Marcus Hemerly: 'O centenário de uma sinfonia de horrores'
O centenário de uma sinfonia de horrores
Desde a invenção do cinetoscópio, até a possibilidade de captação e transmissão mais sofisticada de imagens, a movimentação das formas amolda-se a uma das mais populares expressões artísticas. Concebida originalmente de forma rudimentar, o mecanismo de captar imagens viabilizava apenas um espectador a cada visualização, e, num segundo momento, o invento foi aprimorado pelos irmãos Auguste e Louis Lumière, realizando-se a primeira transmissão coletiva em 22 de março de 1895. O filme, “La Sortie de L’usine Lumière à Lyon” (A saída da Fábrica Lumière em Lyon), retratava a saída dos funcionários do interior da empresa Lumière, na cidade de Lyon, na França, deflagrando o vindouro ritual de agrupamento para apreciação cinematográfica.
Certa feita, o grande crítico já falecido, Rubens Ewald Filho, quando comentando acerca do cinema mudo, disse que não poderia sentir saudades daquilo que não viveu/conheceu, ressaltando a quase impossibilidade de dissociação da trilha sonora sobre os filmes. Decerto, existem algumas correntes de pensamento pelas quais o verdadeiro cinema, a verdadeira arte da película, seria a sua modalidade silente, pela qual as emoções e a trama deveriam ser transmitidas ao público, tão somente, pela pantomima intercalada por eventuais caixas de texto inseridas entre os quadros de cenas; a habilidade de atuação na interpretação sem o auxílio da fala.
O início do século 20 foi marcado pelos períodos/movimentos do expressionismo, impressionismo, surrealismo, neorealismo, nouvelle vague, film noir – atualmente classificado como um subgênero autônomo – cada qual, retratando, por meio de suas peculiaridades, a verve criativa em suas nacionalidades e influências.
Atualmente, assistir a uma produção sem a expressividade sonora, pode ser um exercício, no mínimo, pouco usual àqueles que não o fazem sob um viés científico, rotulado de excêntrico aos panoramas contemporâneos. De outro giro, observado como fonte de pesquisa em uma ótica apurada, revela-se uma experiência extremamente prazerosa, ao passo que o cinema mudo abarca períodos extremamente importantes à sétima arte, tais como os já citados impressionismo russo, (O encouraçado Potemkin, 1925) e expressionismo alemão, cujas principais produções são os inovadores, “O Gabinete do Dr. Caligari, 1920”, “Nosferatu, 1922” e “Metrópoles, 1927”.
Pondera-se que, por óbvio, os oitenta minutos da película que assombrou os espectadores em 1922, “Nosferatu, Uma sinfonia do Horror (Eine Symphonie des Grauens)”, primeira adaptação (ainda que não creditada) da obra Drácula, publicada em 1897, pode não causar maiores calafrios passados cem anos de sua realização. No entanto, as particularidades analíticas atreladas ao pano de fundo histórico permanecem igualmente fascinantes, em paralelo às dificuldades de realização e impressão de efeitos como técnica de narrativa no início do século passado.
Ainda que o título “Aurora”, produzido já em terras americanas, seja o trabalho mais pessoal do excêntrico diretor F.W. Murnau, Nosferatu, a despeito do excelente “Vampir” (1932), de Carl Theodor Dreyer, ainda é considerado o primeiro grande filme do gênero. Na trama, Hutter (Gustav von Wangenheim), agente imobiliário, viaja até os Montes Cárpatos para diligenciar a venda de um imóvel ao conde Graf Orlock (Max Schreck), que na verdade é um milenar vampiro que ominosamente, leva a morte até Bremem, na Alemanha.
Lançado nos cinemas para um público selecionado há exatos 100 anos, trata-se de uma obra enigmática, com a primeira sessão em 4 de março de 1922 em um zoológico em Berlim, (Berlim Zoological Gardem). Tal a intensidade da interpretação de Schreck, que existiu a lenda de que o ator, de fato, tratava de um vampiro – afinal, tratava-se do início do século 20 – inclusive inspirando o filme “A Sombra do Vampiro”, de 2000. Na película, o ator é vivido por Willen Dafoe, e retrata o set de filmagens da obra de 1922. Imprescindível ainda fazer referência à refilmagem de 1979, dirigida por Werner Herzog (de Fitzcarraldo), intitulada O Vampiro da Noite, qual a interpretação fabulosa de Klaus Kinski, honra os intensos traços stanislavskianos do primeiro intérprete do Conde Orlock.
A produção é cercada de pontos curiosos. Consoante mencionada acima, é uma adaptação não autorizada da obra de Drácula, escrita por Bram Stoker, o que culminou num processo judicial pelo qual foi determinada a destruição de todas as cópias. Felizmente, algumas remanesceram e a obra-prima pode ser apreciada nos dias atuais, no entanto, o estúdio Prana foi levado à falência em sua primeira produção, como decorrência das despesas da ação movida pelos herdeiros de Stoker.
As belas locações na Romênia, Alemanha e Tchecoslováquia, com seus fortes contornos mórbidos são um ótimo exemplo do movimento expressionista. É hipnotizante a atmosfera realista em paralelo ao tom onírico, formado, ainda que indiretamente, pelos parcos recursos da época.
Exortemos a tecnologia, mas de igual modo, aqueles que a desenharam em seus primórdios, possibilitando projetos impensáveis quando da sessão de cinema e o terror impingido às audiências no lançamento de 1922. Afinal, um clássico nunca cai de moda.