Artigo de J.C.S. Hungria na coluna do Guaçu Piteri: 'Galvão Junior'
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J. C. S. HUNGRIA Todos nós sabemos que a economia brasileira é bastante cíclica. País novo, e ainda do “futuro” como sonhou Stefan Sweig, até hoje não encontrou sua verdadeira vocação: ora é democrático, outra hora é socializante, outra da direita, “esquerda volver” e assim vamos tocando o barco. Na economia, a mesma coisa: aplicações em poupança? compra de dólar? apartamento na planta? dinheiro a juros? bolsa de valores? enfim é um malabarismo mágico para fugir da inflação que, de tempos em tempos, assola o sofrido povo. Se pensarmos bem, nenhum brasileiro pode se dar ao luxo de se aposentar e cruzar os braços. E, convenhamos, essa atividade que a realidade nos impõe é exercício específico de corretora de valores, e não de um pobre coitado aposentado. Foi o que aconteceu com meu saudoso pai. Residindo em Itapetininga a vida toda, ali se diplomou em odontologia mas nunca exerceu essa profissão. Foi ser comerciante, se estabeleceu, se casou, teve seis filhos, e ali morreu. Homem de hábitos simples, vivia para a família. Os filhos estudaram, constituíram família, netos, e era feliz. Participou da vida local, foi presidente do melhor clube social, chegou a ser secretário municipal e aos 93 anos faleceu. Os jornais da cidade, em página inteira, dedicaram linhas elogiosas á sua vida e o chamaram de “Patriarca da Dignidade”, título dado pela vida correta, honesta, humilde e prática do bem. Gumercindo, como era chamado, já de uma certa idade, quis ajudar uma filha e vendeu sua tradicional casa de comércio fundada em 1918 a seu genro, que, diga-se, deixou sua profissão na capital e para Itapetininga se mudou rendendo-se aos apelos de sua família. E Gumercindo, com a sensação nítida de dever cumprido, se aposentou merecidamente. Vai daí, vivia com os proventos do INSS, com a poupança que a renda a prazo do dinheiro vindo de seu genro propiciou, com alguns alugueizinhos e só. Retornando a cíclica inflação que volta e meia era presente no cotidiano brasileiro, as coisas deixaram de ser tão risonhas, como é fácil deduzir e imaginar. Então, em defesa de seus parcos rendimentos, fez o que todos faziam: emprestou seu contado dinheirinho a juros. À época, surgiu o Galvão Junior. Seu pai também itapetingano era uma respeitável figura, jornalista dos antigos e fundou o primeiro jornal da cidade: “Tribuna Popular”, orgulho de todos e exemplo que as cidades da região queriam seguir. O velho Antônio Galvão falece e seu filho,“Galvãozinho” ocupa seu lugar na redação de administração do jornal. Fracasso total, não foi para frente, e o filho se mudou para a capital. O tempo passa e eis que Galvãozinho aparece na cidade. Mais velho, lógico, mas continuava falante, simpático, sabedor das coisas e fatos de todos os assuntos, inclusive de economia. Impressionava seus conterrâneos, frequentava os bares da cidade, onde curtia a noite, contando velhos “causos” de gente conhecida local ou de São Paulo, “celebridades”da época, de quem vendia a imagem de íntimo. Impressionava a todos, repito. Nessa época, a defesa contra a desvalorização da moeda brasileira, era o “dinheiro a juros”, sem imposto de renda, sem outras complicações. Foi ai que Galvãozinho veio com uma proposta de tomar o dinheiro, aplicá-lo em São Paulo, e mensalmente vir a Itapetininga trazendo, em “dinheiro vivo”, o rendimento. Os financistas nem precisavam sair de casa. Era tudo muito bom, fácil e cômodo. Meu pai seguiu os demais. Meia Itapetininga, exagerando um pouco, estava gostando do negócio do Galvãozinho. Papai idem. Não deu outra. Passou o dia marcado, passou o mês vencido, e nada do Galvãozinho aparecer. Angustiado, aflito, a notícia chegou aos filhos. Apuramos que a delegacia local não vencia tomar depoimento dos prejudicados. Estava comprovado o “golpe”. Meu pai tinha problema de úlcera no duodeno, agravada pelas tensões emocionais, preocupações. É fácil imaginar o que ele passava. Os filhos resolveram apurar o paradeiro do já chamado caloteiro. Na Alameda Nothman, capital, Galvãozinho residia, que soubemos através de velhas anotações de nossa família, pois envolvia uma filha casada com um médico, no início da vida, que também entregara suas economias a ele. O zelador do edifício da Alameda Nothman nos deu um quadro desolador: há quase um mês, o Galvãozinho abandonou o apartamento, sumiu com sua namorada bem mais jovem que ele e que com ele morava, e desapareceu mesmo. O zelador “arriscou” que o casal foi viver no Amazonas, talvez Manaus, mas que abandonara o apartamento com móveis, cama de casal, roupas, malas e tudo, inclusive com muitas garrafas de uísque vazias. Não deixou rastro, nem notícia, nem indícios de onde se encontraria. Nós, os três irmãos, querendo poupar nosso pai Gumercindo e nossa mãe Dulce desse baque no final da vida, arquitetamos um plano que deu certo. Um irmão tinha um filho que estava montando uma pizzaria na capital, e precisava, nessa fase, de dinheiro. Os outros irmãos se cotizaram e emprestamos o montante que propiciava ao casal aproximadamente o mesmo rendimento que pagava ao mês o Galvãozinho e “mentimos” a história de que ele, o caloteiro, gostava muito do “seu Gumercindo” e iria pagá-lo, mas aconselhamos, nada de delegacia e seus companheiros de infortúnio não deveriam saber. O casal quase chorou. Perguntou se não poderia incluir sua filha, a casada com o médico. Respondemos que não poderíamos arriscar. Nem a filha nem os autores da “queixa policial”, ou seja “meia” Itapetininga. E assim foi feito. Meu pai era um santo homem, diga-se. Em minhas férias de promotor, volto a Itapetininga e, em casa, na hora da reza depois do jantar, no meio do terço, o casal ajoelhado rezava uma Ave-Maria para o bondoso Galvãozinho. Engoli em seco. J. C. S. HUNGRIA |