Carlos Carvalho Cavalheiro: 'Sociedade indolor'

Carlos Cavalheiro

Sociedade indolor

Vivemos um momento em que os seres humanos desenvolveram a ojeriza ao sentimento de dor. Provavelmente esta constatação não seja original. É possível que alguém já a tenha feito com maior erudição argumentativa. No entanto, é uma reflexão útil para os tempos em que vivemos e que, por isso, se justifica a sua repetição: é uma lição a ser ensinada e aprendida, uma espécie de guia de sobrevivência.

As sociedades mais antigas reconheciam o valor do sentimento da dor como pré-requisito para as passagens das diversas fases da vida, o que hoje poderíamos chamar de alcance do sucesso. Os meninos espartanos, por exemplo, eram retirados de suas casas aos sete anos de idade para se prepararem ao exercício da defesa de sua pátria. A partir de um rigoroso programa de educação, cujo objetivo era formar o soldado perfeito, essas crianças sofriam terríveis provações. Muitas delas não aguentavam os exercícios e morriam. Os que sobravam se convertiam em combatentes temidos.

Obviamente que não é objetivo aqui querer louvar um programa educacional como esse. Seria um anacronismo sem limites. Cada situação a seu respectivo tempo, mas é um exemplo, dentro da argumentação, do quanto as sociedades antigas não temiam a dor. Ao contrário, sabiam que toda mudança exige a superação do medo, da dor e do medo da dor.

As propagandas da televisão nos vendem a não-dor. Analgésicos disputam o mercado a partir da rapidez da solução do problema. Não temos mais dor de cabeça, dores musculares, dor no dente, febre, dores abdominais. Em segundos, o alívio imediato. Bom, dor é também um sinal de que algo não está bem. Imagine a seguinte situação: seu carro apresenta um barulho estranho aos seus ouvidos. Provavelmente, algo na mecânica do automóvel não vai bem. Então, como solução, você compra um protetor auricular. Pronto! Não se ouve mais o barulho. É fato. Mas o problema continua, mascarado por sua pseudo-surdez.

Outro dia um casal reclamava num programa de TV, desses que desnudam a intimidade alheia, do filho de dez anos de idade que ainda dormia na mesma cama que os pais. Eram praticamente três corpos desenvolvidos, um deles em acelerada fase de crescimento, disputando um espaço planejado para dois adultos. A mãe confessou que a ideia se originou a partir da “consulta” a um “psicólogo” do Youtube. Ele vendeu a análise de que a criança – enquanto bebê recém-nascido – se sentiria acolhida com a presença dos pais no leito. Assim, a criança foi crescendo e se mantendo ao lado dos pais durante as noites de sono. Porém, agora, aos dez anos, não conseguia mais dormir sozinha.

A mãe já tentara fazer a criança dormir em sua própria cama, o pai também, mas a criança chorava, se deprimia, e os pais cediam. Não queriam sofrer novamente a dor do parto. A Língua Portuguesa tem lá os seus caprichos e permite, desse modo, construções imagéticas interessantes. Apesar da improvável correspondência etimológica, o substantivo parto (no sentido de dar à luz) e o verbo partir (quebrar em partes ou deslocar-se), em português nos permite a relação de ambas as palavras com a dor.

O nascimento exige dor. O bebê vive confortavelmente dentro da placenta. Não sente frio, nem fome, praticamente nada o incomoda. De repente, tudo se transforma: perde aquele líquido confortável que o envolvia, é obrigado a respirar de outra forma, ouve barulhos ensurdecedores, uma luz intensa fere seus olhos. A dor do parto não é só da mãe. Mas foi isso que permitiu o crescimento do bebê.

Evitar esse crescimento por não querer passar pela dor é como imaginar a situação absurda da criança que se recusa a nascer! Agarra-se, como pode, dentro do ventre da mãe e não se permite à experiência do nascimento. Por analogia, ao não permitir que a criança “partisse” (abandonasse o leito dos pais), os genitores evitavam a dor do “parto” (nascimento), mas não permitiam o amadurecimento do filho.

Estudar exige sacrifícios, ter um corpo saudável requer exercícios, a aquisição de erudição exige tempo e dedicação. Tudo isso nos impede do prazer imediato e, por isso, nos causa dor. Mas é necessário que sintamos dor para atingirmos nossos objetivos maiores.

Em tempos de pandemia, sentimos a dor da perda daquilo que estávamos acostumados a fazer. Não podemos mais caminhar pelas ruas sem respeitar o distanciamento social e sem usarmos máscaras. Não podemos mais visitar entes queridos, nem externar nosso afeto por meio de beijos e abraços. Não podemos participar de aglomerações, tomar um chopp ao final da tarde, assistirmos a um jogo de futebol no estádio… Não podemos e isso nos causa dor. Mas é o que, também, nos têm mantido vivos.

 

Carlos Carvalho Cavalheiro

25.08.2020