Magna Aspásia Fontenelle entrevista o escritor português Joaquim Tempera
“Não creio que haja um texto que me defina. Em meu entender, os textos, todos os textos, são de uma forma ou de outra, mais ou menos intensamente, reflexo daquilo que somos.”
Será que algum de nós poderá verdadeiramente dizer quem é ou, sobretudo, o que é?
Eu, a tanto não me atrevo. Poderei, quanto muito, adiantar alguns dados e breves apontamentos biográficos que mais não serão do que elementos indicativos da pessoa que se reveste com o nome de Joaquim Tempera.
Assim, direi apenas que o meu nome completo é Joaquim António Bravo Tempera, nasci há 74 anos em Portugal, numa pequena, linda e pacata vila algarvia e que aí cresci até à idade de 9 anos, altura em que, lágrimas no rosto, com a intenção (dos meus pais, claro) de estudar mais do que me seria permitido fazer nessa que era a minha terra natal, me mudei para a cidade de Silves, também no Algarve. Aí, terra cheia de história e para mim até então totalmente desconhecida, mas que me acolheu melhor que mãe adotiva, completei o ensino básico obrigatório e, na Escola Industrial e Comercial local, tirei o Curso de Formação Geral de Comércio, findo o qual, e por mais lá não ter como prosseguir os estudos, tive que me deslocar diariamente para Faro (capital do Algarve) onde tirei as Secções Preparatórias para ingresso nos Institutos Comerciais.
De origens modestas, mas determinado a prosseguir os estudos, migrei para Lisboa com o fim de, trabalhando – necessariamente trabalhando -, frequentar o Instituto Comercial que me poderia habilitar ao exercício da profissão de Contabilista e/ou ao ingresso no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, onde era ministrada a formação máxima daquela área de ensino. No entanto, algo estava menos bem e foi então que, já quase completado o curso de Contabilista, descobri que os números não eram propriamente a minha vocação. Teriam sido, no máximo e por falta de alternativas, a única saída possível como resposta à minha determinação de progredir na aprendizagem, tirando um curso superior. Certo de que estava certo, fiz um esforço complementar e preparei-me para ingressar na Universidade Clássica de Lisboa, onde me licenciei no Curso de Direito, este sim, penso, muito mais adequado às minhas aptidões ou inclinações naturais.
Nos intervalos do estudo e do trabalho, algum pouco tempo que sobrava aproveitava para leituras variadas, algumas tentativas de escrita e para participar, como diseur, em saraus de poesia, em casas particulares ou em locais públicos, promovidos por mecenas ligados às artes literárias.
Na vida profissional, trabalhei durante mais de 40 anos para um dos Maiores Grupos Económicos de Portugal, onde, desde as áreas das Contabilidades, as de Direito e as da Gestão de Recursos Humanos, desempenhei diversas funções em várias empresas do Grupo, enquanto Técnico, Gestor e Consultor.
Casado, pai de dois rapazes e avô babado do maroto mais lindo do mundo, hoje estou reformado e, como tal, bem pouco faço que referência mereça.
Agora quem sou eu verdadeiramente (?), não terei a pretensão de o saber e muito menos de o dizer, acreditando embora que a opinião de outros, os que me conhecem bem, ainda que com alguma natural margem de erro, possa estar mais próxima daquilo que realmente sou.
2 – De que maneira o Jornalismo e a literatura, entraram na sua vida?
Não poderei dizer que o jornalismo entrou na minha vida, nem eu alguma vez tive a pretensão de entrar no jornalismo. Apesar de, por uma outra vez, alguns pequenos escritos meus terem sido publicados, por vezes sob pseudónimo, em jornais de província e em revistas locais como veículo de comunicação de organizações de caracter associativo, isso não me permite afirmar, ou sequer insinuar, que tais simples e ocasionais colaborações correspondam a eventuais tentativas de entrada no jornalismo, nem de abertura para que o jornalismo entrasse em mim.
Já quanto à literatura, a coisa é diferente. E é diferente desde sempre.
Quando pequeno, em minha casa não havia rádio e muito menos televisão. Aljezur, a minha terra natal, ainda não estava eletrificada e, mesmo que estivesse, os meus pais não teriam recursos que nos permitissem usufruir de tais “luxos”. A minha mãe, ainda que só com a formação escolar básica (mas orgulhosamente “Aprovada com Distinção” no exame final da então quarta classe) adorava ler e, nas longas e frias noites de inverno, principalmente nas noites de inverno porque no verão o calor seria incomodativo, levava-me a mim e ao meu irmão para a sua cama e, cobertos pelas pesadas mantas que a frieza das noites exigia, à luz de um simples candeeiro a petróleo, lia-nos em voz alta os livros que andava a ler. O meu irmão não sei se a ouvia ou se ia dormitando, mas creio que a ouviria com entusiasmo. Eu, enfiado nas mantas, apenas deixava as orelhas de fora para bem a ouvir e na sua voz viajar por terras remotas e conhecer gentes de outras paragens, com gostos e hábitos tão diferentes daqueles a que a humildade do meu ambiente me ia habituando. E, maravilhado, quantas vezes eu próprio me deixava ir nas palavras dos autores para, dentro dos meus fracos recursos de criança ignorante, disfarçadamente me introduzir naquilo que eu conseguia perceber dos meandros das narrativas. Claro que a minha mãe, por iniciativa própria ou a meu pedido, me ia informando e esclarecendo acerca das múltiplas dúvidas que a minha curiosidade e o meu tão pouco e inocente saber iam frequentemente levantando. Noites maravilhosas que me abriram o interesse e o gosto pelas coisas da literatura.
Depois, em Silves e já um rapazote, tive a sorte de conhecer e conviver com três poetas locais, a quem aqui aproveito para fazer uma saudosa e singela homenagem, de seus nomes Sebastião da Silva, João Jacinto e João de Sousa Cabrita, este último, pai do grande artista plástico, escritor e ilustre Professor Rocha de Sousa que, com enorme carinho e inusitada paciência, não só me deleitavam com a leitura dos seus poemas, como ainda lhes sobrava generosidade para me ouvirem e incentivarem nos meus primeiros arremedos poéticos.
Em paralelo, na Escola, os professores, particularmente os de Português/Literatura, enchiam-me de vaidade ao expressarem em plena aula o meu jeito para as coisas da escrita, o que, reconheço, sempre constituiu forte incentivo para, pelo menos, tentar fazer, tentar escrever.
3 – Qual foi o seu trabalho que marcou o início da sua vida de escritor?
Bom, se me permitem, gostaria de sublinhar que adoraria poder considerar-me um escritor. Mas não, não sou. Reconheço-me efetiva e tão simplesmente como um amante da escrita e, quanto muito, serei um escrevinhador.
Assim, partindo deste princípio, o trabalho que talvez tenha marcado o início da minha vida de escrevinhador tenha sido um pequeno poema que aos 16 anos de idade vi publicado num jornal regional, “Voz do Sul”. Nesse poema, contava o que, em determinado momento, me foi dado observar através de uma janela. E que vi eu? Uma rua e a vida. A rua com a agitação própria da vida e a vida com os seus defeitos e virtudes. Foi um poema que surpreendeu os leitores, talvez não pelas suas qualidades técnicas e estéticas, mas pela sensibilidade com que, um jovem de idade tão pouca, descrevia alguns aspetos genuínos da vida que passa a nosso lado e a que nem sempre damos a atenção que ela merece. E as pessoas que o leram e que me conheciam com palavras amigas incentivaram-me a continuar porque o começo era prometedor. Mas, convenhamos, uma coisa é a promessa, outra coisa é o seu cumprimento…!
4 – Você escreve poesias, sonetos, poemas. Tens planos de tentar outros gêneros literários ou escrever algo diferente? Quais?
Planos, não direi propriamente. Mas já tenho avançado para géneros distintos, como crónicas, contos e até romance. Aliás, em coautoria com um grande amigo meu e um ilustre membro da Academia de Letras do Brasil seccional de Uberaba, António dos Reis Noronha, brevemente sairá do prelo um dos vários contos que temos escritos a duas mãos e cujo título é “Para Além da Janela”.
5 – O que te inspira a escrever?
A vida com toda a sua beleza e amargura e as pessoas na sua generosidade, no seu egoísmo, nas suas palavras e atitudes, na sua complexidade, na sua coerência ou na contrariedade de si próprias. Enfim, talvez o mar enquanto fonte de vida, a terra enquanto o pó que somos ou em que nos havemos de tornar e o Céu enquanto dimensão extrassensorial que alguns acreditam alcançável e pelo qual porfiam confiadamente.
6 – Qual dos teus textos te define?
Não creio que haja um texto que me defina. Em meu entender, os textos, todos os textos, são de uma forma ou de outra, mais ou menos intensamente, reflexo daquilo que somos. E nós somos o que nascemos, somos o que vivemos enquanto recetadores do meio e do ambiente que nos envolve, como somos naturalmente o que fazemos e como fazemos. E se o que fazemos, ou quando fazemos, é a escrita, então na escrita, seja em que texto for e não apenas num, está sempre um pouco do que nós somos. Assim, julgo, é comigo. Não me defino num texto. Defino-me em cada um dos textos que vou escrevinhando e nos muitos que nunca escreverei.
7 – Seu principal critério para a escolha de uma leitura é o título, o autor ou o assunto? Qual o seu autor preferido?
É claro que a primeira impressão é a capa. A capa se bem concebida deve ser o elemento emissor da primeira mensagem endereçada ao leitor e deve ter a clareza, a harmonia e a força capazes de lhe chamarem a atenção para um tema ou assunto apenas sugerido e que logo de seguida será reforçada pela identificação do autor e de um breve flash minimamente identificativo do assunto tratado, de forma a suscitar ao leitor o interesse da sua confirmação pelo ato da sua leitura. Mas, para mim, a capa, sendo a primeira chamada de atenção, só por si não me leva a comprar um livro, se o autor e o assunto me disserem pouco ou nada.
O meu autor preferido é todo aquele que, através do que escreve e da forma como interpreta a vida, me faz sentir vivo e vibrar com o calor dos sentimentos, a força da criatividade e a verdade das palavras.
8 – Tem sonhos literários? Quais?
Sonhos, não propriamente. Mas gostaria de.
Gostaria de continuar a escrever e a escrever enquanto a vida não acaba, porque para mim, assim o entendo, escrever é viver.
Gostaria de publicar alguns escritos: poemas talvez, contos e um romance que tenho aqui no baú a criar bolor e que é o “Manuel Mete Medo”, do qual já fiz uma edição doméstica, mas que disso não passou.
9 – É notívago ou só cria à luz do dia?
O meu tempo de criação, perdoem-me o pretenciosismo do termo, não tem noite nem dia, tem apenas o momento em que me surge uma ideia, em que considere valer a pena dar-lhe corpo, em que surja uma linha de condução ou de continuidade de coisas já iniciadas, em que sinta que as palavras, mesmo que trabalhosamente, acabarão por surgir. Esse é o momento em que me fundo com o papel onde alguma coisa há de surgir.
10 – Já deixou de escrever para não magoar pessoa muito chegada?
Procuro e procurarei sempre não magoar as pessoas, quer seja nas palavras que escrevo, quer seja nas palavras que digo, quer seja mesmo nas muitas outras palavras que calo.
Perguntar-me-ão: e consegue?
Nem sempre o terei conseguido, com certeza, mas ninguém alguma vez me exigiu um pedido de desculpas pela mágoa ocasionada por algo que tenha escrito, dito ou omitido. E, se um dia alguém mo pedir e justificadamente me provar a razão que não assiste à razão que me levou a escrever, dizer ou calar o que mágoa provocou, não terei qualquer pejo em reconhecer o erro e em pedir desculpa a quem a merecer.
11 – Qual é a sua opinião sobre a reforma ortográfica?
A língua não nasce, não existe, nem evolui por força de um Decreto-Lei. São os falantes que lhe dão vida e a fazem evoluir. E os falantes falam de acordo com os seus hábitos, os seus usos e costumes e o que de novo vai surgindo, expressando naturalmente, dessa forma, a cultura do meio e as novas tendências da região onde se encontram.
Eu, por força da minha atividade profissional, tive que fazer um esforço e adaptar-me à nova norma. Porém, confesso que não estou certo que sempre tenha tido sucesso nesse meu objetivo, tanto mais que por aqui o povo costuma dizer que “burro velho não aprende línguas”. E deixem-me que vos diga que se não aprendo também não temo que daí me venha grande dano e que os meus interlocutores não me entendam.
Relativamente às realidades do Brasil e de Portugal, permitam que, com a devida vénia, transcreva um excerto de um artigo da autoria de Rui Pereira, ilustre Professor Universitário que, sob o título “Paradoxo Ortográfico”, publicado no Jornal Correio da Manhã em 26.01.12, em determinada altura diz: “Estou certo de que o público brasileiro continuará a preferir, em geral, obras e textos escritos em português do Brasil, bem como tradutores e intérpretes que usem esse português na construção frásica, na escolha de vocábulos e, claro está, na pronúncia. Do lado de cá do Atlântico acontecerá, seguramente, o inverso. Nada disso retira uma certa utilidade à unificação da grafia, sobretudo para as editoras e em documentos oficiais. Mas essa unificação é imperfeita, visto que o acordo admite que muitas palavras se escrevam de duas maneiras diferentes. Porém, o que me causa maior perplexidade no acordo é a mudança de grafia de palavras que se escreviam da mesma maneira em Portugal e no Brasil. “Abjecção” e “acepção”, por exemplo, passam a escrever-se, em Portugal, “abjeção” e “aceção”, mas continuam a escrever-se à maneira antiga no Brasil. Esta nova divergência resulta de a consoante suprimida ser muda para os portugueses e pronunciada pelos brasileiros. Em nome da fonética, que é e continuará a ser diferente nos dois países, torna-se agora diferente, paradoxalmente, a grafia das palavras.”
E mais não digo, porque melhor não diria.
12 – Deixe uma mensagem para os leitores do Jornal Rol.
Caro leitor, não sou ninguém para deixar mensagens, sobretudo daquelas que cheiram a conselhos. No entanto, mas sem a intensão de vos aconselhar, arrisco apenas a dizer aquilo que sinto na escrita e na leitura: Evasão.
Se me quiserem acompanhar, por favor, venham comigo, terei imenso prazer.