O FASCÍNIO PELO OBSCURO
AS VÁRIAS VERTENTES DO HORROR EM “O BEBÊ DE ROSEMARY”
CINEMA E PSICANÁLISE
Por Marcus Hemerly e Bruna Rosalem
É cediço que o horror pode se desvelar a partir de feições fantásticas, o típico monstro da Lagoa Negra, a criatura do armário, vampiros e lobisomens; ou mesmo, ampliar-se a partir de abordagens psicológicas pautadas no universo real.
Não raro, não tão real assim. Inclusive, hodiernamente, tais explorações são mais poderosas do que o medo incutido a partir do sobrenatural. O temor material, tangível, perpassa às percepções do ser humano fazendo com que seus próprios medos, frequentemente inconscientes, assomem de forma palpável, e, até mesmo, idealizável.
A partir dessa premissa, repise-se, o medo legítimo/empírico, é estimulado pelo próprio ser complexo – tal a característica precípua humana – direta ou indiretamente, como um desdobramento de sua interpretação, (ou distorção) da realidade que o circunda, como uma tendência explorada de maneira paralela à própria evolução histórica das sociedades.
A título de exemplo, nas décadas de 50 e 60, o temor de uma guerra nuclear aliada às inovações tecnológicas coroaram as produções de sci-fi no respectivo período, como um reflexo dos receios então contemporâneos. O fenômeno pode ser observado tanto de maneira explícita, retratado nos embates imaginários concebidos nos roteiros ominosos, seja a partir da potência rival na figura de inimigo, seja na figura de seres de outras galáxias em tons quase “lovecraftianos”, ou mesmo, implícita ou simbolicamente.
As faces rubras do temor comunista, a paranoia da manipulação de massas, entre outros aspectos, pode ser identificados consistentemente no filme Vampiros de Almas, primeira versão da franquia posteriormente intitulada de Os Invasores de Corpos; mas, quais invasores? Sobrenaturais? Políticos?
A pergunta ecoa com diferentes respostas; óbvias ou interpretativas, pois até mesmo o conceito de alien assimila significados distintos, ao indicar elementos oriundos de países estrangeiros. Decerto, ainda que a criação artística do horror ou sua manifestação nas mais variadas formas de ficção acentue contornos pautados na realidade, o sobrenatural, a despeito de tudo, nunca perdeu sua majestade.
Afinal, o terror, assim como qualquer forma de arte, pode ser analisado como uma espécie de escapismo. Todavia, um escapismo que incita medo, para o qual aquele que o consome caminha a passos largos e de mãos dadas à sua própria “atemorização”.
Já foi explicado que o cérebro funciona em paralelo e se atrai em relação ao mórbido e ao macabro, informações não usualmente processadas, o que explicita o fascínio humano pelo que, num primeiro momento, causaria asco ou repulsa. E, nesses meandros, o sobrenatural, envolvendo as várias percepções do mal, seja na figura do homem ou do demônio, sempre estiveram presentes nas manifestações artísticas.
Na obra cinematográfica O bebê de Rosemary, (1967), adaptada do livro homônimo de Ira Levin, conhecemos a história de Rosemary Woodhouse, esposa de um ator decadente e frustrado que se vê habitando um disputado prédio novaiorquino, com locações gravadas no Edifício Dakota, onde foi assassino John Lennon.
Nesse passo, desde que trava conhecimento com seus novos vizinhos, o aparente simpático casal de idosos interpretados por Sidney Blackmer e Ruth Gordon, em meio à sua própria solidão imposta, estranhos desdobramentos fazem com que seja semeada a suspeita de seu envolvimento com o ocultismo.
Seria realmente um conciliábulo de bruxas em pleno século XX, no qual ela foi inserida como coadjuvante e vítima, ou projeções oriundas de suas próprias fantasias incentivadas por uma crise existencial?
O filme, desde os primórdios de sua realização, foi nutrido com um olhar especial pela produtora cinematográfica Paramount. Projeto com direção originalmente delegada a Willian Castle, que em momento posterior ficou a cargo da produção, pois oriundo de um nicho substancial de produções baratas de terror, o estúdio não queria que a obra fosse, de plano, rotulada como mais uma película rasa como as que permeavam o período.
A despeito de não surgir como a primeira retratação do demônio no cinema, pode ser indicado como o filme de maior relevância até então. Nos anos vindouros, os argumentos derivados do tema possessões demoníacas se popularizariam a partir do lançamento de “O Exorcista”, (1973), de William Friedkin, baseado no fabuloso romance de William Peter Blatty, e, até mesmo, no Brasil, com o lançamento de “Exorcismo Negro”, de José Mojica Marins.
Inúmeros são os títulos que flertam ou abordam diretamente a temática, alguns com mais êxito, como “O Anticristo”, (1974) e as franquias “Profecia”, (1976), e mais recente “Invocação do Mal” (2013), além do spin-off Annabelle (2014). Estes últimos conquistaram grande número de admiradores do gênero, tendo como plano de fundo, histórias reais do casal de pesquisadores do sobrenatural Ed e Lorraine Warren.
A vereda pelo desconhecido sempre desperta algo dentro de nós, seja nas fantasias, na imaginação, nos sonhos. Aquilo que está nas entrelinhas, nos discursos enigmáticos, nas figuras formadas pela nossa mente ao avistar algo que não está claro, nas sombras assustadoras, indefinidas projetadas nos cantos dos ambientes. Seja consciente ou inconsciente, sempre buscamos algum tipo de interpretação para dar conta de nossas indagações cotidianas, de angústias existenciais, sobre a alma, a morte, o mundo espiritual, a existência de dimensões, viagem no tempo, vida após a morte, ou simplesmente, o nada. De qualquer maneira, a busca por explicações parece fazer parte da essência humana.
De volta ao longa O bebê de Rosemary, o que faz então, este verdadeiro clássico do cinema ser até hoje tão perturbadoramente instigante? É possível dizer que o filme causa estranheza, desconforto, angustia, sensações incomodas. Podemos arriscar ainda que, apesar de novas tentativas surgirem ao longo da história cinematográfica, dificilmente filmes contemporâneos conseguiram provocar em seus espectadores tantas emoções, e impactos.
Além disso, um detalhe muito importante: sem revelar quase nada ao público. Brilhantemente, o filme opta por seguir por uma narrativa velada e obscura, o que aumenta ainda mais a tensão em torno de Rosemary e sua gravidez. O que ela de fato carregava em seu ventre? Um ser maligno? Um monstro? Alguma criatura desconhecida? Algo poderoso? Hipóteses gravitam o tempo todo. Não é à toa que esta grande obra do terror é considerada referência em produção, roteiro, cinematografia, atuações, tendo ganhado o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Atriz Coadjuvante.
A trama flerta, principalmente no início, com nossos julgamentos: ora é crível a existência de um mundo oculto, ora apostamos numa interpretação mais cética, pois a ingênua e simpática protagonista parece nos dar pistas de que tudo não passava de alucinações e perturbações fruto de sua imaginação fértil. Porém, até os mais céticos, ao longo da narrativa, caem nas garras do sobrenatural, do nebuloso e curioso domínio do misticismo, da magia, dos fenômenos paranormais, das seitas e da prática de bruxaria.
Um dos pontos mais angustiantes do longo é o fato de que em nenhum momento a criatura é revelada. Mesmo que a narrativa seja um tanto lenta, o espectador prende-se ao imaginário pulsante daquela tenebrosa gravidez, alimentando um crescente mal-estar por algo que parece ser proibido e inalcançável. Ainda assim, queremos chegar até o final daquele enredo macabro na ilusória ideia de que tudo será solucionado e satisfatoriamente concluído.
O que vemos é justamente o contrário, ao nascer a criatura, o filme faz questão de focar na expressão aterrorizada de Rosemary ao olhar para o seu bebê. Feição esta que permanece em nossas mentes por muito tempo, nos provocando uma intensa sensação de pavor e, ao mesmo tempo, de grande falta, frustração, pois nunca saberemos o que de fato havia naquele carrinho. E bem sabemos que, psiquicamente, quanto mais há falta, maior parece ser o desejo. Quanto mais incógnita é a situação, mais voraz é a nossa vontade de conhecer.
De maneira inteligente e perspicaz, sem expor cenas sanguinolentas ou atos violentos, pessoas desfiguradas ou sorrisos enviesados, a obra aponta outras perspectivas que nos geram uma crescente estranheza, seja nas ambientações, a exemplo do edifício envelhecido e charmoso, nas personagens prestativas demais, nos diálogos com “pontas soltas”, esquisitas coincidências e uma gestação problemática sem motivos aparentes.
Podemos arriscar dizer que o filme nos coloca numa corda bamba: pendemos entre os limites da racionalidade e uma verdade absolutamente incomoda e de difícil digestão. Pior do que esperar que algo realmente aconteça, é sentir-se aprisionado numa sensação constante de tensão, na iminência de se realizar, mas que não se concretiza.
E é exatamente isso que O bebê de Rosemary faz com nossa mente: nos provoca uma sensação terrível que implora por um desfecho que encerrará nosso desconforto, mas que nunca se cumpre. Ficamos permeados por um mistério insolúvel que não cessa de nos perturbar. Deparamo-nos com o vazio, e que jamais o preencheremos.
No contexto atual, o subgênero — inclusive, a ânsia por rótulos e definições, nunca se mostrou tão ávida — recebe constantes e pontuais revisitações. Os suspenses psicológicos, por exemplo, “caíram nas graças” do público, intitulados de cult, assim como as faces do sobrenatural ainda se mantêm igualmente sedutoras, bem como o interesse pelo sombrio e por fenômenos aparentemente inexplicáveis. Desde o body horror de David Cronenberg, ao surrealismo de David Lynch, perpassando as sutilezas do cinema japonês no qual drama e horror se unem, o terror – humano ou sobrenatural – evolui em paralelo ao amadurecimento do cinema. E, por óbvio, do perfil de público.
Aos apaixonados por histórias que “deixam em aberto” seu desfecho, e a “conclusão” a cargo do imaginário dos espectadores, O bebê de Rosemary é um verdadeiro deleite. Já para aqueles que anseiam por finais explicáveis e obsessivamente interpretáveis, a experiência pode ser um tanto desoladora.
Marcus Hemerly
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