Druk: Do tédio à inebriante felicidade
CINEMA E PSICANÁLISE
Marcus Hemerly e Bruna Rosalem:
Artigo ‘Druk: Do tédio à inebriante felicidade’
“O medo de ser infeliz é peso que atormenta”
Aldous Huxley – Brave New World
Quando pensamos na ideia de felicidade, do latim felix – aquilo que é fecundo, na definição grega eudaimonia – decerto, inúmeras concepções nos vêm em mente. É sabido que a felicidade não é uma realidade constante, mas momentânea.
Na perspectiva platônica, seria Eros, ou seja, aquilo que não se tem, o que faz falta. Ora, inquestionável o fato de que o homem ser etnocentrista por natureza, muitas vezes narcisista, se mostrará contente face a obtenção de seus anseios materiais, afetivos, ou até mesmo metafísicos, quando na religião sente-se embalado pela certeza da guarda divina. Contudo, com a obtenção do objeto de desejo, cessaria o estado de contentamento?
Mais do que sermos movidos pelas vontades e quereres, somos antes de tudo, mobilizados pelo desejo. Este, sempre inconsciente e inalcançável. É como se fosse um motor, algo que constantemente precisa funcionar para que possamos seguir adiante. Sem desejo, o sujeito padece. Sem desejo, o sujeito deixa de existir, pensar, agir, refletir, transformar, enfim, viver.
No pensamento socrático, a felicidade seria alcançada pela virtuosidade e justiça na conduta empreendida pelo indivíduo. Isso seria ratificado por seu discípulo Platão, ao idealizar que a forma de contentamento pautada na felicidade, se vislumbraria pela efetividade das práticas de justiça e virtude – aqui não afastadas da ideia de satisfação pessoal – associadas ao pensamento ético, no campo privado e público, do que derivaria a grande ética e a pequena ética, ou etiqueta.
Lado outro, na lógica ética política de Aristóteles, divergentemente do professado por Immanuel Kant, se trabalharia com uma concepção mais básica de felicidade, utilitária, delineando preceitos fundamentais, que seriam coroados, por assim dizer, pela alma racional do ser pensante, que o elevaria a uma propinquidade ao divino.
Caminhando nessa linha de pensamento, deparamo-nos com a proposta inovadora no roteiro do mais recente filme do dinamarquês Thomas Vinterberg, ‘Druk – Mais uma Rodada’, estrelado pele parceiro de outra importante incursão fílmica retratada no drama ‘A Caça’, de 2012, Mads Mikkelsen.
Em Druk, observamos a história de quatro amigos, professores de diversas áreas do ensino médio (canto, história, psicologia, educação física) que há muito tempo vivenciam suas pedantes e enfadonhas rotinas diárias, distanciando-se cada dia mais da alegria de viver e de suas motivações primevas, tanto no viés profissional, como pessoal.
Casamentos irregulares, desempenho de tarefas laborais de forma autômata e indiferente, ausência de perspectivas, possíveis desejos rechaçados, permeiam suas existências. Servimo-nos do termo existência ao revés de vida, pois, num rompimento de sua realidade imposta (será?), eles decidem imprimir um tom de mudança, ainda que questionável, à sua deambulação social e pessoal.
A partir de um estudo trazido à baila por um dos personagens, que afirma a necessidade de o corpo humano suportar viver com um teor alcoólico de 0,05 mililitros para relaxar mais e, se possível, modificar seus olhares para o cotidiano maçante, os homens passam a beber diariamente.
Por uma premissa até mesmo simplória, seja em termos de proposta e potencial de escapismo, eles embarcam nessa ‘aventura’ pouco ortodoxa, mormente para a sociedade moralizante que os circunda, destacando-se, principalmente, nas falas proferidas pelo corpo administrativo e pedagógico do colégio onde lecionam, deixando bem claro aos funcionários que condutas ‘fora do padrão’ seriam severamente punidas. Que dirá se estas condutas forem dos próprios educadores. É justamente o que acompanhamos na jornada ‘alcoólica’ dos quatro amigos.
As atividades e ministrações etílicas, inicialmente, são milimetricamente calculadas e implementadas, a partir do calendário do projeto por eles concebido, no entanto, a busca por sentir mais efeitos que o álcool pode proporcionar como euforia num primeiro momento, depois relaxamento, prazer, sensação de entorpecimento, de ‘desligamento’ da realidade, de sentir-se permanentemente inebriado, durante o percurso, traz consequências não vislumbradas (ao menos, conscientemente relegadas), e contornos devastadores à experiência.
Apesar de comprovadamente melhorarem suas ações enquanto professores, por exemplo, tornando suas aulas mais dinâmicas, instigantes, provocativas, envolvendo mais os alunos e trazendo assuntos diferenciados, em contrapartida, o aumento gradativo das doses de bebidas alcoólicas e, consequentemente, da embriaguez, foi criando situações insustentáveis a longo prazo, inclusive comprometendo a convivência com as suas famílias.
A trilha pela satisfação e prazer contínuos como elementos elisivos aos pesares da realidade, em algum momento, é obliterada pela própria natureza insatisfeita do ser humano, fazendo com que o experimento antes moderado começasse a prejudicar a sobrevivência social.
Sob a ótica dos epicuristas, pela qual a busca pelo prazer seria empreendida de maneira moderada a fim de atingir um estado de tranquilidade que possibilitasse a dissociação do medo, poder-se-ia associar livremente os conceitos de tranquilidade/placidez e parcimônia na busca do prazer, forte vetor hedonista naquela construção filosófica. Trata-se na verdade, de uma libertação dos desejos na busca pelo prazer, contudo, não de forma desbragada ou irracional, mas de feitio metódico a ser aplicado em tal plano de ideias.
Desde os primórdios de nossa existência, os experimentos com plantas, raízes, diferentes elementos naturais são utilizados em preparações ‘mágicas’, xamanísticas, com o intuito de se alterar a maneira de ser e estar no mundo, de pensar sobre as coisas, de ampliar a mente, de se relacionar com o outro. É preciso introduzir substâncias estranhas ao organismo para que o liberte das amarras da civilização e da cultura. O desejo de ir mais além, de tocar o desconhecido sempre foi e continua sendo fascinante para nossa espécie.
Acompanhando o protagonista interpretado por Mads Mikkelsen, ele é o retrato de uma vida adulta entediante e sem emoções. A película parece nos apresentar pouco a pouco que se tornar um adulto responsável, pai (ou mãe) de família, pagante de impostos, pode ser algo nada interessante. Uma existência pautada apenas no cumprimento de tarefas, na ausência de motivações, na perda do brilho no olhar ao se deparar com algo novo e instigante, na falta de furor ou contentamento ao empreender uma nova atividade, ou seja, um existir ao estilo blasé.
Mikkelsen consegue transmitir em seus gestos e olhares, um ser desinteressado, apático e indiferente. E há momentos em que temos a sensação de que o personagem está prestes a implodir, a entregar-se de vez ao tédio de sua existência, onde nada mais importa.
Um adendo interessante, o ator, há quase duas décadas vem sobressaindo-se no cenário hollywoodiano, ao passo que protagonizou desde blockbusters como filmes da franquia 007, até a série Hannibal, baseada na obra do escritor estadunidense Thomas Harris, famosa por reviver o médico canibal Hannibal Lecter, lembrado pela hipnótica interpretação no cinema por Anthony Hopkins. Aliás, o velho continente, de forma relevada o cinema nórdico, é conhecido por ‘exportar’ talentos ao cenário global, a exemplo do ator fetiche do grande diretor sueco Ingmar Bergman, Max Von Sydow, que até mesmo deu vida ao Padre Merrin no icônico filme de terror, O Exorcista, em 1973.
O resultado da película de Vintemberg, novamente desenha a esperança de que o cinema de autor dissociado do imposição comercial e de forte raiz intimista, ainda respira em meio à indústria, que ao mesmo tempo projeta a publicidade astronômica atrelada às super produções milionárias. Inclusive, foi ele um dos signatários, junto a Lars Von Trier, do manifesto/movimento denominado Dogma 95.
Por este primado, com regras expressas e pré-estabelecidas, instrumentalizado no chamado ‘Voto de Castidade’, propuseram um romper de amarras com o cinema convencional por meio de obras experimentais, de forte inspiração na Nouvelle Vague francesa em flerte direto aos ideais de François Truffaut, tal como explicitados em seu ensaio – “Une certaine tendance du cinéma français” (Uma certa tendência do cinema francês), para a revista de cinema francesa Cahiers du Cinéma em 1954.
O diferencial intentado e observado ainda que de forma não plenamente fiel nas produções dinamarquesas subsequentes, repousa justamente na vereda contínua pela experimentação, num dar de ombros ao quesito comercial de muitas produções que se mantém refém do gosto e tendência do público. Esse aspecto de pronunciada inovação, ao mesmo tempo que de feições clássicas, já era identificado nas realizações daquele país, como no cult moderno ‘A Festa de Babette’, lançado em 1987.
Vemos que a jornada embotada pelo álcool e autodescobertas – e tragédias – deflagrada pelos quatro amigos, personagens centrais do enredo foi bem recebido por público e crítica amealhando o Oscar de melhor filme estrangeiro na premiação de 2021.
Na oportunidade, o diretor relembrou que o escopo da película era uma celebração à vida, mencionando a perda da filha, apenas quatro dias antes do início das filmagens: “Queríamos fazer um filme que celebrasse a vida, e quatro dias antes das filmagens, o impossível aconteceu. Um acidente na rodovia levou minha filha. Alguém olhando no telefone. Nós sentimos falta e eu a amo. Desculpem. Dois meses antes de filmarmos este filme, e dois meses antes de ela morrer, ela estava na África, leu o roteiro e brilhava de entusiasmo”.
De volta à narrativa, em um outro vetor de análise, é possível examinar a felicidade como a ausência, ou a negação do que faz mal, ou seja, a infelicidade, cuja investigação, numa meditação contrário sensu, recairia no mesmo esforço intelectivo de reflexão o qual ora se propõe. Neste campo, surge outra indagação: Qual o momento em que de fato é possível se identificar a felicidade? Como ela ocorreu? Quanto tempo durou e se podemos aferi-la concomitantemente à sua fruição; ou ainda, quando cessou de existir e por quê?
Existe um ápice episódico de satisfação, pois como já foi dito, a felicidade não é constante, mas uma construção de momentos, daí a relevância de se valorizar cada acontecimento como se fosse único – e de fato, o é – momentos os quais comporão a felicidade individual. Em alguns trechos do filme, o protagonista nos revela sua antiga paixão pela dança, ainda muito latente, porém soterrada pelos anos. Ele não só dançava belissimamente, como ensinava enquanto professor há anos.
Nos minutos finais da película, dança livremente numa praça em comemoração à formatura de seus alunos, sem acanhamento, num retorno à juventude, aos sonhos e brincadeiras que se perderam, à graça, à leveza. Não é porque nos tornamos adultos ou envelhecemos que a vida precisa ser cinza e que não é mais permitido gracejos, nem rir de si mesmo.
Talvez Druk nos aponte que a felicidade no final das contas está nas coisas simples da vida. E mais, nem sempre ter o coração batendo e respirar significa estar vivo. Somos muito mais que sinais vitais. Nos belos versos da música dos Titãs: “É preciso saber viver.”
Marcus Hemerly e Bruna Rosalem
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