Marcus Hemerly: 'Cinema em Casa: O filme mais amaldiçoado da História'
“Quem me dera ouvir de alguém a voz humana. Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia…” Poema em linha reta. Fernando Pessoa
Quando se observa a evolução das ciências cinematográficas de uma forma linear, verifica-se – e assim ocorre com a maioria das manifestações artísticas – um reflexo dos medos e crueldades da própria sociedade, os quais apenas alteram sua formatação a partir de cada estrutura organizacional e cultural de um povo.
Nos anos de guerra fria, a dita ameaça vermelha era tratada de forma simbólica em meio aos filmes de ficção científica ou de espionagem; o medo universal do sobrenatural era replicado a partir de histórias de possessões demoníacas e assombrações. Na contemporaneidade, os suspenses psicológicos subdivididos numa multitude de subgêneros, conseguem focar nas dimensões mais humanas do mal, seja a partir da violência estilizada ou pela demonstração de que, não raro, o ser humano, através de ações e pensamentos, traduz o próprio horror, assim como o de outrem.
Muitos são os relatos envolvendo misteriosas intercorrências quando da produção de filmes que serviram-se da temática sobrenatural, pontuando os mais populares como os títulos “O exorcista (1973)”, “A Profecia (1976)” traduzidas em mortes e acontecimentos mirabolantes – incluindo incêndios – em sets de filmagens. E, dentre esse rol, como tema central dessa abordagem, o menos conhecido Incubus, de 1966, com direção de Leslie Stevens. Quanto a trama, do site filmow, colhe-se a seguinte sinopse: “Numa estranha ilha por espíritos e demônios, um homem luta contra as forças do mal. Um jovem demônio, encarnado na figura de uma mulher nova e bonita, sente-se apaixonado por um honrado soldado. A irmã mais velha da jovem, também um demônio, ultrajada pela relação abjeta, convoca as forças do poder maligno do irmão primogênito, um demônio ainda mais feroz que irá brutalizar a irmã do soldado”. A partir nessa premissa, desdobra-se, nos seus 78 minutos, um flerte entre a reiterada e revisitada luta entre os extremos do bem e mal, todavia, sob um viés que gravita em torno do humano e metafísico.
Objetivando coroar a maior de todas as profanações às formas de bondade, a succubus Kia pretende seduzir Marc, vivido pelo excelente William Shatner, no entanto, curvando-se ao inesperado e inarredável amor por sua pretensa vítima, a legião de outros demônios, aviltados, travam uma incursão maléfica contra o soldado virtuoso que apetece a entidade, interpretada por Allyson Ames. A alegoria mantida pelo suspense constante, quase palpável, desenha as feições oníricas e de alucinação que elevam a história a um nível extremo de desconforto ao espectador. Falado no idioma esperanto, que contribui para a aura surreal que se reproduz, Incubus, constitui uma película em tom lúgubre, e que em muito se assimila ao cinema existencialista do sueco Ingmar Bergman. Com os olhos voltados à tela, parece que a qualquer momento contemplaremos a figura de Antonius Block, (Max Von Sydow), jogando xadrez com a morte, em meio às cinzentas brumas marítimas e reflexões sobre a vida, em alusão ao celebrado O sétimo Selo, (1957).
O filme amealhou, merecidamente, a fama de a produção mais amaldiçoada de todas. Além de sequestros, mortes não naturais, suicídios, bancarrotas financeiras e demais acontecimentos funestos envolvendo seus participantes, na fase de pré e pós produção, os copiões originais foram destruídos por um incêndio, permanecendo perdidos durante vários anos. A história de amor proibido e (maldito?) da succubus pelo jovem, apenas seria redescoberta a partir da localização de uma cópia na Cinémathèque Française de Paris, e posteriormente legendada em francês com distribuição para home vídeo no ano de 2001. Atualmente, com a gradual extinção das mídias físicas, a obra pode ser apreciada em alguns sites exclusivos de streaming e por meio do YouTube, em ótima resolução. Nos anos seguintes desde a sua realização, a despeito do constante monopólio de Hollywood, concentrando mais de cinquenta por cento da produção mundial de terror, o gênero teve suas diversas abordagens e vieses bem explorados por todos os continentes.
A despeito do teor mais comercial assimilado pelo cinema contemporâneo, casuisticamente, deparamo-nos com produções que remontam a esse estilo mais artesanal de suspense, de desdobramentos quase teatrais e despidos dos modernos efeitos especiais. Cite-se a nova adaptação de Suspiria, baseada no clássico de Dario Argento, que reveste-se de suas próprias peculiaridades numa nova releitura não palatável a todos os públicos, mas que alinha um visual perturbador a uma poderosa forma de fazer cinema, próximo ao body horror. Se, de um lado, existem correntes que apregoam o cinema mudo como a mais pura e real mostra da sétima arte, de outro lado, numa abordagem menos radical, é possível verificar que todo tempo é fértil às boas ideias, e que o terror, o qual também emana da dicotomia humana, suas mazelas e dúvidas, é coadjuvante até mesmo à existência. Afinal, nada mais metafísico de que o homem como ser complexo, pois, se o inferno são os outros, este se inicia com o próprio indivíduo.
Marcus Hemerly
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