Artigo de Ivan Fortunato: 'Caiu na rede, mas não podemos nos omitir: sobre estupro e a cultura da barbárie'
Ivan Fortunato – ‘Caiu na rede, mas não podemos nos omitir: sobre estupro e a cultura da barbárie’
Bom dia a todos! A coluna desta quinzena foi motivada por um fenômeno que começou a circular, semana passada, nas redes sociais, em sites especializados e nos meios de comunicação tradicionais (rádio, televisão e jornal impresso): a notícia de um estupro coletivo na cidade do Rio de Janeiro, envolvendo uma jovem menor de idade e cerca de três dúzias de homens. Como cidadão, não posso fechar os olhos e deixar de me indignar. Como educador, no entanto, preciso abordar criticamente o fenômeno.
Primeiro, é preciso alertar sobre as possíveis interpretações da notícia, pois todo fato ventilado é apenas um recorte de um todo complexo muito maior. Isso implica reconhecer as vicissitudes daquilo que é veiculado na mídia, às vezes de forma tendenciosa sim, mas, na sua maioria, apenas de forma superficial, sem tempo ou espaço para que diversas variáveis também se manifestem. Com isso, quero dizer que uma notícia, um tweet, uma hashtag, uma publicação na linha do tempo etc. é somente capaz de contar um fato ou, como na maioria das vezes, um suposto fato, conforme interpretação daquele que o torna público. Por exemplo: quando o mundo assistiu a Neil Armstrong fincando a bandeira norte-americana na Lua, no ano de 1969, tivemos um suposto fato: tanto as explicações contrárias quanto as evidências fazem sentido, ou seja, os americanos tanto podem ter ido como podem ter simulado a viagem espacial. A cena engendrou inúmeras conversas, polêmicas, teorias, hipóteses… sendo muitas destas coerentes, possíveis e plausíveis. No entanto, nenhuma é absoluta.
Por outro lado, tomando o tema gerador dessa coluna, muito mais do que debater, supor, conjecturar… devemos começar por lamentar. Isso porque, para cada evento tornado público, há inúmeros outros que não tomamos ciência, dando certa sensação de que não acontecem. E esse silencio é tão perigoso quanto assustador, pois não nos dá a dimensão da crueldade com que temos que conviver.
Como muitos, já estou cansado de ouvir comentários contra às vítimas, defendendo o ato perverso como se a pessoa violentada tivesse atraído para si o ataque porque se vestia com roupas curtas, ou andava de forma insinuante. Acreditar nisso é defender essa selvageria. Também não basta certa “conscientização” de que há determinados locais que se deve evitar, que não se pode andar sozinha ou que é normal viver com medo, suspeitando de tudo e de todos. Conselhos como esses legitimam essa cultura da barbárie, na qual mulheres são vítimas, diariamente, de casos de estupro. Ao mesmo tempo, outros tantos homens e tantas mulheres são facínoras e/ou cúmplices no ato de forçar alguém a ceder quando não se quer. Isso pode ser silencioso, quando acontece na própria casa ou praticado por alguém que se conhece e confia. Ou pode ser na crueldade de se ameaçar a vida ou espancar a vítima até a morte. Nada disso faz sentido.
Talvez essa falta de sentido não se evidencie amiúde porque consentimos com algumas atitudes que consideramos banais. Por exemplo: quando na rua desrespeito confunde-se com elogio, torna-se normal “mexer” com as mulheres. Não é. Isso pode ser constrangedor, humilhante ou inconveniente. O mesmo acontece nas festividades, quando não há qualquer respeito pelas mulheres, puxando-as pelo braço, forçando-as a abraçar, beijar ou mesmo conversar. Isso também não é normal e nenhuma indumentária justifica a ação: pode-se usar vestido curto ou saia tão somente pelo desejo de assim se vestir – e isso deve ser respeitado. Aliás, o respeito pelo outro é o primeiro passo para que notícias como a que foi ao ar semana passada tornem-se vestígios de um passado selvagem. Pena que ainda estamos longe de darmos este primeiro passo.
Por fim, ainda há que se lamentar que o caso que alcançou rápida popularidade logo desaparece das listas de mais comentados, visualizados e repudiados. Enquanto permanece em evidência, há uma espécie de aura de ódio que enche os espaços destinados a comentários. Quiçá o ódio torne-se amparo às vítimas e às causas. Quiçá o ódio torne-se rejeição à barbárie. Quiçá o amparo e a rejeição sensibilizem nossa sociedade, que sempre conviveu e teve que sobreviver à sua própria desumanidade. Que dessa sensibilização, emerjam ações adversas à qualquer manifestação violenta contra a vida. E que as mulheres possam se vestir como e andar por onde quiserem, sem medo.