O leitor participa: Tânia Orsi, de Sorocaba (SP), com a poesia 'Pandemia crucis'

Tânia Orsi

Pandemia crucis

 

Tem um remexido

Grão de pólen seco em meus

Olhos de nuvens,

De fé.

 

Quando criança

Olho e dedo em arabesco

Sob as árvores

Esfumavam pinturas

Em faiança.

Eu não me sabia gente

Era flor, panelinhas,

Todo objeto que continha.

 

Não sabia que pessoas

Morriam torturadas

Em calabouços ensurdecidos.

Não sabia que havia

Lutas e mães que choravam

Os filhos escarnecidos.  

 

Quando cresceram meus pelos

O volume dos meus seios

Adiantaram-se como pinhas,

Abraçaram e beijaram bocas

Encontrei novo sentido e substância

Para as minhas panelinhas.

 

Envelheço ainda com bocas

De desejo e seio forte.

A criança renasce em mim

Novamente, todos os dias,

Sob a mesma árvore

Que me gerou em seu corte.

 

A dor veio grossa em parafina

Quente, grudada na pele.

Pessoas de pele fina pedindo

O sopro lunar, vulgar e reles

De poder respirar… respirar.

A morte é um ronco

Que roubamos da eternidade

Quando ela se distrai

Olhando arrebóis magníficos

Ou repetindo os refrões zonzos

Dos velórios e seus ofícios.

 

Levo minha criança passear

Entre corpos que não sonham mais.

Árvores, pássaros, cantigas

Levaram consigo o oxigênio

Que purificava nossa infância

No perfume do vapor.

Ainda somos ignorantes e assassinos

Do dia manso, liquefeito

Em dólar, euro, usinas insanas

Do desafeto, do poder, do horror.

 

Deflagramos a guerra e

Matamos a criança

E lançamos ao mar nossos nomes

Espetados na vertigem da lança.

Sujamos de escarro as esquinas,

Mas não, somos bons!

Apenas quedamos

Nas órbitas lunáticas das cloroquinas

Alucinadas em que nos enredamos.

 

O ovo saiu do cu da galinha

Mas não era redondo, nem liso,

Nasceram no meio da clara, as algemas,

Sem lírica, nasceram sem glória,

Sílica.

Pandemia Crucis,

Vurmo do lucro

Morte obscena.

 

Tânia Orsi