Orlando Ukuakukula: "Dialogismo de Intervenção Social entre ‘povo no poder’, de Azagaia e ‘Noites de Vigília’, de Boaventura Cardoso"

Orlando Ukuakukula

Dialogismo de Intervenção Social entre ‘povo no poder’, de Azagaia e ‘Noites de Vigília’, de Boaventura Cardoso

Este texto está voltado a uma análise de enunciados que se verificam na música “Povo no Poder”, de Azagaia e na obra literária “Noites de Vigília”, de Boaventura Cardoso, que consideramos enunciados de intervenção social, por isso, constituindo o corpus de estudo do texto. Os textos dos autores em causa dialogam, na medida em que, enquanto músico, do estilo RAP, acrónimo de Ritmo Arte e Poesia, Azagaia canta Áfrika, numa vertente de intervenção social e, Cardoso, enquanto escritor de obras literárias, cita-se “Noites de Vigília”, intervém, com suas produções, nos problemas da sociedade. Aliás, para nada serviria uma obra literária se não se assentasse e acentuasse na sociedade.  O diálogo das duas artes parte do título de cada uma. Cardoso propõe que o povo faça vigília, como forma de reivindicação dos direitos. Senão, vejamos: “é inadmissível que depois de termos dado o corpo ao manifesto, ninguém nos ligue nenhuma” (Cardoso, 2013 p.30). Azagaia, no mesmo compasso, propõe manifestação: “Já não caimos na velha história, saímos pra combater a escolha. Ladrões, fora! Corruptos, fora! Gritem comigo pra essa gente ir embora” (Azagaia). Daí  o título “povo no Poder”. Dois exemplos de dialogismo de intervenção social nos respectivos enunciados dos artistas.

Azagaia, pseudônimo de Edson da Luz (que Deus o tenha), “é” um músico de nacionalidade moçambicana, propriamente da província de Maputo; ao passo que Boaventura Cardoso é um escritor angolano. A ousadia de uni-los neste texto para um estudo dos seus enunciados-discursos, justifica-se pelo facto de considerarmos, em primeiro lugar, dois africanos, que pressupõe um casamento de ideologias e, em segundo lugar, mais forte ainda, por Moçambique apresentar quase as mesmas características de estilo de vida que Angola, ou seja, os dois países, tornados independentes na mesma época (1975) apresentam um sistema de governação alavancados pela Frelimo, naquele, e MPLA, neste, caótico, como é verificável tal afirmação nas intervenções reivindicativas do músico e do escritor.

A simbiose da análise, juntando a literatura e a música, justifica-se em Furtado:

“A relação entre a música e a literatura é tão antiga quanto essas duas formas de expressão artística. Desde a Antiguidade o texto literário adapta-se à música, bem como a música adapta-se ao texto literário, mais precisamente, à poesia. A poesia mélica (musical, harmoniosa) ou lírica era acompanhada por instrumentos musicais diversos (lira, cítara e flauta) e cantada por uma só pessoa (lírica monódica) ou por um coro (lírica coral)” (Furtado, 2010 p. 7).

Na sua música, Azagaia poetiza os seguintes versos:

Sobe o preço do transporte/ sobe o preço do pão

Deixam o povo sem norte/ deixam o povo sem chão

Esse governo não se emenda mesmo, não

Ao passo que, na sua narrativa, através do narrador, Cardoso diz:

Quinito olhava vagarosamente para as mercadorias expostas. Lata de leite em pó, de conservas, de refrigerantes e cervejas, garrafas de vinho, de uísque, detergentes de várias marcas, comparava os preços e concluia rapidamente que o dinheiro que tinha era um nada que não dava para nonadinha (Cardoso, 2013 p. 7).

O diálogo, nos dois textos, é denunciado na insuficiência financeira do povo, até para adquirir bens alimentares, ou seja, o custo de vida das duas realidades é posto em evidência.

“A língua tem propriedade de ser dialógica e os enunciados são proferidos por vozes, pois o discurso de alguém se encontra com o discurso de outrem, participando, assim, de uma interação viva. Portanto, o dialogismo não se resgtringe ao diálogo face a face, mas a todo enunciado no processo de comunicação manifestados em diferentes dimensões” (Backhtin).

Azagaia depois de, durante a música, se expressar sobre a nessecidade de grupos para a manifestação, e propor o povo tomar o poder, alarga a ideia e continua:

Aviso-vos, senhores, que terão pela próxima

O Norte, o centro, o Sul, Moçambique

Isso dialoga com a outra passagem da narrativa de Cardoso:

Temos que fazer qualquer coisa em defesa de nós mesmos e das nossas famílias. Se não formos nós a lutar pelos nossos interesses quem há de lutar (…)? (p. 18)

Agora, o diálogo consiste na ideia de uma manifestação em massa, uma forma de intervenção social, para exigir do(s) governo(s) aquilo que é do direito do povo.

Continua Azagaia:

Povo, exijam os vossos direitos

Não se deixem maltratar nos chapas.

Chapeiros, vocês são povo também

O povo paga impostos para ter direito a transporte

Chega de tanto luxo, tanto dinheiro gastos à viagens, hoteis, mercedes, palácios

Avança Cardoso:

Os ricos estão cada vez mais ricos, e os pobres, cada vez mais miseráveis (ibidem).

Enfim, a luta continua e, portanto, das várias formas de manifestação:

“A literatura e a música são das manifestações artísticas mais expressivas para a assertividade cultural de qualquer povo. A música em toda a parte está presente e, talvez com argumentos antropológicos mais agudizados nos arquipélagos torna-se uma vivência, diria, omnidisciplinar e, por conseguinte, fonte inevitável de consulta disciplinar. (Furtado, p. 4).

E, citando Hamilton (1999) “uma obra  literária de qualquer sociedade e de qualquer época ou apoia ou contesta o regime vigente”.

Orlando Ukuakukula