Marcelo Augusto Paiva Pereira: 'Em algum lugar do passado'

Marcelo A. Paiva Pereira

Em algum lugar do passado

Igreja Matriz de São Jorge dos Ilhéus (restaurada em 04.10.1970). Foto por Marcelo A. Paiva Pereira, em 13.09.2014

A preservação da memória de um grupo social ou povo é fundamental para ele se identificar com a própria cultura, manifestada no tempo e no espaço pelas gerações.

Dentre tantas manifestações estão as convertidas em bens culturais pelo significado que transmitem. São temporalidades, bens culturais estratificados, carregam o tempo psicológico e a consciência humana da história e urge trazê-los ao presente e projetar, ao futuro, a memória que as sucessivas gerações deverão ter da própria cultura.

Esse resgate de bens culturais depende da escolha da intervenção a ser aplicada, que pode ser a conservação ou a restauração. A primeira é limitada, que pouco influi na materialidade e imagem da obra. A segunda é mais abrangente e é alvo de vários entendimentos acerca dos efeitos que produz.

No século XIX Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc e John Ruskin defenderam posições opostas. Ao primeiro a restauração era o restabelecimento da obra como poderia, ou não, ter sido. Ao segundo, as intervenções necessárias, o absoluto respeito pela matéria original e evitar o falso histórico e o falso estético.

No século XX Camillo Boito, Gustavo Giovannoni e Cesare Brandi defenderam outras posições, às quais restaurar é um processo científico, deve respeitar o passado (e não voltar a ele) e alinhá-lo ao tempo presente. Ao último deles a restauração deve distinguir os momentos históricos do bem, dentre os quais o período dela própria, e evitar a modificação irreversível da identidade dele.

A restauração modifica a relação espaço-tempo do bem ou obra e repercute na memória do grupo social ou povo. Se for exagerada poderá dar a ele características que nunca teve e o efeito, no grupo social ou povo, é a memória criada (falsificação da identidade artística e temporal do bem).

Deve enfatizar a constituição material sem ignorar as várias estratificações do bem (juízo crítico). Dá-se a ele nova destinação, com vistas a assegurar sua preservação, sem descaracterizá-lo. E, ainda, a restauração não deve transforma-lo em parque temático.

A Carta de Veneza (1964) acolheu o mínimo de intervenções para preservar a obra e sua atualização para o uso e conforto humano. Admite a restauração como intervenção excepcional, que exige atuação mais abrangente (arts. 9º ao 13º).

A memória se faz de diversas experiências no passado e também de símbolos, que servem de paradigmas às condutas atuais. A qualidade íntima, porém, é atingida por qualquer alteração no ambiente. Daí a importância do bem cultural e das técnicas de intervenção a ele aplicadas.

A restauração, então, é um processo científico e crítico de intervenção que, com cuidadosas alterações, atualiza e preserva para gerações atuais e futuras o bem ou obra resgatada de algum lugar do passado. Nada a mais.

 

Marcelo Augusto Paiva Pereira.

arquiteto e urbanista