Bruna Rosalem: Coluna Psicanálise e Cotidiano: 'A vida em extremos: o jeito borderline de ser

 

Bruna Rosalem

COLUNA PSICANÁLISE E COTIDIANO

A vida em extremos: o jeito borderline de ser

[…] são pessoas participantes da

sociedade, porém carregam consigo

 tamanha intensidade em viver cada dia como se fosse o último.

 

Nós seres humanos temos em nossa estrutura psíquica a capacidade de sentir e pensar. E fazemos isto de maneira dinâmica, elaborada, intra e inter relacional. Somos razão e emoção. E, mais especificamente, no campo das emoções, os nossos sentimentos são muito mais avançados e complexos quando se considera toda uma cadeia energética que nos comanda: a atividade neural, as relações psíquicas interiores e exteriores, as influências sociais, culturais e ambientais. Diante disso, é possível inferir que enquanto ser humano, à medida que vamos nos estabelecendo neste mundo como tal, precisamos iniciar um processo de construção de lugar, não um lugar físico, palpável, é um lugar subjetivo consigo mesmo e com relação ao outro.

Ninguém se define sozinho, nos manifestamos sempre na perspectiva do outro, desde o nascimento quando o bebê se depara com a figura materna, e progressivamente, vai identificando a si mesmo e desfazendo-se da imagem atrelada a outro ser. Ele se vê um sujeito independente e a mãe é outro completamente diferente. É o princípio do surgimento do eu e toda a sua complexidade no decorrer de seu processo de maturação e desenvolvimento biopsicossocial.

É fato que toda esta dinâmica descrita brevemente não é nada simples. Os tipos de personalidade são um ponto de partida para a compreensão do funcionamento de alguém. Afinal cada um tem um estilo singular de ser e entender a vida sob a sua ótica que é influenciada, como já dito, por inúmeros elementos internos e externos. E definir um tipo de personalidade de modo reducionista é, muitas vezes, limitar o modo de ser de um indivíduo. É por isso que em personalidades descritas como borderlines, o diagnóstico para chegar a esta conclusão é complicado e leva tempo.

Pessoas com transtorno de personalidade borderline (cerca de 2% da população mundial) são descritas como parte dos transtornos de personalidade emocionalmente instáveis, este termo border (em inglês, fronteira) é justamente onde o sujeito se encontra: na fronteira entre a neurose e a psicose. A pessoa que integra este quadro clínico apresenta a tendência marcante em agir impulsivamente sem considerar as consequências ou refletir a respeito, em associação a instabilidade afetiva. Sua capacidade é mínima para planejar, age deliberadamente, e tem acessos intensos de raiva, podendo levar a praticar atos violentos, inclusive, em casos extremos, crimes passionais.

            Os indivíduos com TPB (Transtorno de Personalidade Borderline) tem o que chamamos de personalidade fluída. Isto quer dizer que eles passam abruptamente de um estado de humor depressivo generalizado para uma agitação ansiosa ou raiva intensa, e ainda, podem envolver-se impulsivamente em ações que, logo depois, as consideram irracionais e inviáveis.

Seus relacionamentos afetivos são sempre uma bomba-relógio, envolvem-se intensamente a ponto de morrer pela outra pessoa, rejeitando totalmente o menor indício de abandono. Por essa razão, o número de pessoas que tiram a própria vida pode ser considerado alto, seja alavancado por demonstrações devastadoras de um amor patológico, seja pelos ápices de euforia e depressão seguidos de um profundo sentimento de vazio, de não preenchimento de si.

Mesmo que esses sujeitos apresentem dificuldades acentuadas nos relacionamentos interpessoais, é interessante pensar que, diametralmente oposto a isso, estas pessoas podem obter sucesso em muitas profissões, como por exemplo, artistas, em atividade mais voltadas a dramaturgia, a arte, a encenação, por justamente transitar tão facilmente entre os personagens que precisam incorporar com bastante intensidade. E nos relacionamentos afetivos é possível notar certa tendência a uma vida cheia de altos e baixos, algo quase que aventuresco, como a exemplo de mulheres que vivem com traficantes, presidiários, chefes de facção.

O borderline, ainda que um sujeito fluído, tem “um pé na realidade”, ou seja, pode-se dizer que há um lado neurótico. Em psicanálise, é possível afirmar que sua parte egóica é muita fragmentada, dissociada, distorcida em sua própria imagem. Borderlines possuem um entendimento de si bastante aquém do que gostariam de ser, sempre se avaliam com elementos negativos. Neste caso, a questão da castração – conceito edípico marcante durante o desenvolvimento psicossexual –   não é o foco principal do borderline, e sim a angústia de separação, da perda do objeto, pois a formação do ego depende do olhar do outro, e é a partir deste outro que nos constituímos.

O que acontece é que o paciente com TPB segue assim, desfragmentado de si e da realidade, causando uma sensação de vazio existencial. Por isso que ele precisa do outro para existir, como codependente, e isto justamente andaria na contramão da constituição de um ego forte, dominante que seja mais independente do superego (instância julgadora) e dominador das investidas do id (instância das pulsões).

            O sujeito borderline apresenta basicamente três critérios que o caracteriza: difusão da personalidade, nível de operações defensivas (principalmente a clivagem de seu self e de objetos externos em comparações extremas: ou se é muito bom ou se é muito mau) e presença, mesmo que confusa da realidade (parte neurótica). Ele é considerado um histérico grave ou perverso.

Por justamente projetar no outro o seu ideal, este sujeito é capaz de transformar-se naquilo que encontra fora de si. Por exemplo, se a pessoa se relaciona com um cozinheiro, ela pode vir a se tornar também uma chefe de cozinha. Se está com alguém que é um triatleta, passa então a querer dominar esta prática esportiva. Isto só demonstra o quanto ela é um “sujeito vazio”, é despersonalizado, é incapaz de sentir emoções genuínas e mesmo que as venha ter, não consegue suportá-las. Também podem encenar episódios de histeria com reações emocionais exageradas, fazem uso excessivo de álcool e drogas, podem cometer delitos, têm relações sexuais patológicas, numa busca intensa em fugir da sensação de vácuo existencial que as consomem.

Compõe também em seu quadro clínico a depressão. Em sujeitos borderlines, a depressão é caracterizada pelo vazio, como já mencionado, e pela solidão. Muitos destes indivíduos se declaram antissociais e não conseguem manter relações de trabalho estáveis. Outro traço é ser avesso a rotina, regras, críticas, não toleram a frustração, não se esforçam para serem mais perseverantes em seus objetivos, quando muito possuem metas, mas ao mesmo tempo querem recompensas desproporcionais a realidade que vivem e ao empenho que demonstram.

Ocasionalmente relacionar-se com uma pessoa borderline em eventuais encontros sociais para conversar e trocar ideias pode até ser divertido, porque o traço border caracteriza um sujeito que em tese é animado, brincalhão, engraçado, tem um bom papo, é extrovertido, sensível, culto.  Porém, conforme a relação amorosa ou de amizade vai se estreitando, a personalidade instável do borderline vai se revelando gradativamente conforme demanda demais a presença do outro, “suga a sua energia”, para satisfazer seu lado narcísico. Tão imediato quanto a esta satisfação que precisa ser atendida, é a perda do prazer e de seu valor quase que imediatamente. Portanto, em sujeitos com TPB a tendência de se evitar o desprazer se faz mais incisivo que a busca pelo prazer. E é justamente o seu comportamento que leva a rejeição, motivo tão temido por este sujeito.

O borderline sofre e faz sofrer. É muito difícil este tipo de paciente procurar ajuda em terapias. Talvez procuraria, possivelmente, quando tem acessos de raiva ou angústia, frutos de rejeição, que para ele seria insuportável.

A sua organização psíquica despende muita energia (sistema límbico) para viver sentimentos tão extremos, ora euforia, ora angústia, ora histeria, ora introspecção. Dificulta em muito a sua vida cotidiana e das pessoas que fazem parte de seu convívio social e familiar. Quando a pessoa que é borderline realmente adere ao tratamento terapêutico (em associação, muitas vezes, ao medicamentoso) ela, de fato, quer melhorar a sua qualidade de vida como um todo, pois é cansativo viver com o constante medo da rejeição.

Todos nós buscamos o equilíbrio psíquico, a capacidade de administrar de maneira inteligente as nossas emoções e tomar decisões racionais saudáveis. Com o paciente borderline, não seria diferente. A grande problemática está em fechar um diagnóstico preciso deste transtorno, pois pode levar anos, e uma vez estando consciente disso, é fundamental que ele esteja adepto a intervenção terapêutica adequada, o que se torna um grande desafio para este sujeito que, semelhante a qualquer um de nós, está buscando uma qualidade de vida melhor. E cabe ressaltar que, para além de qualquer rótulo, são pessoas participantes da sociedade, porém carregam consigo tamanha intensidade em viver cada dia como se fosse o último. A vida sempre em ápices!

Bruna Rosalem

Psicanalista Clínica

@psicanalistabrunarosalem

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