Marcelo Augusto Paiva Pereira: 'Uma saudosa visita'
Uma saudosa visita
I
Durante anos o rapaz sempre visitava os pais nos finais de semana, inclusive nos prolongados. Era solteiro e a companhia do pai e da mãe era afetivamente agradável. Saíam os três em diversos lugares, inclusive ao shopping center da cidade, aos cinemas, supermercados, restaurantes e cafés. A vida deles era bem conectada, ainda que o filho morasse em outra cidade, bem maior.
— Oi, pai, como vão você e minha mãe aí?
— Vamos bem, e você? Como vai a nossa metrópole?
— Como sempre congestionada, muito barulho e poluição. Neste final de semana estarei aí.
— Que bom. Sua mãe e eu aguardamos sua chegada. Ela sente sua falta assim como eu.
— Eu sei. Sairei daqui sexta-feira após o almoço. Chegarei aí por volta das 15hs00. Abraços.
— Abraços.
O final de semana foi ótimo. Ele ficou no apartamento dos pais e saíram várias vezes: foram ao centro da cidade, ao shopping, às cafeterias e docerias. Era tudo de bom. Nem as chuvas de verão ou o frio do inverno os atrapalhavam; a presença dos três os animava. Sempre saíam para passearem.
— Mãe, você gostou daquela blusa?
— Gostei, mas tenho tantas. Não vou comprar. Deixarei para outro dia.
— E você, pai? Gostou de alguma roupa?
— Não… Nenhuma me atraiu. Além disso, são muito caras.
— Ele não gostou das roupas por causa do preço…
— Imaginei. Meu pai controla todos os gastos com mão fechada…
O pai do rapaz cortou a conversa, com assunto diverso.
— Vamos tomar um café? Junto de um pão de queijo? Está quase na hora do café da tarde.
— Vamos. Um cafezinho vai bem.
Os três foram a um café e, após se servirem, retornaram para o apartamento. Foi um ótimo dia e passeio.
II
O tempo passou e o peso da idade atingiu os pais dele. A mãe foi a primeira a falecer, após três semanas de internação num hospital, vítima de acidente vascular cerebral. O velório e sepultamento foram comoventes. Antes de fechar definitivamente o caixão, ele pôs uma música que ela adorava – para ela ouvir pela última vez – e, em seguida, fez um discurso comovente. O pai dele, agora viúvo, também dela se despediu com muita emoção na voz…
— Pai, vamos para casa. Minha mãe está com Deus, no Paraíso Celestial. Ela queria rever o pai dela; deve estar junto dele, neste momento…
— Com certeza. Ela queria revê-lo, sim. De vez em quando eu a flagrava choramingando, porque sentia falta do pai dela. Ela deve estar com ele, sim.
O rapaz deixou a metrópole para ficar com o pai, no apartamento onde antes ele vivia com a esposa. Numa tarde de domingo o rapaz quis ouvir a mesma música que pôs para a mãe ouvi-la quando do sepultamento e buscou o “CD-player” que havia dado a ela na comemoração do último aniversário. Ele pôs o CD e o ligou, mas o aparelho não funcionou.
— Pai, o “CD-player” parou de funcionar. Por que será?
— Melhor levar para um técnico. Ele saberá a causa e o consertará.
— Vamos agora? Ainda é cedo, não chegou a hora do almoço. Dá para irmos no técnico e de lá almoçarmos naquele restaurante “self-service” que você gosta.
— Então vamos.
Após uma semana o rapaz e o pai retornaram à loja do técnico e este disse que havia queimado uma peça que era a “alma” do aparelho e que ele não conseguiu fazê-lo funcionar nem com a troca dessa peça… Algo que ele não soube explicar. Ambos saíram de lá, foram para o almoço e de lá compraram outro “CD-player”. No retorno para o apartamento, o filho comentou o ocorrido com o pai.
— Muito estranho a queima dessa peça do “CD-player”.
— Por que diz isso? A peça queimou.
— Sim, mas depois que minha mãe faleceu, esse “CD-player” não foi mais usado por nós nem o emprestei a ninguém. E a peça queimou sozinha…
— O que você acha disso?
— Uma vez me disseram que quando uma pessoa gostou muito de algo durante a vida, ela volta para buscar esse objeto. No caso, minha mãe gostava muito da música que pus para ela ouvir no sepultamento dela.
— E…
— Daí que essa música ficou “gravada” na peça que queimou… Ela veio buscar a música de que tanto gostava e, ao fazer isso, a peça queimou sozinha. A música era a “alma” da peça…
— Pode ser. Nunca saberemos ao certo.
— Sim. É apenas uma hipótese… Mas, acredito que assim tenha sido.
III
Durante alguns anos ambos saíram juntos e viveram bons momentos, mas a idade avançou e a viuvez cobrou seu preço. Ao pai do rapaz foi preciso contratar duas cuidadoras, que se revezavam durante as semanas.
Numa tarde de verão uma das cuidadoras disse ao rapaz que o pai dele estava se sentindo mal e foram para o hospital. O médico que o atendeu constatou pneumonia num dos pulmões e ele foi internado naquele mesmo dia.
As cuidadoras se revezavam durante o dia e o filho ia à noite no hospital para acompanhar o pai enquanto internado. Foram quase duas semanas de agonia, pensamentos e sentimentos turbulentos, agitados pela enfermidade que acometeu o pai do rapaz. Ele cria sonhar que era real ao mesmo tempo que a realidade o fazia crer que era um sonho (ou pesadelo). A ele a situação do pai era surreal…
O pai foi vencido pela idade, pelo cansaço e pela enfermidade. Faleceu enquanto dormia, ao lado do rapaz. O velório e sepultamento dele foi tão comovente quanto o da mãe. O filho se despediu do pai com lágrimas nos olhos e voz embargada.
Mas desta vez sentiu-se só, mesmo na presença dos parentes e amigos mais próximos… Era a solidão decorrente das perdas da mãe e do pai que o fazia se sentir assim. Ambas as perdas formaram um vazio na alma do rapaz, que nada – absolutamente nada – o preencheu, ocultou-o ou o eliminou. Ainda que o tempo atenuasse, a dor das perdas não passou.
IV
O rapaz foi embora daquela cidade onde por quase trinta anos viveram seu pai e sua mãe. Foi para outra, não muito grande, e lá passou a morar num apartamento pequeno somente para ele. Fez algumas amizades, com as quais distraía suas atenções quando não estava no trabalho. A atividade laboral, o lazer com alguns amigos e os anos o ajudaram a diminuir a dor das perdas dos entes queridos, ainda que persistisse.
Numa noite de sábado o rapaz estava deitado no sofá da sala e assistia à TV ocasião em que, de repente, sentiu um vazio muito grande na alma, acompanhado de solidão e da tristeza pela falta do pai e da mãe. Em seguida, pelo tempo de uns quinze segundos, ele sentiu a presença de ambos e ouviu as vozes da mãe e do pai.
— “Filho, nós estamos do seu lado. Apoiamos você em tudo que fizer.”, disse a mãe a ele.
— “Isso mesmo, filho. Estamos do seu lado e apoiamos você.”, disse o pai.
Logo após o rapaz se pôs a chorar por alguns minutos. Ainda que não os tivesse visto, ele recebeu a visita de ambos, pai e mãe, que com ele conversaram por alguns segundos. Neste curto tempo o rapaz se sentiu amparado por eles, assim como ao tempo em que os visitava e com eles saíam para passearem…
Por tantos anos o filho visitou o pai e a mãe nos finais de semana e em outras ocasiões. Sempre ao lado deles, em diversos lugares e situações. E numa noite de sábado o rapaz recebeu a rápida visita deles, para saber que sempre estiveram ao lado dele, ainda que estejam ao lado do Criador, no Paraíso Celestial. Esta foi, sem dúvida, uma saudosa visita, para que o filho nunca se sinta só nem esqueça que pai e mãe são para sempre.
Marcelo Augusto Paiva Pereira
secondo.appendino@gmail.com