Trilogia dos apartamentos, de Roman Polanski: a imagética do medo
CINEMA EM TELA
Marcus Hemerly
Artigo: ‘Trilogia dos apartamentos, de Roman Polanski: a
imagética do medo’
“…Tudo que aos olhos se interpõe,
É um sonho dentro de um sonho…”
Edgar Allan Poe
As cidades, assim como toda urbe, são emaranhados de vivências, aspectos únicos, subjetivos, e ao mesmo tempo coletivos de uma cultura organizacional que, sincronicamente, erige e desconstrói. Indivíduos em seus recortes pessoais são retratados em carne e osso, bem como em celuloide; uma matéria-prima extremamente rica e mutante, e, até mesmo, poder-se-ia asseverar, metamorfosicamente ambulante, para citar o ‘maluco beleza’.
A partir de cores, elucubrações anímicas, relatos e sentimentos, as metrópoles, de forma global e alinhando várias tessituras, desenham contornos não apenas de edificações materiais, mas também a solidez de trilhas individuais, as quais, ulterior e finalisticamente, compõem o coletivo, ao mesmo tempo anônimo e vivaz, cosmopolita e em cotejo a significação emotiva de seus componentes.
O mesmo pode ser dito acerca dos apartamentos, prédios, casas, estruturas que encapsulam a célula subjetiva como peça coadjuvante da alegoria principal. Nesse espaço, as habitações coletivas são recorrentemente tratadas como pano de fundo nas representações artísticas, mormente pela literatura e cinema, ou numa junção adaptativa de ambos.
A chamada Trilogia dos Apartamentos, do diretor polonês Roman Polanski, trabalha esses aspectos de forma robusta e sofisticada ao amalgamar o drama psicológico humano às feições do sobrenatural, ora de forma velada, ora de maneira (quase) explícita.
A proposição temática que se envereda é deflagrada pelo título ‘Repulsa ao sexo’, (Repulsion,1965), pelo qual o reduzido número de personagens canaliza o suspense na grande performance de Catherine Deneuve, que, de forma progressiva, vai cruzando os umbrais da insânia – ou assim parece ao espectador – entregue a suas divagações oníricas.
Na trama, escrita por Polanski e Gérard Brach, acompanhamos Carole Ledoux, mulher retraída e atormentada que, deixada sozinha no apartamento que divide com a irmã, inicia uma escalada paranoica permeada por pesadelos e alucinações no momento em que a personagem entra em contato com os homens e, naquele espaço, confrontada por seus desejos a ela canalizados.
Vislumbra-se uma abordagem indireta sobre transtorno de aversão sexual, representado pela rejeição patológica e persistente a todo tipo de contato genital. O estado mental de Carol e sua deterioração é intensificada e, talvez, adornada, por sua reclusão nas dependências do apartamento, que pode ser até mesmo interpretado como um catalisador da figura masculina em seu inconsciente, num misto de terror psicológico e suspense.
À sombra desse tópico, interessante diferenciar do ponto de vista analítico, as definições de suspense e horror. Ainda que usualmente aludidos como sinônimos, o terror se assimila de forma premente ao medo e angústia não aparente, psicológica. Lado outro, o horror exsurge de contornos mais explícitos, que causam asco e repulsa. Ao mesmo tempo em que um denota o lado de estado mental, o outro suscita a surpresa e efeito mais gráfico e visual.
No título ‘O bebê de Rosemary’, (Rosemary´s Baby, 1967), seu grande sucesso em terras estadunidenses, adaptado do romance homônimo de Ira Levin, conhecemos a história de Rosemary Woodhouse, esposa de um ator decadente e frustrado que se vê habitando um disputado prédio novaiorquino, com locações gravadas no Edifício Dakota, onde ocorreu o assassinato de John Lennon. Nesse passo, desde que trava conhecimento com seus novos vizinhos, o aparente simpático casal de idosos interpretados por Sidney Blackmer e Ruth Gordon, em meio à sua própria solidão imposta, estranhos desdobramentos fazem com que seja semeada a suspeita de seu envolvimento com o ocultismo. O filme, desde os primórdios de sua realização, foi nutrido com um olhar especial pela produtora cinematográfica Paramount.
Projeto com direção originalmente delegada a Willian Castle, que em momento posterior ficou a cargo da produção, pois oriundo de um nicho substancial de produções baratas de terror, o estúdio não queria que a obra fosse, de plano, rotulada como mais uma obra rasa como as que inundavam os cinemas no período.
Rosemary, a partir de pontos distribuídos no decorrer da película, suspeita de que os engajamentos satânicos de seus confrontantes objetivam utilizar seu rebento iminente, em oferenda ao diabo. Seria realmente um conciliábulo de bruxos em pleno século XX, no qual ela foi inserida como coadjuvante e vítima, ou projeções oriundas de suas próprias fantasias incentivadas por uma crise existencial? Mais perguntas são entrecortadas por induções, do que respostas são ofertadas durante as duas horas de duração.
Nos anos 70, após a realização de outro grande sucesso de público e crítica, o noir ‘Chinatown’, estrelado por Jack Nicholson e roteirizado pelo lendário Robert Towne, o diretor teria problemas com a justiça americana, fazendo com que tivesse que fugir do país para evadir-se a um processo criminal, devido ao envolvimento sexual com uma menor de idade.
Polanski já havia também assimilado holofotes por outro drama pessoal ocorrido em 1969, com o assassinato de sua então esposa grávida, a atriz Sharon Tate, pelos discípulos de Charles Manson. A posterior produção do realizador seria voltada ao velho continente, retornando ao ponto de partida de sua carreira, no entanto, não em tom de retrocesso.
O filme ‘O inquilino’, (Le Locataire/The Tenant, 1976), novamente explorando a multitude de relações humanas em um prédio de apartamentos, alinha a história do pacato Trelkovsky, interpretado pelo próprio Polanski, que a despeito de sua atuação em expressões contínuas e poucos versáteis, traz credibilidade ao confuso e apático personagem que acredita-se vítima de uma conspiração pelos demais moradores do prédio, de modo similar a anterior locatária de seu apartamento, que teria se atirado pela janela.
Aqui, tal como amoldado em Rosemary e Repulsa, a carga de tensão é construída não pelo que é mostrado, mas repousa naquilo que é presumido ou deduzido a partir de sugestões que podem ou não ser entendidas como tal, lastreando gradualmente o sustentáculo ao clímax derradeiro.
A obsessão do Inquilino Trelkovsky pela mulher, ocupante anterior de sua escabrosa morada, e a certeza da conspiração contra sua higidez, repise-se, física e mental, culmina em numa alucinada entoação acusatória próximo ao final do filme: “Eles querem me transformar em Simone Choule!”.
Esses aspectos desvelam um tecido construído de maneira mais minuciosa e robusta por elementos contínuos inseridos no roteiro. Planos sequência a partir da visão dos personagens e suas fantasias baseadas em elementos empíricos ou imaginários, constroem uma narrativa extremamente eficaz em todos os filmes aqui citados, que guardam peculiaridades no aspecto de construção da tensão e medo incutido ou projetado pelos protagonistas destes distintos city films.
Matizes de ambientes, bem como alternância psicológica dos personagens ajudam a compor as diversas camadas que esmeram a densidade dos roteiros e despertam a crescente inquietude e desconforto àquele que os assiste.
É sabido que, quando se fala em arte (ou se sente), a noção de relativismo histórico antropológico exsurge de maneira bem forte, seja num olhar individual ou amplificado, pois, assim como a criação de uma obra pelo artista, sua interpretação inexoravelmente indica um troca. Uma miríade, na verdade. Congruentes ou incongruentes, similares ou de harmonia flagrantemente denegada, tal é a complexidade do ser humano sensível, que reage de maneiras distintas a eventos em comum. E, a partir desta visão multifacetada, a cada sessão, novas interpretações e emoções são detectadas, como impressões digitais ou pegadas na areia, antes encobertas, para serem detectadas por um novo olhar apreciativo.
Marcus Hemerly
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