Bruna Rosalem: 'O filme O Quarto do Filho e a tragédia de um analista'

Bruna Rosalem

COLUNA PSICANÁLISE E COTIDIANO

O filme O Quarto do Filho e a tragédia de um analista

Ele que tanto ajudava seus analisantes, não aceitou ser socorrido.

Lançado em 2001, o filme italiano O Quarto do Filho conta a história de Giovanni, um psicanalista que reside e trabalha na cidade de Ancona, na Itália, é casado com Paola e tem um casal de filhos adolescentes, Irene e Andrea.

Sua vida transcorre tranquila, dividida entre a família e o atendimento aos pacientes em seu consultório. Um dia, para atender ao chamado urgente de um de seus pacientes, Giovanni deixa de acompanhar seu filho em um passeio à praia. Neste passeio o rapaz sofre um acidente no mar e morre afogado. Giovanni fica transtornado e sentindo-se culpado pela morte trágica do filho. Sua esposa e a filha ficam devastadas com o ocorrido.

Gradativamente, a morte de Andrea se transforma numa imensa dor para Giovanni, influenciando sobremaneira em seu trabalho como analista. Ele se fundiu ao sentimento de culpa pela tragédia e não conseguia lidar com isso. E para piorar, acusava com veemência em seus pensamentos, o paciente que havia pedido sua ajuda naquela oportunidade, como se Giovanni ao escolher atendê-lo, consequentemente provocasse a morte do filho.

O analista acabou nutrindo tanta raiva por aquele paciente que não quis mais continuar o tratamento. Para ele, a figura daquele homem que o requisitara, ganhou outro significado: de paciente a algoz. Algo insuportável de conviver.

Aos poucos, todo seu trabalho foi sendo interrompido. Para Giovanni não havia mais condições de continuar como terapeuta, afinal, sua dor era tamanha que o deixou fragilizado e vulnerável ao seu sofrimento, então, como ele poderia ajudar alguém a lidar com seus conflitos, se nem mesmo conseguia suportar os seus?

Giovanni precisava de ajuda, necessitava de um suporte, de um direcionamento. Infelizmente, e até diria, contradizendo os caminhos de seu próprio percurso como psicanalista, não procurou ajuda em momento algum, mesmo sabendo o quanto isso é importante para manter-se no lugar de analista. Sofreu sozinho. Ele que tanto ajudava seus analisantes, não aceitou ser socorrido.

É fundamental para o terapeuta, em especial, o psicanalista que precisa cumprir seu tripé: análise pessoal, corpus teórico e supervisão ou análise de controle, que retorne aos primórdios de sua formação, muitas vezes, seja nos estudos, na análise pessoal ou recorrendo ao seu supervisor. Pois assim como Giovanni vivenciou a perda abrupta de seu jovem filho, há situações semelhantemente extremas que podem prejudicar o ofício e a atuação, fazendo o profissional oscilar entre o lugar de sujeito e o lugar de analista.  Vemos o quando Giovanni na posição de sujeito atribuiu a trágica morte do filho ao chamado do paciente. E como este fato respingou em seus outros analisantes, pois tiveram seu tratamento suspenso.

Em uma análise pessoal, Giovanni poderia ter trabalhado o que este acontecimento terrível representava naquele momento para que ele pudesse seguir em frente, entre outras questões conflitantes que estariam gravitando em seus pensamentos, causando grande sofrimento. Ao invés disso, ele estagnou no sentimento de culpa. Chegou a ficar procurando por horas falhas mecânicas no aparelho de mergulho que seu filho usava naquele dia quando se afogou. Voltou atrás em seu pensamento inúmeras vezes imaginando que o desfecho poderia ter sido diferente se ele não tivesse atendido ao chamado do paciente. Não buscou compreender o significado da morte, do fim, da perda. Não houve trabalho analítico para resolver seu sentimento de culpa e o vazio que se instalou dali em diante.

Cada vez mais, Giovanni nutria remorso. Este evento em sua vida demonstrava dia após dia, sua parte mais frágil, mais angustiante. Viver estava se tornando um fardo. E por mais que tivesse experiência como analista e alicerces teóricos, ele era um ser humano. Em luto. Em aflição. Em agonia. Observando um quarto vazio. Sem vida.

Somos falhos e errantes. E mesmo um terapeuta-analista não tem respostas para todas as questões. Ele erra, sofre, reluta, não sabe de muitas coisas e provavelmente nunca saberá! É igualmente um sujeito do engano.

Numa passagem do filme, antes de morrer, Andrea estava se comunicando por cartas com uma garota, quase uma namorada a distância; eles não se conheciam pessoalmente. Quando chega uma carta desta jovem a casa de Giovanni, Paola, a mãe, fica obcecada em conhecê-la e em saber o que falavam um ao outro. Toda a família tenta convencer a menina a visitá-los, talvez numa tentativa de reviver a presença do filho através dela. Estar na companhia daquela garota parecia ter proporcionado breves momentos de alívio para a família do psicanalista.

Num outro momento do filme, Giovanni vai a uma loja de CDs e escolhe ouvir uma banda que seu filho estava gostando muito. Uma das músicas que ele coloca para tocar naquele momento, que inclusive faz o fechamento do filme, era By this river de Brian Eno. Uma música um tanto melancólica, dizia sobre finitude, o porquê da vida, de estar vivo, de ser impedido de ir para algum lugar por causa do rio, como se fosse barrado, preso, stuck by this river.

Esta música ao mesmo tempo que parece ilustrar o momento que Giovanni estava vivendo, também permite revelar através de sua letra, o estado de espírito de Andrea, antecedente a sua morte. É possível arriscar dizer que durante o filme, alguns sinais muito sutis poderiam indicar que o garoto estava entrando em um quadro depressivo. Será que Giovanni, no fundo, não se permitia enxergar o óbvio? Seria defesa? Negação?

Em seu ofício de analista, Giovanni identificava conteúdos importantes em seus pacientes ao longo das sessões, permitindo acessar o inconsciente e fazer as pontuações necessárias.  Mais uma vez, a questão que se coloca é: mesmo tendo clareza da importância do trabalho de análise na vida das pessoas que procuravam ajuda, por diversas vezes, desesperadas ou até mesmo prestes a findar a própria vida, por que ele não retornou ao seu analista para lidar com sua dor e continuar seu oficio? Por que preferiu seguir praticamente sozinho, sendo tomado pela angústia? E até encerrar seus atendimentos?

O analista que falava tanto em quebrar resistências, se mostrou ser o mais resistente de todos! Um verdadeiro muro de lamentações! Impenetrável.

Giovanni, o psicanalista que mais do que ninguém precisava de análise. Precisava se conhecer. Se ouvir e suportar a si mesmo.

Bruna Rosalem

Psicanalista Clínica

@psicanalistabrunarosalem

www.psicanaliseecotidiano.com.br