Bruna Rosalem: 'A Baleia (2022): sobre o pesar da existência

Bruna Rosalem

PSICANÁLISE E COTIDIANO

A Baleia (2022): sobre o pesar da existência  

Ao olhar aquele enorme homem esparramado em seu sofá, com dificuldades para andar, fazer gestos simples como alcançar algum objeto mais longe, locomover-se, respirar, que engasga quando chora ou ri, o sentimento que parece surgir ao presenciar esta cena cotidiana é de um imenso incômodo, mal-estar, estranhamento.

No longa A Baleia (2022), acompanhamos um professor de literatura, Charlie, praticamente entregue à obesidade mórbida que o aflige há alguns anos, desde que o companheiro, seu ex-aluno, tirou a própria vida. Além de sentir-se constantemente culpado pela tragédia, ainda precisa lidar com outros pesos em sua consciência: o do próprio corpo e o afastamento de sua filha Ellie aos oito anos de idade, quando Charlie decide abandonar a família para viver com o namorado.

A trama nos provoca nuances de emoções o tempo todo. Consegue misturar o belo e o repugnante durante as cenas. Ora é possível sentir empatia e carinho por Charlie, pois ele é doce, amável, gentil. Ora raiva, indignação e revolta por sua resistência em buscar melhorar sua maneira de encarar a vida, de ter mais amor próprio e olhar para si com apreço.

Ao mesmo tempo que Charlie, por um lado, como professor de literatura, exprime tamanha sensibilidade com os ensaios escritos pelos seus alunos, os ajuda, os orienta, faz apontamentos, é dedicado, lê com eles passagens dramáticas, poéticas, agarra-se a um ensaio em especial, que mais à frente do filme, trata-se de uma produção feita pela sua filha; por outro lado, ele demonstra aspereza e teimosia em aceitar ajuda de sua amiga enfermeira que suplica a ele que vá ao hospital, pois seu estado de saúde é crítico. Prefere entregar-se a comilança desenfreada deixando o ambiente sujo, fétido, desorganizado. Mal consegue assear-se, seu apartamento é sempre escuro e sufocante.

Na vida de Charlie parece não haver espaço para luz, esperança ou salvação. Ele apenas sobrevive e passa os dias relembrando o passado, comendo e evitando as pessoas. Apesar de lecionar na modalidade on-line, ou seja, mesmo tendo uma tela que o separa fisicamente de seus alunos, ele desliga a câmera para não revelar sua condição.

Tentativas de ajudá-lo vão surgindo ao longo da narrativa, além da amiga enfermeira que o visita diariamente, há a presença regular de um rapaz que busca convertê-lo aos ensinamentos bíblicos e de um entregador de pizza, que todos os dias deixava duas pizzas grandes na porta de Charlie sem nunca poder vê-lo. O garoto tenta se aproximar, fazer contato, porém sem sucesso. É orientado pelo homem a pegar o dinheiro na caixa de correios e sair.

Sua filha Ellie expressa tempestuosa revolta contra o professor, pois carrega um sentimento de rejeição torturante ao ser trocada pelo amante de Charlie logo tão criança. Cresceu sem nunca sentir a presença de um pai. Insulta-o, agride-o com palavras, deixa bem claro que, agora adolescente, não precisa mais dele, afinal Charlie não consegue nem ao menos ficar em pé sem a ajuda do andador. Numa das cenas mais angustiantes do filme, Ellie com ódio, desafio o pai a ir até seu encontro, incita-o, provoca-o com xingamentos, zombaria. Ele até tenta, mas desaba logo em seguida, quebrando os móveis ao seu redor.

Entre idas e vindas de pessoas que vão até sua casa, sua amiga cuidadora, a ex-esposa, o rapaz da igreja, o entregador de pizza, sua filha, Charlie segue os dias entre conflitos diários, tentativas de reaproximação com Ellie, momentos de conversa e choro  com a única amizade que preserva, graças à insistência por parte dela que ainda nutre esperanças de que ele se encaminhe para o hospital. Mesmo a enfermeira dizendo que seus dias estavam contados, que ele definitivamente viria a óbito até o final da semana, Charlie segue mantendo seu propósito: aguentar até onde puder, mesmo sentindo terríveis dores do peito, agonizando aos poucos, buscando o ar que quase não entra mais em seus pulmões, até que tudo se acabe de vez.

O último ato do longa nos deixa com esta imagem: Ellie, à porta, lendo para ele seu ensaio que tanto Charlie admirava (falava da história de Moby Dick), enquanto reúne todas as forças de seu pesado corpo para levantar do sofá sem o apoio do andador, na tentativa de caminhar até ela. Uma cena belíssima de redenção em meio ao caos do ambiente e a expressão de dor de Charlie. Dor em todos os sentidos: de seu imenso corpo que impede os movimentos e tranca a respiração e dos sentimentos devastadores que o acompanharam nesse tempo de reclusão.

Mais uma vez, a narrativa do filme consegue ser delicada e perturbadora. Mergulhamos na aflição de Charlie e sofremos com ele na tentativa fracassada de libertá-lo daquele corpo que o aprisiona. Ao se deixar levar pela doença, ele encerra a sua história. Talvez assim, possa sentir plenitude ao menos uma vez: da leveza de sua alma.

Bruna Rosalem

Psicanalista Clínica

@psicanalistabrunarosalem

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