Bruna Rosalem: 'A psicanálise diante da loucura: aproximações através do filme A Ilha do Medo'

Bruna Rosalem

A psicanálise diante da loucura: aproximações através do filme A Ilha do Medo

Há certa beleza na loucura, que não precisa ser obscura. A gente teme aquilo que não conhece.

As psicopatologias são perturbações mentais. Caracterizam-se pelo paciente apresentar sintomas que não condizem com um estado mental saudável. A palavra psicopatologia vem do grego psykhé, significa alma, e patologia, estudo das doenças e seus sintomas. Literalmente, seria uma patologia da alma.  E umas das doenças mentais que apresenta uma série de sintomas que evidencia comportamentos tidos anormais pelo paciente e que o faz desconectar-se completamente da realidade que o cerca é a esquizofrenia. Esta psicopatologia é retratada no filme A ilha do Medo (2010), do diretor Martin Scorsese.

A esquizofrenia é um transtorno psicótico em que a pessoa sofre alucinações e pensamentos perturbadores que a isolam das atividades rotineiras e da vida social. É uma doença muito grave, mas há tratamentos bastante eficazes para que os pacientes que sofrem deste mal possam desfrutar sua vida da melhor forma possível.

Estudar as psicopatologias através da observação e sistematização de fenômenos do psiquismo humano é de fundamental importância, sendo um campo de estudo bastante influenciado pela fenomenologia no sentido da experiência das manifestações. Muitos profissionais da saúde mental desbravam cotidianamente esta área tão fascinante, com manifestações muito singulares em cada indivíduo. Para os psicanalistas em especial, o conhecimento em psicopatologias tem sua relevância para detectar quando o paciente necessita de uma intervenção para além das sessões de análise no setting psicanalítico, isto é, o analista percebe que o paciente já não corresponde a sua fala e comportamento condizentes com uma neurose, mas sim de algo que o aproxima de uma psicose, e, para tanto, precisa complementar o tratamento com intervenção médica (exames físicos, neurológicos, investigação acerca de anormalidades biológicas, etc.), inclusive fazer uso de medicamentos.

No filme que vamos tratar, Leonardo Di Caprio é Teddy Daniels, um policial que vai até a uma espécie de ilha-presídio, tipo um manicômio judiciário, para investigar o suposto desaparecimento de uma detenta/paciente. Para chegar até lá é preciso enfrentar os mares perigosos a bordo de um navio. Aqui ele conhece um outro policial que será o seu parceiro de investigação. Contudo, as razões de estarem ambos ali, bem como a lealdade do colega, vão sendo colocadas em xeque na medida em que Daniels vai ficando perturbado por ter alucinações visuais e auditivas, terror noturno, enxaquecas, fotofobia e freqüente mal estar. Junto a isso, sem saber, ele está ingerindo neurolépticos e sendo submetido a sessões regulares de ‘terapia’ que pretendem confrontá-lo com ‘a verdade’ latente: ele não é um agente da lei e está ali porque também é louco e delinquente.

No decorrer no filme há flashbacks que aos poucos vão relevando o que de fato o protagonista estaria fazendo na ilha: na verdade, Daniels era casado e sua esposa apresentava comportamentos característicos de uma pessoa maníaca- depressiva (hoje em dia o termo seria bipolaridade). Ela sofria com pensamentos delirantes que, segundo os médicos da ilha, Daniels não havia percebido que ela manifestava tal enfermidade fazia algum tempo.

Então, certa vez, em um surto psicótico, a esposa afogou os três filhos do casal. Quando Daniels chegou em casa numa tarde, lá estavam as crianças boiando no lago e sua esposa dizendo palavras totalmente desconexas. Para ele, aquele cenário foi aterrorizante e devastador, como se sua alma fosse esmigalhada, destroçada. Daniels então acabou baleando a esposa e logo em seguida ateou fogo em sua própria casa. A partir deste fato, Daniels passou a sofrer de alucinações e não responder mais à realidade. Criou em sua mente uma personagem, o policial, numa espécie de fuga na tentativa de sobreviver a si mesmo e não encarar a realidade de seus pensamentos, visões e memórias que tanto o torturavam: a imagem dos filhos mortos, o crime de homicídio e a terrível culpa.

Aos poucos, no decorrer do filme, a realidade vai sendo desvelada a Daniels, que então cai em si percebendo que tudo não passava de ilusões alimentadas por ele mesmo para talvez escapar de um peso moral enorme e de todo ressentimento que o consumia, pois ele insistia em dizer que a esposa assassinou sua família porque ele não se deu conta do quanto sua companheira era uma pessoa doente.

Quando Daniels foi indagado pelos médicos da instituição e pelo seu parceiro policial, que na realidade era o psiquiatra da ilha, se sabia o que estava fazendo naquele lugar, ele enfim reconhece que era mais um paciente em tratamento. Porém, quando a equipe de especialistas aparentemente seguia aliviada diante da retomada de consciência de Daniels e da superação da psicose, logo tudo recomeça, e o protagonista retorna à pele do policial tomado de um determinismo ímpar em investigar o desaparecimento de uma criminosa.

Nesta última cena é possível afirmar que a esquizofrenia não é algo fácil de ser tratada e que os pacientes que sofrem desta psicopatologia precisam de terapias de apoio e medicamentos para encontrar meios possíveis de conviver com este quadro durante a vida toda.

O psicanalista deve ter a sensatez de que a terapia da escuta será o melhor método para este tipo de paciente e, porque não, adentrar em seu mundo psicótico criando empatia e vivenciando junto com ele nas sessões de análise o seu universo paralelo, dentro dos limites de uma linha terapêutica, é claro. Afinal, o grande impasse da técnica psicanalítica com o sujeito psicótico é a dificuldade no estabelecimento da transferência deste com o psicanalista, uma vez que a transferência é condição sine qua non para o êxito de uma análise.

Mais uma vez, a escuta do paciente se apresenta como elemento imprescindível no desenvolvimento do trabalho. Existe uma fala e uma realidade que pertence ao paciente esquizofrênico, e a questão que se coloca é como interpretar essa fala que, mais do que em pacientes neuróticos, pode se apresentar por mutismos, gestos e palavras aparentemente desconexas, relatos de perseguição, pessoas imaginárias, vozes que ecoam, que chamam, que convocam.

Pessoas que convivem com esta psicopatologia necessitam de redes de apoio para que não fiquem à margem da sociedade. O acolhimento destes sujeitos é essencial, seja pelos familiares, seja em instituições que prezem o saudável convívio entre pares, respeitando a singularidade de cada paciente: a maneira que compreendem o seu viver mesmo em meio ao caos particular, manias, ações ritualísticas, gestualidades, irreverências, idiossincrasias, maluquices, caras e bocas, ousadias, introspecção, melancolia, alucinações, outras realidades, mundo à parte, ‘fora da casa’.

Para nós, profissionais da saúde mental, estar junto a estas figuras significa aprendizado e, acima de tudo, amor ao ser humano. Há certa beleza na loucura, que não precisa ser obscura. A gente teme aquilo que não conhece. E não se preocupe, todos temos um lado psicótico. A diferença é que para uns, existe apenas este lado.

 

Bruna Rosalem

Psicanalista Clínica

@psicanalistabrunarosalem

www.psicanaliseecotidiano.com.br