Artigo de Celso Lungaretti: "A temporada de truculência policial começou cedo em 2016.

A PM DE SP BARBARIZOU DE NOVO. E A PEC 51/2013 (DA DESMILITARIZAÇÃO DO POLICIAMENTO) SE ARRASTA NO SENADO

por Celso Lungaretti, no blogue Náufrago da Utopia.

Frente a jovens que protestavam pacificamente contra o aumento da tarifa do transporte coletivo, a Polícia Militar de São Paulo mostrou mais uma vez sua incapacidade para atuar num ambiente democrático, agindo com uma truculência que fez lembrar a SS nazista.

Por incrível que pareça, até a Folha de S. Paulo protestou, no editorial desta 5ª feira, 14:

As forças de segurança fizeram mais que reprimir a ação dos vândalos. Cercando as pessoas que se aglomeravam na avenida Paulista e, de modo indiscriminado, disparando bombas de gás lacrimogêneo antes mesmo de a passeata começar, impediram a própria realização do protesto –em flagrante afronta à Constituição, portanto.

Já não era pouco, mas o exagero continuou quando a multidão se dispersou. Policiais caçaram como bandidos manifestantes que não se confundiam com os black blocs e desferiram golpes de cassetete mesmo contra quem não se predispunha para o confronto.

Coube ao jornalista Breno Tardelli, diretor de redação do jornal eletrônico Justificando, identificar no desempenho da PM a utilização de uma tática repressiva condenada tanto por organizações de Direitos Humanos quanto, em tese, pela própria corporação:

Kettling (ou panela de Hamburgo) consiste em cercar e isolar as pessoas dentro de um cordão policial…

Foi exatamente o que ocorreu na Paulista. Isolados por cordões policiais que não permitiam que ninguém entrasse ou saísse da manifestação, os manifestantes foram surpreendidos com incontáveis bombas de gás lacrimogênio.

Ou seja, a PM paulista mandou às urtigas o item 3.2.1. do seu Manual de Controle de Distúrbios Civis, que é taxativo este respeito:

A multidão não deve ser pressionada contra obstáculos físicos ou outra tropa, pois ocorrerá um confinamento de consequências violentas e indesejáveis.

Segundo o professor do Mackenzie Humberto Barrionuevo Fabretti, especialista em Segurança Pública, a PM contrariou até o senso comum:

Qualquer pessoa, instintivamente, sabe que não se deve encurralar multidões em hipótese alguma, muito menos quando há uma tensão natural entre policiais e manifestantes.

Cabe ao Estado agir da forma mais racional possível para evitar o confronto e a violência.

Cercar os manifestantes e atirar bombas em todas as direções mostra um total desconhecimento de táticas de contenção de manifestações. Seria a mesma coisa que tentar apagar uma fogueira com gasolina

Patinando sem sair do lugar

Da justificada grita atual nada resultará, infelizmente. Logo outras aberrações vão ocupar os espaços principais do noticiário e continuará tudo como dantes no quartel de Abrantes. É o que nos ensinaram vários episódios anteriores, como o da bestial desocupação do Pinheirinho.

Por quê? Porque falta vontade política para cortar-se o mal pela raiz.

A solução real para o problema seria a substituição das polícias militarizadas brasileiras por instituições civis, conforme recomendou enfaticamente, já lá se vão três anos e meio, o Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, levando em conta o altíssimo índice de letalidade dessas corporações e o fato de que parte expressiva de tais óbitos se devia a “execuções extrajudiciais”.

Após analisar 11 mil casos de alegadas resistências seguidas de morte, a ONU constatou o que por aqui todos estávamos carecas de saber desde 1992, quando Caco Barcellos lançou seu primoroso livro-reportagem Rota 66 – A história da polícia que mata: frequentemente não houvera resistência nenhuma mas, tão somente, assassinatos a sangue frio de suspeitos já rendidos.

Para piorar, as autoridades brasileiras quase sempre acobertavam os homicídios desnecessários e covardes perpetrados pelos PMs.

Na reunião da ONU em que se discutiu o assunto, coube à Coreia do Sul dar nome aos bois, equiparando tais episódios aos crimes outrora cometidos pelos nefandos esquadrões da morte (aqueles bandos de policiais exterminadores que, durante a ditadura militar, trombeteavam triunfalmente seus feitos e agora atuam com alguma discrição, mas continuam existindo, sim, senhor!).

 
Marcelo Freixo: “lógica militarista e antidemocrática”.

Para Marcelo Freixo, professor de História e deputado estadual pelo PSOL (RJ), “é fundamental que o Congresso Nacional aprove a proposta de emenda constitucional (PEC 51/2013) que prevê a desvinculação entre a polícia e as Forças Armadas; a efetivação da carreira única, com a integração entre delegados, agentes, polícia ostensiva, preventiva e investigativa; e a criação de um projeto único de polícia”. Concordo em gênero, número e grau. Pena que a tramitação da PEC se arraste desde setembro de 2013, sem que sequer se vislumbre uma luz no fim do túnel.

Freixo vai ao xis da questão:

Em todos os Estados do país, a PM é concebida sob a mesma lógica militarista e antidemocrática. (…) Em vez de se preocupar em formar soldados para a guerra, para o enfrentamento e a manutenção da ordem de forma truculenta, o Estado precisa garantir que esses profissionais atuem de forma a fortalecer a democracia e os direitos civis. A realização dessa missão passa necessariamente por mudanças na essência do braço repressor do poder público.

Entulho autoritário

Tal mostrengo existe por obra e graça da ditadura de 1964/85, só sobrevivendo a ela em função da pusilanimidade dos governantes civis a quem cabia eliminar o entulho autoritário.

Na sua trajetória para concentrarem poder na segunda metade da década de 1960, os militares encontraram alguma resistência por parte dos governadores civis que ajudaram a dar o golpe mas depois viram, com óbvio desagrado, esfumarem-se suas ambições presidenciais. Precavidos, os fardados resolveram assegurar-se de que os paisanos não contariam com tropas a eles leais.

O governador Adhemar de Barros, p. ex., até o último momento acreditou que a Força Pública impediria a cassação do seu mandato (tiraram-no do caminho acusando-o de corrupto -o que ele sempre foi- mas, principalmente, porque não se conformava com o monopólio castrense do poder).

Então, nas Constituições impostas de 1967 e 1969, a ditadura fez constar da forma mais incisiva que “as polícias militares (…) e os corpos de bombeiros militares são considerados forças auxiliares, reserva do Exército“.

 
Até 2011 a Rota alardeava sua participação no golpe de 64

Na prática, seus comandos foram se subordinando cada vez mais aos das Forças Armadas; e as lições de tortura aprendidas de instrutores estadunidenses e aprimoradas nos DOI-Codi’s da vida foram ciosamente repassadas aos novos  pupilos. Daí a tortura ter continuado a grassar solta, longe dos holofotes, depois da redemocratização do País, só mudando o perfil das vítimas (passaram a ser os presos comuns).

Além disto, a ditadura estimulou a absorção da civilizada Guarda Civil de São Paulo pela truculenta Força Pública (que atuava como tropa de choque em conflitos), sob a denominação de Polícia Militar. Vale notar que o decreto-lei neste sentido, o de nº 217, é de 08/04/1970, bem no auge do terrorismo de estado no Brasil.

Não é à toa que, até 2011, a unidade mais violenta da PM paulista (a Rota) mantinha no seu site rasgados elogios ao papel que a corporação havia desempenhado na derrubada do presidente legítimo João Goulart, só os deletando sob vara da então ministra dos Direitos Humanos Maria do Rosário.

 

O que há a dizer, antes de mais nada, é que entre eu e Dilma houve desamor à primeira vista. Conhecemo-nos em outubro de 1969, no Congresso de Teresópolis da VAR-Palmares, como quadros em ascensão das duas facções antagônicas, os militaristas e os massistas.

Moisés (José Raimundo da Costa) e eu, ambos comandantes estaduais da Organização em SP, fomos os iniciadores do racha que acabaria acontecendo no final daquele tenso congresso, mas um contra-ataque do lado oposto resultara na cassação de nossa condição de delegados. Por conhecermos o local onde se realizava, tivemos de nele permanecer até o final, incorporados à equipe de segurança.

Quando não estávamos vigiando os acessos para darmos o alarme se a repressão chegasse (e, provavelmente, sermos os primeiros a tombar sob o fogo inimigo), tínhamos o direito de assistir às discussões, desde que entrássemos mudos e saíssemos calados.

Então, percebi claramente que os massistas experientes e influentes (o Antonio Roberto Espinosa, o Carlos Franklin Paixão de Araújo e a Maria do Carmo Brito) haviam delegado à jovem e ambiciosa pupila a missão de atacar com muita contundência os militaristas de pavio curto como o Carlos Lamarca e o Cláudio de Souza Ribeiro. (leia o texto completo aqui)