Celso Lungaretti: 'Importante: demonstração de força do Bolsonaro contra o exército deve ter sido o pior de quantos erros já cometeu'
Bolsonaro venceu uma batalha que apressará sua derrota na guerra
Se Jair Bolsonaro tivesse os conhecimentos históricos indispensáveis para presidente de verdade, jamais afrontaria os altos comandantes militares como acaba de fazê-lo, repetindo a insensatez de João Goulart no dia 27 de março de 1964, quando anistiou marinheiros insubmissos cuja prisão o ministro da Marinha determinara.
Com isto, involuntariamente coroou de êxito a estratégia dos golpistas, de instigar cabos e sargentos contra os oficiais das Forças Armadas, na qual teve papel destacado o chamado Cabo Anselmo que, conforme ficou definitivamente provado há exatos 10 anos (vide aqui), já era um agente provocador quando radicalizava as assembleias da marujada com sua retórica incendiária.
José Raimundo da Costa, meu companheiro de militância na Vanguarda Popular Revolucionária, me contou que um oficial da Marinha o foi prender naquele período, a bordo do navio em que servia. Seus colegas marujos lhe perguntaram:
— O que fazemos com esse palhaço?
Que os altos oficiais das três Armas, em sua maioria, sempre penderam mais para a direita é óbvio, até por provirem de famílias abastadas, mas daí a crer que eles invariavelmente foram golpistas e fascistas distorce os fatos:
— o tenentismo da década de 1920 consistiu, basicamente, em revoltas contra o status quo oligárquico na chamada República Velha, com participação de jovens oficiais tanto de esquerda quanto de direita;
— dentre os de esquerda, destaque, claro, para Luiz Carlos Prestes, que depois seria indicado pela Internacional Comunista para o papel de dirigente máximo do PCB;
— dentre os de direita, Olímpio Mourão Filho, que chefiaria o serviço secreto integralista, forjaria o Plano Cohen (fajutice que serviu como pretexto para justificar a instauração do Estado Novo em 1937) e desencadearia o golpe de 1964, ao colocar suas tropas na Via Dutra, em marcha para o Rio de Janeiro);
— as Forças Armadas tanto combateram a Revolta Vermelha (ou Intentona Comunista) de 1935 quanto o Levante Integralista de 1938;
— Getúlio Vargas, ideologicamente próximo do fascismo, teve de renunciar ao poder em outubro de 1945, sob ameaça de um golpe militar (!);
— convertido em nacionalista após os EUA haverem favorecido seu defenestramento, Vargas estava prestes a cair novamente em 1954, graças a um golpe orquestrado principalmente pela UDN, com apoio explícito de oficiais da Aeronáutica, e que obteria a adesão de generais do Exército no momento decisivo. Mas, com seu suicídio e carta-testamento, Getúlio inviabilizou a tomada de poder pelos golpistas e o oficialato militar se conformou, aceitando que o vice-presidente Café Filho assumisse a presidência;
— nova tentativa de golpe respaldada por oficiais ocorreria com a renúncia de Jânio Quadros em 1961 e a recusa em empossar o vice-presidente João Goulart, mas a resistência do governador gaúcho Leonel Brizola, com o apoio do III Exército, abortou a empreitada, prevalecendo uma solução de compromisso: Jango assumiria, mas com seus poderes limitados pela introdução do parlamentarismo;
— por fim, o golpe tramado desde a década anterior por um grupo de militares liderado pelo marechal Castello Branco e assessorado pela CIA virou realidade em 1964, mesmo assim só se tornando consensual entre os altos comandantes na reta final, após sucessivos episódios de quebra da hierarquia como os que relatei na abertura deste artigo.
Ou seja, embora houvesse um dispositivo golpista há muito montado por uma ala militar e buscando incessantemente tanger os acontecimentos para a ruptura institucional, a coisa só engrenou de vez após os oficiais se verem desacatados abertamente pelos subalternos, com a tolerância de Goulart.
Outro fator importante foi Lyndon Johnson haver sido empossado na presidência dos EUA em 22 de novembro de 1963, substituindo o assassinado John Kennedy, que era bem diferente daquele caipirão texano que comia nas mãos da CIA.
Embora os golpistas estivessem havia muito tempo sendo apoiados pelos falcões estadunidenses, temiam que Kennedy refugasse, não querendo envolver-se com a derrubada de um presidente estrangeiro (afinal, ele negara, na enésima hora, o apoio aéreo do qual os mercenários a soldo dos contras cubanos careciam para terem alguma chance de êxito ao desembarcarem na Baía dos Porcos).
Com a certeza de que teriam os EUA a seu lado, durante e depois do golpe, os castellistas partiram para a última etapa do plano, a conquista dos quartéis, facilitada pelo jogo duplo de uns e a ingenuidade de outros dos subalternos revoltosos.
Mesmo ao longo dos 21 anos de trevas, também não havia monolitismo nas Forças Armadas, mas contínuas disputas pelo poder.
Antes de 1968, a linha dura pugnava para radicalizar a ditadura e os castellistas queriam honrar sua proposta inicial de uma intervenção saneadora, seguida da devolução do poder aos civis. As escaramuças se sucederam ao longo do ano até que um discurso algo pueril do deputado Márcio Moreira Alves (que sentido fazia recomendar às moças que não namorassem com cadetes das escolas militares?!) forneceu o componente emocional necessário para a imposição do golpe dentro do golpe, o AI-5, à medida que os parlamentares negaram permissão para que seu colega fosse julgado (e, inevitavelmente, cassado).
Mesmo assim, os castellistas contra-atacaram e é provável que tal cheque em branco para o terrorismo de Estado sem quaisquer limites tivesse sido cancelado pelo ditador Costa e Silva, se o piripaque que o acometeu não o prostrasse antes de revogar o AI-5, conforme cogitava.
O que mais se aproximou de um monolitismo foram os anos Médici (de outubro/1969 a março/1974), com os castellistas reduzidos à impotência e a linha dura torturando, matando e barbarizando à vontade.
Havia, sim, uma ala militar minoritária que seguia o exemplo do presidente peruano Juan Velasco Alvarado, contestando a subserviência aos EUA, defendendo medidas como a nacionalização de setores-chave da economia e a ampliação do limite territorial marítimo para 200 milhas (que, para contentá-la, Médici adotou). Mas, coincidia com a linha dura quanto à radicalização da ditadura.
A partir da posse de Ernesto Geisel, as disputas militares se reacenderam entre os aceitavam sua proposta de uma gradual abertura política, desenhada por Golbery do Couto e Silva, e a ainda influente linha dura, que explodiu bancas de jornais, enviou cartas-bombas, sequestrou pessoas, planejou atentados que teriam causado morticínio em larga escala como o do Riocentro e fez provocações como os assassinatos de Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho no DOI-Codi, até ser finalmente derrotada, ao custo das sucessivas exonerações do comandante do II Exército e, em seguida, do próprio ministro do Exército.
De 1985 até a posse do pior presidente da República do Brasil em todos os tempos, houve relativa paz na caserna, com a prevalência dos oficiais que queriam manter as Forças Armadas limitadas aos seus deveres constitucionais; restou apenas um pouco de ruído, proveniente da velha guarda ideologizada, que tudo fazia para manter sob o tapete do esquecimento as práticas hediondas da ditadura.
Bolsonaro, que teve de passar à reserva do Exército em 1988 para escapar de uma punição mais condizente com a gravidade dos seus contínuos desacatos aos superiores hierárquicos, nada aprendeu com sua destrambelhada tentativa de peitar os comandantes. Aproveitando a sua, no mínimo lotérica, ascensão à presidência, duas vezes já cedeu à tentação de retaliar a instituição que o expeliu.
Pelo que conheço dos bastidores da caserna (e não é pouco, pois jamais deixei de registrar na memória e de refletir sobre tudo que presenciava ou ficava sabendo durante o período em que fui hóspede compulsório dos fardados, nem de analisar os episódios militares subsequentes à luz do que havia aprendido), são corretos os relatos de que os altos comandantes estão profundamente insatisfeitos com a humilhação a que o Exército acaba de ser exposto.
O fato de haverem refugado desta vez nem de longe garante que Bolsonaro já tenha tudo dominado. Serve-lhes, contudo, como advertência de que, quanto mais cederem, mais desmoralizados ficarão. E de que, perdendo o respeito dos subalternos, estarão sujeitos a terem suas ordens por eles desacatadas e até a serem atirados no mar, como em 1964.
Ademais, se o êxito da ditadura parecia uma aposta pelo menos plausível em 1964, só néscios hoje não percebem que, com as crises sanitária e econômica agravando-se cada vez mais e com o mundo inteiro encarando o Brasil como pária, sem esperança de qualquer tratamento privilegiado por parte dos EUA, o futuro que se desenha para nosso país é o pior possível: depois da anarquia militar, o caos.
Com a agravante de que o governo e a popularidade de Bolsonaro derretem a olhos vistos, sem nenhuma chance de reviravolta, pois os maiores problemas que enfrentamos, ou estão sendo causados por ele ou por ele potencializados. Se pagarem pra ver, os oficiais constatarão que desperdiçam suas fichas de popularidade sucumbindo a blefes.
Como néscios os altos comandantes militares não são, salvo um ou outro que se presta a servir de ajudante-de-ordens para um reles capitão baderneiro, não duvido de que eles logo extraiam as conclusões que se impõem e ajam em conformidade com elas.
Caso contrário, as consequências serão trágicas para os brasileiros e aviltantes para eles. Quantos sapos ainda serão capazes de engolir?
Celso Lungaretti
lungaretti@gmail.com