Glenda Brum de Oliveira: 'Narciso e a era digital'
Narciso e a era digital
O mito grego de Narciso fala de uma vaidade exacerbada, acrescida de arrogância e orgulho. Narciso, ao contemplar seu rosto na superfície de um lago, fica tão embevecido com a própria imagem, que não consegue parar de mirá-la. E ali perece de inanição, pois não consegue sair e viver sua vida. Torna-se vítima de uma narcose fatídica, que o impediu de ter a vida longa e plena, profetizada pelo oráculo Tirésias, quando nasceu. Morreu cedo, como escravo e vítima de sua própria beleza, que se tornou sua algoz.
Todos os dias, as mídias derramam conteúdos diversos de diferentes influencers, inundando as redes sociais. A atividade que abre a intimidade, a vida privada torna-se pública e não há limites de exposição. Toda essa exibição busca admiração, seguidores e em alguns casos, suprir a necessidade de segurança em relação a própria imagem. E o pior, muita mentira. Ficção montada para agradar. Tornando-se até roteiro de filmes.
Pode-se argumentar que é apenas trabalho, uma nova profissão, mas por trás há vários pontos a serem considerados, tanto para quem expõe-se, quanto para quem acompanha a exposição alheia.
A realidade difícil e limitada da maioria das pessoas é ‘desinteressante’, diante da vida ‘emocionante’ vivida por celebridades digitais. A ‘monotonia’ da vida cotidiana fica mais colorida, quando ganha as cores da vida alheia contemplada. Olhar as aventuras, o glamour das celebridades nas redes sociais, ‘supre’ a necessidade de emoção e coloca os seguidores num mundo paralelo de realidade virtual. Sentem como se vivessem a vida de quem estão seguindo. E tão absortos ficam nessa praxe, que se esquecem de viver a própria vida. Entram em um estado de narcose, como o Narciso do mito; não paralisados pela própria beleza, mas pela ‘bela vida’ de quem seguem.
Essa contemplação torna-se muitas vezes doentia, tanto para quem segue, como para os que são seguidos. Igualmente há o ego exacerbado, a inércia contemplativa, presentes no mito grego.
Muitos seguidores tornam-se frustrados diante da impossibilidade de vivenciar as mesmas experiências, desfrutar da mesma fama e atenção. Uns se tornam inconvenientes e há os apáticos, pois acham-se derrotados e incapazes.
Os que produzem conteúdo, frustram-se pelo vazio das relações interpessoais; sofrem de ansiedade, pois necessitam sempre ter novidades atrativas e emocionantes, para manter e aumentar a audiência de seguidores ávidos e assim obter seus ganhos financeiros ou suprir o seu egocentrismo.
Seja qual for o caso, o estupor soporífero causado pela nova realidade midiática, impede a análise, o questionamento e ação por parte dos seres humano atualmente. Estão sujeitos à intervenções e direcionamentos da mídia e suas celebridades, e são carregados na avalanche de opiniões e achismos alheios, que lhes moldam as vontades e saberes. Estabelecendo um perigoso fim para a autonomia e individualidade, bem como para as divergências de perspectivas de como viver a vida, de leitura de mundo. Podendo ser massa manipulável diante de interesses escusos e más intenções.
Estamos diante de uma nova forma de narcose fatídica social. Basta saber se o final diferirá de Narciso ou seguirá a mesma conclusão trágica. A escolha ainda depende de cada pessoa.
Glenda Brum
glendabrum@gmail.com