seus ministros, políticos aliados e apoiadores – uma pretensão de centralização e controle político e social que se assemelha ao ideário fascista. A imprensa tem gerado um número incrível de registros desse fato que seria cansativo e improdutivo reproduzi-los aqui, especialmente quando o público leitor alvo é exatamente o espectador do desenrolar dessa trama. Basta mencionar, apenas para salvaguardar a referência ao leitor do futuro, que o presidente tem participado e apoiado manifestações de apoiadores que pedem o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, ou seja, dos representantes dos outros poderes da União.

O clima de instabilidade política gerado por esse apoio explícito do presidente da república a manifestações que atentam contra a ordem democrática liberal e burguesa tem assustado aqueles que prezam pelo Estado de direito. Tanto analistas políticos quanto o cidadão comum anteveem nesse apoio a tentativa de concretização de um projeto de centralização do poder. E é disso que se trata, pois esse é o pedido escancarado das manifestações de “apoio ao presidente”.

Mas como é que chegamos a essa situação? Esse é um percurso que vem sendo realizado há algumas décadas. Em 2002, o Brasil apostava na “esquerda” para a solução da crise pela qual passava e que resultava de longos anos de governos neoliberais, fase essa “inaugurada” com o governo Collor em 1990. O primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, foi de relativo sucesso, o que lhe garantiu um segundo mandato. Até então, o Brasil optava por uma linha ideológica liberal, com a privatização de estatais, diminuição do Estado, maior participação da iniciativa privada.

Porém, esse modelo acirrou as desigualdades sociais e não resolveu problemas estruturais graves que impedem o desenvolvimento de qualquer país, como a estrutra fundiária, a organização política (que estimula a troca de favores entre o Poder Legislativo e o Executivo), o sistema tributário extremamente burocrático e o sistema educacional. Ao contrário, o que ocorreu foi a manutenção de parte desses problemas e o agravamento de outros. No caso da educação, por exemplo, as medidas tomadas pelos governos neoliberais favoreceram o sucateamento do ensino público em proveito da educação privada. Dentro da lógica neoliberal, os “serviços” devem ser prestados pela iniciativa privada, sendo papel do Estado o de regulador dessas prestações de serviços.

Portanto, não havia – e ainda não há – estímulo algum para a melhoria dos serviços públicos. Ao contrário, a precarização dos serviços deve ser mantida para que seja viabilizada a opção pela terceirização e privatização que favorecem o capital.

No auge da crise, momento em que o Brasil se colocava no “mapa da fome”, por exemplo, a opção por um governo “socialista” e de “esquerda” parecia viável. A aposta frutificou e o Brasil teve um de seus melhores momentos em termos de economia e de diminuição das desigualdades sociais. Porém, os governos do PT não atacaram de forma eficaz os entraves do país. Não ocorreu a reforma agrária, nem a tributária, nem a educacional, muito menos a política.

Pouca gente talvez se lembre, mas em 2006, depois de ter passado pelo abalo do escândalo do “Mensalão”, o presidente Lula afirmou que um jovem de direita era tão problemático quanto um socialista na idade madura. Ou algo que o valha, mas o que Lula disse foi que socialismo era um sonho de juventude e que não cabia no mundo adulto sério.

Então, uma das figuras de maior representação dos anseios da “esquerda” naquele momento jogou fora duas coisas essenciais para a viabilidade política da via socialista: a utopia (como um objetivo a se mirar) e o lastro moral da incorruptibilidade. Ao naturalizar – e até normatizar – a corrupção como algo que sempre ocorreu com os “outros partidos” e ao dizer que socialismo era um devaneio de juventude, Lula deu o primeiro passo para inviabilizar a possibilidade política de um governo de esquerda. Com isso, enfraqueceu ainda mais a esquerda que se fragmentou em outros partidos (como o PSOL e a Rede), fazendo com que o PT perdesse personalidades importantes em seus quadros.

Mas isso não foi sentido de imediato. O sucesso da economia, que continuou o plano neoliberal de maneira mais moderada, e o fisiologismo político em relação a representantes dos movimentos sociais garantiu a continuidade dos governos do PT. Se de um lado houve uma diminuição das desigualdades sociais, comprovadas pelo Coeficiente de Gini e outros índices, o fato é que avanços necessários não ocorreram. A estrutura fundiário continuou a representar o atraso colonial do Brasil, bem como a organização política ainda guardou ranços da Primeira República e seu clientelismo.

Movimentos sociais cooptados, ascensão de classes menos favorecidas, políticos recebendo a sua parcela de contribuição, tudo pacificado. Foi assim, mais ou menos, até o segundo mandato de Dilma Rousself. Apesar de ter sido reeleita, o fato é que necessitou da presença de Lula em sua campanha para a vitória definitiva com uma diferença não tão larga assim: 51,64% contra 48,36% dos votos para o candidato Aécio Neves, do PSDB.

O ano é 2014 e a economia começa a dar sinais de esgotamento. A crise econômica é agravada por uma crise política. Aécio Neves, representante do liberalismo político, não aceitou a derrota, pediu recontagem de votos e ainda declarou que faria oposição incansável e intransigente contra o governo petista.

Aécio Neves nesse momento tornou inviável a opção liberal. Isso porque ele mesmo desconfiou das instituições que sustentam a democracia liberal. Solicitar recontagem de votos é desconfiar da possibilidade de fraude. Ocorre que as eleições são organizadas e fiscalizadas pelos Tribunais Eleitorais, pelo poder Judiciário. A princípio, esse Poder não tem relação e nem interesse em favorecer determinado partido para ocupar o poder Executivo. Ainda mais em se tratando do PT, partido que havia criado situações de desconforto com o Judiciário. Basta lembrar o episódio, ocorrido em 2003, no qual Lula disse ser necessário “abrir a caixa preta do Judiciário”, defendendo um maior controle desse poder.

A descabida desconfiança das instituições que sustentam a democracia liberal burguesa abriu caminho para uma crise política de ingovernabilidade que culminará com o Impeachment de Dilma Rousself. Mais do que isso, em rota de colisão direta, PT e PSDB se autodestruíram dando margem para o crescimento de outras tendências políticas. Gerou ainda uma crise de credibilidade das instituições e dos políticos de maneira geral.

Essa última crise já era sinalizada em 2013 quando manifestantes tomaram as ruas para protestar contra a corrupção generalizada. Um fato que ficou marcante nesse episódio foi a expulsão da manifestação daqueles que carregassem distintivos políticos, sejam eles quais fossem. Políticos do PT, de outros partidos de esquerda e até do PSDB foram expulsos dessas manifestações.

O caminho estava aberto para uma nova tendência, com discurso centralizador, de “salvação” da situação por via do autoritarismo. Ideologicamente, o campo já estava sendo arado há alguns anos pelo “guru” Olavo de Carvalho, que soube aproveitar bem os meios de comunicação com um discurso muito mais calcado em adereços, como oo uso excessivo de palavras de baixo calão e entonações de voz que simulam o histerismo, do que em conteúdo. Desse modo, atinge um público que não necessita de consulta a outras fontes para entender a mensagem.

Por outro lado, os avanços alcançados pelos movimentos sociais durante os governos do PT, sem que houvesse um aprofundamento do debate na sociedade, acirrou os ânimos de quem vê ameaças ao seu direito quando o outro alcança um mesmo patamar. Ranços e resquícios do escravismo e do colonialismo, a sociedade brasileira ainda não se preparou para entender a superação das desigualdades. Ao contrário, a chamada “classe média” apoia as desigualdades porque assim ela pode se sentir parte de uma “elite” da qual nunca foi.

É sintomático, por exemplo, casos que ocorreram no Brasil nos últimos anos e que ilustram o que está escrito acima. Não faz muito tempo, uma professora universitária fotografou um passageiro que aguardava no saguão de um aeroporto trajado com bermuda e chinelo. A professora postou nas redes sociais a foto do passageiro e comentou: “Isto aqui está parecendo uma rodoviária”. O que carrega a frase da professora? A indignação dela em dividir o espaço com outras “classes”, ainda que, tanto ela quanto o outro passageiro, sejam, de fato, da mesma classe: a dos trabalhadores.

Porém, o nível “universitário” faz com que a professora se sinta superior ao outro que está vestindo uma bermuda e calçando chinelos. Esse desconforto com a ascensão social é típico de uma sociedade estruturada sob os alicerces da escravidão. A mentalidade que impera é a de que alguém deve servir para que o outro possa se sentir um “senhor”.

Esse conjugado de fatores, que vão desde a inviabilização da solução democrática liberal (tanto na opção pela esquerda quanto pelo liberalismo), a ausência de ânimo político para realização de reformas profundas e necessárias (como a reforma agrária, a educacional, a tributária e a política), a cooptação de movimentos sociais com a criação de um sistema de fisiologismo político, a falta de aprofundamento de debates para a sustentação dos avanços sociais e a não superação da mentalidade escravista e colonialista nos conduziu a este estado de coisas. Aqui estamos nós.

 

Carlos Carvalho Cavalheiro

13.06.2020