No caminho das Tropas, o sonho de Liberdade

“No imaginário criado sobre a lida tropeira, a vida em liberdade é um tema recorrente”. (Carlos Cavalheiro)

Carlos Cavalheiro

No imaginário criado sobre a lida tropeira, a vida em liberdade é um tema recorrente. Acredita-se que as longas viagens realizadas por lugares inóspitos e desabitados (e que assim permaneceram por muito tempo), forjaram o espírito do tropeiro com a tendência à vida livre e solta.

Sendo o fenômeno do tropeirismo coincidente, em significativa parcela, com a escravidão negra, é de se pensar se houve alguma relação entre o tropeirismo e o sonho de liberdade dos escravizados. Em outras palavras, se o tropeirismo tornou-se alternativa para o rigor do cativeiro.

O historiador Aluísio de Almeida afirma que “Manuel Cardoso (1961) provou que a escravidão no Rio Grande do Sul foi mais benigna, porque os escravos eram boiadeiros. Podemos chegar a mesma conclusão em Sorocaba onde os escravos tropeiros eram bem tratados. Os tropeiros” (ALMEIDA, 1969, p. 2). Florisbela Carneiro Zimmermann defende a ideia de que o trabalho em comum entre patrões e peões na lida tropeira aproximou a ambos. Sendo assim, o “dono das tropas soube melhor compreender seus subordinados” (ZIMMERMANN et al, 1991, p. 19).

Desse modo, é possível que escravizados e libertos tenham preferido a lida nas tropas a outros trabalhos. No entanto, em quais fontes podemos encontrar a presença do escravizado ou do liberto (africano ou seu descendente) dentro do tropeirismo?

Algumas gravuras de Debret como Tropeiros e Pouso de tropeiros confirmam a presença de africanos e seus descendentes nas tropas (FLORES, 2004, p. 460). Porém, outra fonte valiosa para o estudo da presença de africanos e descendentes, especialmente enquanto escravizados, pode ser encontrada nas publicações de fugas espalhadas pelos diversos jornais de praticamente todo o Brasil.

Neste artigo, nos deteremos nas décadas de 1820 a 1850, época em que o tropeirismo está se consolidando, ao mesmo tempo em que a escravidão começa a ser questionada enquanto forma viável de exploração do trabalho, culminando, nessa época, com a promulgação da Lei Eusébio de Queiroz que proibiu o tráfico negreiro intercontinental, ou seja, da África para o Brasil.

Além disso, foi nessa época, também, que o país se torna politicamente independente e, depois de algumas crises, se estabiliza com a ascensão do segundo monarca. Portanto, este recorte, apesar da arbitrariedade inerente a ação do pesquisador – pois todo recorte é, de certa forma, arbitrário – não deixa, por outro lado, de se justificar.

Aqui, também, não se distinguirá, a princípio, a tropa xucra da arreada. Não é o fato de que se desconheçam as diferenças entre uma e outra realidade, mas, por outro lado, percebe-se, pelas fontes compulsadas, que o tropeiro escravizado, na maioria das vezes, poderia se empregar em qualquer uma das duas modalidades de tropa.

O padre Francisco de Assis Ribeiro, capelão do 7º Batalhão em Santa Efigênia, São Paulo (capital), por exemplo, oferecia para compra um escravo de 40 anos de idade e que possuía as seguintes qualidades: “bom cosinheiro, lava e engoma bem roupa, bom arreador de tropa, mestre de vallo e carreiro, bom pagem” (O FAROL PAULISTANO, 28 set 1830, p. 4). Esse escravizado estaria apto a trabalhar, em tese, tanto com tropa xucra quanto arreada, até mesmo pelo fato de ser considerado bom cozinheiro.

Já outro escravizado, do Rio de Janeiro, era vendido como “bom campeiro, adomador de mulas e cavalos, he próprio para bolieiro” (JORNAL DO COMMERCIO, 8 jan 1830, p. 2).

Na década de 1850 fugiu de Campinas, possivelmente com destino a Sorocaba, um escravizado de nome Antônio, o qual, de acordo com a publicação dos jornais, “carrea, doma, e inculca-se camarada de tropa” (CAVALHEIRO, 2006, p. 56). Curiosamente, alguns destinos desses escravizados em fuga e que buscavam trabalho nas tropas, eram recorrentes.

Sorocaba era um desses destinos e isso se explica pelo fato da existência de uma concentração de tropas nessa cidade por conta da Feira de Muares que ocorria anualmente e do Registro de Animais e cobrança de impostos a partir de 1750 (ALMEIDA, 2012, p. 59).

Benedicto, por exemplo, escravo de Francisco Ferreira Prestes, que fugira em 1870, provavelmente se dirigira para Sorocaba e “desconfia-se que queira justar-se como camarada em alguma tropa que siga para Minas” (O SOROCABANO, 05 jun 1870, p. 01).

Rio de Janeiro, então capital do país, também era uma terra buscada pelos fugitivos que desejavam vender sua força de trabalho para as comitivas tropeiras. De Goiás, por exemplo, fugiu a Domingos José Dantas de Amorim o escravo Florêncio, que, segundo acreditava-se, “consta que anda como camarada de Tropa no caminho do Rio de Janeiro com o nome de Joãosinho Cuiabano” (O UNIVERSAL, 19 mar 1830, p. 4). De Silveira, Distrito de Lorena, “na estrada geral que segue para a Corte do Rio de Janeiro”, fugiu o escravizado Severino, de nação quilimã, “com o officio d’arreador de tropa” (O FAROL PAULISTANO, 16 abr 1831, p. 4).

Um fato curioso e inusitado. Há um anúncio de fuga que afirma ser o escravo um “índio”, em época na qual a escravização de indígenas no Brasil estava proibida. Mais curioso ainda é o relato desse anúncio que afirma que o fugitivo “falla Inglez, Português e Hespanhol” e que teria se “aneixado a alguma tropa que vai para Minas” (JORNAL DO COMMERCIO, 22 jan 1830, p. 3). O fato teria ocorrido na Ponta do Caju, no Rio de Janeiro.

De São Paulo fugiu Aleixo, que “teve principio de alfaiate e foi algum tempo tocador de tropas de animaes”, tendo se dirigido para os lados do Rio de Janeiro (O NOVO FAROL PAULISTANO, 30 abr 1833, p. 4).

Sorocaba, Rio de Janeiro e Minas Gerais eram destinos procurados por escravizados fugitivos que pretendiam trabalhar com tropas. Mas, por outro lado, os escravizados dessas localidades procuravam fugir para longe das vistas de quem os pudesse reconhecer. De Sorocaba fugiu Marcolino, com destino, possível, para Itapetininga ou Freguesia do Pillar. Apesar de lidar “soffrivelmente com animaes”, Marcolino “já esteve em Mogy-Mirim cuidando em tropas de bestas invernadas” (A PROVINCIA DE S. PAULO, 31 maio 1876, p. 3).

Da Villa de Valença, Província do Rio de Janeiro, fugiu e foi preso na Freguesia da Sé, em São Paulo, o escravizado Joaquim, o qual trabalhava para um senhor que era proprietário de engenho de café e de tropa (O PAULISTA OFFICIAL, 15 jan 1836, p. 4).

Muitos anúncios de fugas dão conta de que os escravizados já possuíam experiência em trabalho com tropas. Além dos acima já citados, há outros como é o caso de Adão, da Villa de Rezende, no Rio de Janeiro, o qual é “inclinado a lidar com tropa, ou carro” (JORNAL DO COMMERCIO, 12 jul 1830, p. 4). Ou Antônio, de nação Congo, morador da Villa de Pomba em Minas Gerais e que era “negro de roça, e também sabe lidar com tropa” (O UNIVERSAL, 30 out 1835, p. 4).

Também é o caso de outro Antônio, da nação Moçambique, residente em Catta Branca, Minas Gerais, o qual fugiu e era tido como “acostumado a andar com tropas” (O UNIVERSAL, 25 maio 1836, p. 4).

No Rio de Janeiro anunciou-se a venda de um escravo que “era bom cozinheiro de tudo” e que “também sabe tratar de cavallos” (JORNAL DO COMMERCIO, 20 set 1830, p. 3). Martinho, escravo morador em Jundiaí, interior de São Paulo, foi visto, depois de ter fugido, em Bragança. Considerava-se que fosse bom cozinheiro e que “mette-se a lidar com animaes” (A PHENIX, 24 fev 1841, p. 4). De Mogy-Mirim foi anotada a fuga de um escravizado que “lida com tropa” (A PHENIX, 24 abr 1839, p. 4). João, de nação Congo, vivia em Mercês da Pomba, Minas Gerais, e “vive de tropa” (O UNIVERSAL, 29 out 1838, p. 4). Outro fugiu de Silveira, na Província de São Paulo, e tinha “habilidade para tropa carregada” (O NOVO FAROL PAULISTANO, 7 jul 1834, p. 4).

Ignácio era “muito intelligente para lidar com tropa arreada”, conforme o anúncio de sua fuga (O NOVO FAROL PAULISTANO, 19 nov 1836, p. 4). E o escravo do Bispo Diocesano, chamado Lourenço, foi “encontrado em uma tropa a caminho de Santos” (O NOVO FAROL PAULISTANO, 21 jan 1837, p. 4).

Registrou-se também o caso de um escravo que “fugio da borda do campo indo para Sanctos com a tropa do seu senhor” (O FAROL PAULISTANO, 23 fev 1830, p. 4). Eleutério, de Campinas, sabia “andar com tropas, e talvez mesmo queira ser arrieiro” (O PIRATININGA, 4 set 1849, p. 4). Miguel, de Caçapava, “entende do ofício de tropeiro, é muito inclinado a lidar com animaes, e por isso pode ser que se intitule por forro e se ajuste em alguma parte para andar com tropa ou lidar com animaes” (AURORA PAULISTA, 31 jul 1852, p. 4).

Não bastassem as gravuras de Debret e os anúncios de jornais aqui coletados, há ainda a afirmação do historiador Aluísio de Almeida:

Vê-se que também entre os componentes de tropeiros havia escravos. Estes, apesar de pretos, adquiriam as qualidades mestras do gaúcho tropeiro: domadores, peões perfeitos, negociantes ou barganhistas, nisto muito e muito homens do sul paulistas (ALMEIDA, 1981, p. 13).

Todos esses casos citados são suficientes para corroborar a afirmação de que escravizados e libertos trabalharam como tropeiros. Ademais, o engajamento em uma tropa poderia significar, para o escravo fugido, a possibilidade de manter-se em liberdade, dada a característica nômade da profissão e a intensa mobilidade, o que, seguramente, dificultava a identificação e localização.

Por outro lado, apesar das inúmeras fontes apontando para a presença de escravizados e libertos nas tropas – tanto xucras quanto arreadas – pouco ainda se tratou do assunto na historiografia. A memória que perdura é a da presença de “brancos”, livres e portadores de uma cultura que mesclava a paulista com a do sul, então em formação, especialmente no comércio de muares xucros no trajeto de Viamão a Sorocaba. Qual terá sido a contribuição de africanos e seus descendentes na formação cultural do sul paulista e dos estados do sul do país em terras de passagem das tropas?

Afinal, o trânsito das tropas unificou o Brasil não somente do ponto de vista territorial, mas, sobretudo, cultural, pois “os tropeiros de tropas xucras e arreadas cumpriram um papel da mais alta importância na unificação cultural do país, como veículos difusores de notícias e de ideias” (BONADIO, 1984, p. 47).

Perceber a presença desses escravizados e libertos nas tropas de animais ajuda a entender a formação da cultura dessas localidades percorridas pelos tropeiros, mas, ainda, permite ampliar a visão sobre as estratégias de sobrevivência encontradas por africanos e seus descendentes nas trincas do sistema escravista. Possivelmente, para quem estava em situação de escravização, o ajuste em alguma tropa deve ter possibilitado a manutenção do sonho da liberdade.

Referências

ALMEIDA, Aluísio de. A feira de 1852. A feira e os jornais da época. In Cruzeiro do Sul, 04 jan 1981, p. 13.

______. Crueldade e mansidão dos senhores escravos. In Cruzeiro do Sul, 04 fev 1969,

p. 2.

______. História de Sorocaba. Itu: Ottoni, 2012.

BONADIO, Geraldo. O tropeirismo e a formação do Brasil. Sorocaba: Academia Sorocabana de Letras, Fundação Ubaldino do Amaral, 1984.

CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da Escravidão. Sorocaba: Crearte, 2006.

FLORES, Moacyr. Etnias dos Tropeiros. In. SANTOS, Lucila Maria Sgarbi., BARROSO, Vera Lúcia (ORGs.). Bom Jesus na rota do tropeirismo no Cone Sul. Porto Alegre: EST, 2004.

ZIMMERMANN, Florisbela Carneiro., ZIMMERMANN NETO, Adolfo. Biribas – A contribuição do tropeiro à formação histórico-cultural do Planalto Médio sul-rio-grandense. Sorocaba: Fundação Ubaldino do Amaral, 1991.

E jornais citados ao longo do texto.

Carlos Carvalho Cavalheiro
19.03.2023

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