Angelo Lourival Ricchetti: Continuação do livro que conta a história de uma família, desde 1400 até 2023. Ficção com base em documentos e narrativas de pessoas reais
Angelo Lourival Ricchetti: Continuação do livro ‘DA ARTE DE SE CRIAR PONTES’
(primeiras partes já publicadas: http://www.jornalrol.com.br/angelo-lourival-ricchetti-primeira-parte-de-um-livro-que-conta-a-historia-de-uma-familia-desde-1400-ate-2023-ficcao-com-base-em-documentos-e-narrativas-de-pessoas-rais/)
(continuação)
– Tudo bem, vô, é um reforço para minha aprendizagem.
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A minha prima Laura entra na sala e traz correspondência para o Lolou.
– Vô tem um formulário aqui para seu preenchimento e tenho de devolver para o moço da Prefeitura de
Itapetininga que trouxe.
– Me deixa ver.
Ele pega da mão da neta, olha, abre um sorriso:
– Pode deixar Laura que vou lá fora com ele para preencher.
O Lolou sai. Olho aquela prima artista e pergunto o que é esse formulário.
– As pessoas que moram aqui em Itapelinda tem um dia agendado para fazer a medição na Secretaria de Saúde
da Prefeitura para avaliar o seu nível de saúde. Depois o vô conta mais para você.
– Mas porque isso não é feito por meio da rede social da Prefeitura de Itapetininga?
– Nem todo mundo usa Internet. Ou porque são velhos demais para isso ou porque são analfabetos digitais.
Fico pensando o que será isso. Será que meu vô está com alguma doença grave. Creio que ela percebe que não
estou satisfeito com a resposta e continua.
– Eu também tenho o meu dia para isso. Você também devia ter, mas agora mora em São Paulo…
Ela dá um sorriso meio triste meio alegre e sai. Que Itapelinda é essa que eu não conheço mais?
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(Capítulo segundo)
Abro no computador do Lolou agora vários textos do pai dele Uth Ricchetti. O primeiro tem como título
“Prólogo” e me parece que deve ter sido escrito pelo próprio Lolou Ricchetti.
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Prólogo – Imaginando…
A banda, com a regência do maestro Angelo Ricchetti, no coreto no centro do jardim principal de São Manuel,
Estado de São Paulo, Brasil, termina a valsa Danúbio Azul e a criançada que roda em volta do coreto no
compasso da valsa, vai ao encontro de seus familiares sentados nos bancos ao redor do coreto.
Uma jovem chega apressada, quase sem fôlego: Pai, pai, nasceu! É um bambino! O maestro abre um meio
sorriso e bate com a batuta no suporte onde jaz a partitura:
– Senhores músicos, minha filha Linda diz que meu novo filho é nascido! Mas vamos continuar a alegrar os
adultos e crianças aqui com nossa música!
Os músicos aprontam seus instrumentos, sorrindo e se entreolhando.
Angelo Ricchetti, empunhando a batuta vai se lembrando dos filhos todos e agora mais este. Desde a Itália, das
várias viagens, indo e voltando, a primeira vez, sozinho, depois trazendo a esposa e filha Linda, levando
Henrique, o primeiro filho macho a conhecer sua terra, trazendo os instrumentos musicais, formando esta
banda, trazendo música para os italianos desta terra.
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Agora localizo no computador do vô Lolou um conjunto sequencial de textos do Uth Ricchetti.
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(Primeiro texto do Uth Ricchetti).
Eu, Uth Ricchetti, nascido no dia 11 de outubro de 1911 em São Manuel. No exato momento em que eu vinha
ao mundo, meu pai, que era maestro, estava ensaiando a primeira banda de minha terra natal. Foi o meu
nascimento na Rua 15 de novembro, nº 112 (hoje a casa foi demolida e em seu lugar há um grande
supermercado). Meu pai chamava-se Angelo Ricchetti – o maestro como era conhecido. Foi também jornalista,
sendo diretor-gerente do jornal “O Movimento”. Minha mãe era de prendas domesticas como se falava
naqueles tempos. Minha Santa Mãe chamava-se Maria Joana, Teve seis filhos: – Linda, nascida na Itália,
Henrique, Fausto, Helena, Hermínio e eu, o caçula de todos. Os cinco samanuelenses.
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Volto no dia seguinte e espero por Lolou. Ele chega de sua caminhada matinal e deita-se na cama ao lado do
computador. Abro o arquivo e pergunto como ele sabe sobre esse coreto e esse nascimento.
Ele informa que sempre as crianças e os pais e parentes, bem como as bandas de música, eram assim. Conclui:
– Quer dizer, ao menos eu me lembro de mim desde muito cedo pulando ao redor do coreto enquanto a banda
tocava. Também me lembro de quando saia de São Paulo Capital e vinha visitar meus pais, de ver as crianças,
famílias, bandas agindo dessa forma. Talvez até hoje seja assim.
– Então você inventou essa cena! Como poderia saber desse fato depois do nascimento e como realmente
aconteceu?
Meu vô dá um sorriso maroto:
– Deve ter sido assim mesmo como eu imaginei. Ou você acredita que a verdade não pode ser inventada? (Fico
sem graça) Se é para inventar então vamos inventar só o que foi bom, vamos esquecer tudo de mal que
aconteceu.
– Esconder as ruindades? Eu pergunto irritado. Nada disso, me conte tudo sem esconder nada! Meu avô larga o
corpo no sofá:
– Que seja então! Mas que ninguém fique sabendo. Olhe lá! E, por falar nisso, quem disse que você pode ficar
lendo os arquivos do meu pai?
– Você pediu para eu organizar seus velhos arquivos. Como posso fazer isso sem ler ou ver?
– Como assim sem ver?
Explico para ele que há muitas fotos bem interessantes e garanto que ninguém mais vai ver esses textos e fotos.
– Certo! Mas eu não quero que ninguém mais leia!
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Meu avô está com 83 anos e eu faço 21 anos daqui a pouco. Ele deve saber mesmo das coisas mais do que eu.
Deve saber que eu o respeito muito, embora discorde muito dele em certas coisas.
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De repente faço uma descoberta extraordinária:
– Essa noite de 11 de outubro de 1911 foi também quando tudo começou para mim!
Meu avô franze a testa:
– Como assim?
– Se meu bisavô não tivesse nascido seus filhos, seu pai, você mesmo também não teriam nascido. Muito menos
minha mãe, sua filha e, portanto, eu!
Lolou dá uma risada e me dá um tapa na minha cabeça:
– Imagine então o seu tataravô Angelo Ricchetti e antes dele outros Ricchetti se não tivessem nascido! Deixa de
graça! Continue vendo os textos do meu pai Uth, se quiser.
– Que nome estranho, eu digo, nunca encontrei alguém com esse nome. Vô me conta porque o maestro colocou
no seu filho esse nome.
– Esse é o nome arcaico da nota dó, de dó, ré, mi, etc. Cada nota representava pelo monge beneditino francês
chamado Guido de Arezzo, nascido nos fins do século X, que aproveitou um hino cantado em louvor a São
João Batista.
Em suas estrofes eram cantados os seguintes versos em latim:
“Ut quant laxis / Resonare fibris / Mira gestorum / Famuli tuorum / Solve polluti / Labii reatum / Sancte Iohannesa.
Então aproveitou o começo de cada estrofe. Dizem também que as notas eram criadas pelo inicio do nome de
uma cidade da Alemanha. Uth vem de Utrecht.
Qual é a verdade? Não sei. Escute aqui: você veio para organizar os arquivos no meu computador ou para
conversar?
De fato ele me chamou para dar um jeito na bagunça que ficou sendo os arquivos no velho computador dele.
Continuo ficando sem graça.
Ele se levanta da poltrona dizendo:
Vamos tomar o café reforçado que a Amanda preparou. Depois continuamos.
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Volto sozinho para o quarto porque chegaram várias pessoas da prefeitura e ele está lá fora conversando com
eles. Vou ler novos arquivos. Preciso ler, senão como vou organizar essa bagunça?
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(Segundo texto do Uth Ricchetti).
Até aos oito anos moramos na Rua 15 de novembro, nº 112. Ao lado da residência a tipografia donde saía o
jornal “O Movimento”. Nessa casa passei por alegres momentos, mas foi um caso triste que se deu ali que
muito me marcou.
Era uma tarde chuvosa. Meu irmão Fausto e uns amigos tinham ligado um fio na instalação da luz para
tomarem choques. O fio ficava no quintal perto do varal de roupas. Como a chuva era de vento o tal fio
encostou-se ao varal e eu que estava por perto, fui jogado no chão. Minha mãe pensou que meu amigo tivesse
me empurrado e como estivesse estendendo as roupas correu para mim para me socorrer; nesse momento ficou
presa no varal e não pôde sair dali.
Eu fiquei pasmo, chocado mesmo. Não sabia o que fazer. Foi um corre-corre, uma gritaria e ninguém tirava
minha mãe do fio. Foi um companheiro de meu pai, chamado Luís Leonardi que teve a ideia de quebrar o pé
duma mesa velha e atirar no fio e no varal até que ambos partiram e minha mãe caiu no chão muito queimada.
Ficou dias enrolada em folhas de bananeiras. Tudo isso marcou muito os meus oito anos.
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Não aguento mais esse velho computador. É muito lento. Aproveito para sair e comprar um equipamento mais
adequado.
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Depois do almoço Lolou tira uma soneca. Quando volto, ele ainda está deitado. Começo a desmontar aquele
monte de fiação do velho computador. Coloco a máquina de lado para instalar um novo micro computador que
nem precisa dessas fiações todas.
Pego a velha máquina e saio com ela. De repente ouço um grito e percebo meu vô correndo atrás de mim.
– Volte aqui com meu computador!
Não adianta eu acelerar o passo porque ele vem feroz atrás de mim. Paro e o enfrento:
– Eu troquei por um micro computador mil vezes melhor!
Ele arranca de minha mão o seu velho computador e entra no seu quarto. Vou atrás dele.
– Agora tira esse negócio ai e põe de novo meu computador para funcionar!
Ele está gritando. Eu devia ter antes o convencido. Muito aborrecido instalo de novo o velho, depois de tirar o
novo.
Ele fica satisfeito. E eu começo a rir lembrando de um velho correndo atrás de um jovem e gritando!
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Vou olhando os arquivos dele com ele sempre atento para ver se não vou fazer a troca de novo. Desconfiado
acompanha a minha leitura dos arquivos.
– Veja meu neto como você também não teria nascido se sua bisavó tivesse morrido antes. Observe também
como meu tio Fausto era um menino terrível! Quem diria que depois seria um dos mais altos funcionários do
Governo Paulista! Aquele prédio enorme em São Paulo que é a Secretaria Estadual da Fazenda, em estilo
nazista (naquele tempo quase todo mundo era nazista) foi construído e administrado por ele! O irmão dele era o
Delegado Dr. José Wilson Ricchetti e foi um dos melhores e mais corajosos da Polícia Paulista.
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Capítulo terceiro
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Quando vô Lolou me conta sobre a família, percebo a importância desses escritos nesses arquivos. Pergunto
com ele descobriu esses arquivos. Eis o relato que ele me faz:
– Meu pai e minha mãe moraram na minha casa em Itapetininga, Estado de São Paulo, Brasil, por um tempo.
Depois eles foram para a casa da minha irmã Vera Maria, casada com José Carlos Meneguelli, em um sitio no
alto da serra, antes de chegar a Bertioga. Lá, ele veio a falecer.
Depois de algum tempo, indo visitar minha mãe, agora na casa de minha irmã e meu cunhado na praia, em
Bertioga, me mostraram o que ela havia escrito uma espécie de ajuda às pessoas que gostam de palavras
cruzadas, o que ela fazia com muita perícia e assiduidade. Um dos filhos da Vera Maria havia passado a limpo
pelo computador.
Havia também três cadernos escolares, com a letra de minha mãe. Neles, minha mãe escrevia o que meu pai
ditava a ela, sobre a vida de ambos, graças à memória prodigiosa dele. Abri o primeiro dos cadernos e na capa
estava escrito:
1º caderno, abaixo as letras LCMR, as iniciais do nome completo de minha mãe: Lucila de Campos Mello Ricchetti, mais
embaixo ainda: São Manuel 1984. Na primeira contra capa: Se a vida lhe der um limão, faça uma limonada. Lucila de
Campos Mello Ricchetti, 1984 – 13 de 11 de 1984 – São Manuel.
Mais embaixo:
Quem sabe faz a hora… Não espera acontecer.
É uma das frases da letra da música de Geraldo Vandré, Para Não Dizer Que Não Falei Das Flores considerada
pelos ditadores militares de 1964 como imprópria e proibida. Esta é a única menção sobre a ditadura militar e
mencionado pela minha mãe Lucila.
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Nesse instante minha mãe Carla me interrompe dizendo que preciso acompanha-la até a feira semanal para
comprar frutas e verduras. Peço licença para o vô e saio com ela.
A feira em Itapelinda se realiza em vários pontos da cidade, mas a do centro, ao lado das Escolas pioneiras em
formação de professores, em 1900 e pouco, é a maior de todas, tanto na de quinta feira como a de domingo.
Enquanto caminho com as sacolas e minha mãe vai selecionando os produtos junto aos pequenos agricultores
em suas barracas, ela me explica:
– Kainã, nós não temos mais verduras, frutas, legumes e outros alimentos nos mercados, mercadinhos e
supermercados.
– Por quê?
Ela apanha um pé de alface.
– Veja que beleza! A prefeitura não deseja e faz propaganda que não compremos produtos que são resultados de
terras com agro tóxico ou produtos que venham de outras procedências.
Ela me mostra o pé de alface.
– Este alface aqui faz bem para a saúde, é um alimento produzido de forma natural, orgânica, sem uso de água
fluoretada e é aqui mesmo no município. Perceba também que não há mais aves abatidas. Qualquer animal ou
ave sofre para morrer e depois nós nos alimentarmos deles. Isso não é justo!
Eu acredito na minha mãe Carla por dois motivos: ela sempre trabalhou na área de saúde e sabe o que é bom. E
o segundo motivo é por ela ser minha mãe! O que acho estranho é a prefeitura fazer propaganda para não
comprar produtos que venham de fora.
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Voltando para a casa do vô Lolou ele se levanta e vai até uma cômoda com várias gavetas e retira uns cadernos
velhos que me mostra.
– Levei esses cadernos para Itapetininga e durante vários anos ficaram esquecidos em uma gaveta no meu
quarto. Um domingo, sem nada para fazer, resolvi começar a ler. Fiquei admirado pelo português correto, para
a época em que foi escrito, a letra muito legível de minha mãe, a vida do meu pai, dela, dos Ricchetti sendo
narrada por ele de forma instigante, compondo um documento de uma vida sofrida, uma vida de lutas, de um
amor impossível ente ambos.
Com todos seus defeitos e enganos ele e minha mãe haviam lutado contra a fome, a pobreza e isso por três
vezes seguidas, quando perduram tudo!
– Leu todos os textos? Eram muito longos?
– Eu lia com dificuldade por chorar ao mesmo tempo.
Olho espantado para ele.
– Homem não chora!
– Homem que é homem chora sim. Deixa de ser machista, Kainã. Eu chorava porque lembrava bem de muitos
dos fatos, das pessoas. Resolvi que haveria de publicar, com a permissão de todos os envolvidos. Mal sabia o
quanto essa tarefa ia exigir de mim, enfrentar minha própria vida e como seria necessário eu dialogar com esses
textos que emergiam dos três cadernos escolares.
Sabe? Muitas questões surgiam. Qual é a história dessa família? Quem são os Ricchetti? Onde moram de onde
vieram, como foram se formando e se espalhando pelo mundo?
Pedi aos meus dois filhos, Leon Francisco, seu pai com 15 anos, e Amanda, com 14 anos, para digitarem os
textos dos três cadernos. Depois comecei a colocar notas de pé de página que ajudassem no entender dos fatos e
situações que meu pai descrevia.
Resolvi usar o Orkut, uma antiga ferramenta para rede social que não existe mais e pelo qual perdi grande parte
de textos e fotos dos Ricchetti e assemelhados, para procurar por mais pessoas com esse sobrenome, mesmo
com grafias modificadas.
Para minha surpresa, a grafia do sobrenome se apresentava de várias formas: Ricchetti, Richetti, Riquetti,
Riquet… Parece que a pessoa encarregada de fazer o registro de filhos, junto à Igreja e aos cartórios, conforme
ouvia, escrevia esse sobrenome, daí terem tantas grafias diferentes, mas assemelhadas.
Pelo Google, site de sistema de buscas, eu encontrei dados da família desde 1600, tanto na Itália, como na
França. Usando o Orkut, localizei e convidei muitos com esses sobrenomes, criando uma página e uma
comunidade com acessos reservados apenas aos membros das famílias com esses sobrenomes. Dei o nome de
Projeto História da Família.
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Minha tia Amanda vem nos chamar para almoçar. Como quase todo trabalho hoje em dia é feito ela trabalha
virtualmente em casa mesmo fazendo serviços on line. Mesmo assim consegue tempo para cozinhar. E, melhor
de tudo, faz pratos maravilhosos! Uma ótima “chef de cousine” ela seria trabalhando em algum restaurante
famoso. Mas fica por aqui mesmo para cuidar do vô Lolou e da família.
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Depois do almoço, na sala de estar, vô Lolou continua a falar:
– Pelo visto haviam membros da Família Ricchetti em vários países, em vários Estados do Brasil. Alguns eram
músicos, artistas, outros jogadores de futebol, da Argentina, da Itália, havia até mesmo um assassino, junto com
a esposa, em um crime que abalou os Estados Unidos da América, crime a mando da Cosa Nostra, que fizeram
por estarem desempregados, na grande recessão de 1929. Haviam emboscado e matado um agente do FBI, em
Kansas.
Havia muitos da família em New York. Na Itália, para minha surpresa, achei um deles famoso rabino, o
principal, o que me faz sentir que talvez sejamos judeus, espalhados pela diáspora pelo mundo todo há muitos
séculos atrás.
Comecei a conversar com as pessoas de modo a localizar onde moravam no momento no Brasil e em outros
países, bem como, sobre os antepassados.
A minha hipótese era: serão todos membros de um mesmo tronco? Chamo de “tronco”, pois precisaria fazer
uma “árvore” genealógica. Não tenho todos os dados para montar essa árvore.
Mais tarde conto minha ida a Cascavel, no Paraná, em um encontro de todos os membros da família do sul do
Brasil. Mas todos descendem de outro Ricchetti que chegou ao Rio Grande do Sul, vinte anos antes do meu avô
Angelo. Somos parentes? Será? Ele se chamava Pasquale Richetti e sua esposa Maria Margherita Corona.
Chegaram a Caxias do Sul em janeiro de 1877 vindo de Cesiomaggiori, Beluno, Italia.
Ainda não consegui resolver sobre essa questão. Aprendi muito sobre meu avô e avó, pois vários parentes
foram à busca de dados sobre ele e sua esposa. Também há muitas fotos, documentos. Enfim, fiquei aturdido
pelo tamanho provável que o projeto poderia acontecer, tanto como texto impresso, como texto digital reunindo
várias aplicativos como fotos, vídeos, gravações de voz, etc.
Essa forma digital eu propus para os mais jovens. Assim eles poderão registrar a vida de sua própria família ao
mesmo tempo em que acontece. Nascimentos, casamentos, mortes, cidades, países, acontecimentos relevantes
ou significativos.
-Bem interessante vô Lolou.
– Pois é… Sabendo dos antepassados, o que fizeram de bem para a família e também para a comunidade, a
pátria, pode-se construir uma vida melhor, com mais ética.
– E os mais jovens fizeram isso?
– Infelizmente apenas algumas pessoas seguiram minha orientação. Tenho algumas planilhas com esses dados,
quase um modelo de genealogia, também alguns arquivos. Mas é pouca coisa.
Depois não tive mais tempo para me comunicar com todos e você vai perceber que há muitos dados
incompletos e mesmo falta de dados dos parentes. Pior de tudo que eu perdi as fontes dos dados.
Vovô Lolou se entristece. Para de falar e fica olhando para o vazio. Aproveito e vou trabalhar um pouco mais
nos arquivos. Fico entretido com isso e nem reparo as horas passarem até que minha tia Amanda vem chamar a
gente para jantar. Minha tia Amanda faz uma sopa de feijão maravilhosa!
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Sento-me ao lado da minha prima Mariana. Enquanto jantamos ela puxa conversa.
– Está namorando Kainã?
– Não. E você?
– Não tenho tempo. Toda hora viajo por causa dos desfiles de modas. Só namoros bem curtos.
E minha prima me olha com o canto dos olhos de modo malicioso. Fico quieto e não revelo que estou de olho
em uma jovem lá na Faculdade.
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De volta do jantar, Vô Lolou e eu vamos nos sentar nos bancos da pracinha no Jardim Deise, em frente de sua
casa. Está uma noite gostosa, céu escuro, muitas estrelas brilhando, perfume maravilhoso das flores da noite.
Vovô se sente bem e expressa isso:
– Eu gosto de estar nesta praça. Antes não. Não sei o que se modificou ou o que eu me modifiquei. Sinto que ela
é importante para mim. Antes eu a via apenas como pintura, as muitas cores do verde, a iluminação, fotografava
as várias árvores. Era um sentimento estético. Mas agora é emocional.
Eu pergunto por que o pai dele e outros da família vieram para o Brasil. Ele explica a forme que se seguiu após
as guerras para a unificação dos vários reinos, nascendo o novo estado italiano, provou um êxodo de imigrantes.
Então a partir de 1860, e com o apoio do governo brasileiro, desejando substituir o trabalho escravo por
trabalhadores de outros países, se iniciou a vinda de levas e levas de italianos. No caso do meu avô Angelo não
consta registro dos vapores que traziam imigrantes, logo ele deve ter vindo com recursos financeiros de sua
família.
Ele faz uma pausa, fecha os olhos e descansa um pouco. De repente, abre os olhos e me pergunta:
– Qual o fato mais antigo que você se lembra?
Penso um pouco e respondo:
– Quando tinha 4 ou 5 anos e vinha brincar com a Mariana aqui na sua casa.
– Ah! Ele diz sorrindo, a Mariana primeira minha neta menina, muito linda, agora com 20 anos já brilhando
como modelo nas passarelas.
– E você vô de que se lembra?
Ele fecha os olhos, parece sonhar e me conta:
– Lembro bem quando estava no colo da minha mãe subindo pela calçada do jardim da cidade e vendo os
arbustos sendo passados para traz. Devia ter poucos meses… Se não me engano tínhamos ido ao Cine Paratodos
ver um filme. Acho que desde aquele momento fiquei fascinado por cinema.
Lembro também do meu pai me levando ao matadouro para tomar sangue quente do boi matado na hora!
– Nossa! Que horror vô! Por que isso? Lolou me explica:
– Eu nasci antes de completar os nove meses quando minha mãe levou um tombo, nasci bem fraco e foi preciso,
nos primeiros anos de vida uma alimentação suplementar, até que aos quatro anos Dr. Rugai, médico da
família, recomendou tomar copo de sangue algumas vezes.
Não sei se foi isso mesmo, quem me contou e não me lembro bem se tudo isso aconteceu.
Pode ter sido invenção do meu pai ou da minha mãe. Mas o fato é que fiquei forte feito um touro! Costumava
erguer meus irmãos com um braço apenas! Minha mãe Lucila dizia que eu era como seu irmão Fernando que
morava no Paraná e de tão forte, erguia um caminhão sozinho!
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Leio um pouco mais dos textos dos arquivos enquanto meu vô Lolou dorme assistindo televisão. Não sei por
que ele liga a televisão apenas para dormir com ela ligada. Percebo que meu avô faz comentários aos pés das
páginas sobre o que lia. Eis o que leio do terceiro texto do meu bisavô Uth Ricchetti:
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(Terceiro texto do Uth).
Nasci, andei, falei ouvindo música.
Aos oito anos mudamos de casa, porém, na mesma Rua 15 de Novembro. Um ponto muito bom, perto de uma
linda praça, que até hoje existe. Essa casa era de esquina e a outra rua chamava Rua Gomes de Faria. Ainda
está lá.
Casa assobradada. Fazia parte do antigo “Hotel Leite”. Na parte de cima ficavam seis quartos. Meus irmãos
ocupavam cada um o seu quarto. Na parte de baixo ficava a tipografia. A tipografia estava dividida em três
salões na descida da Rua Gomes de Faria. No primeiro salão ficavam as máquinas menores, no do meio
ficavam as caixas dos tipos para fazer os impressos e para o jornal, no terceiro salão a máquina grande onde
faziam o jornal (“O Movimento”).
Ali trabalhavam os seguintes tipógrafos: – Miguel Donatelli, (que era o gerente, hoje falecido), Vicente Viana,
Antonio Di Nardo, Orlando Moratelli, Rodolfo Bacchiega e Antonio Francisco. Por motivo de maiores ganhos,
os senhores Miguel Donatelli e Vicente Viana montaram outra tipografia em sociedade com os irmãos
Faschietti (Ciro e Nando) que também eram donos de açougues.
A tipografia Ricchetti continuou com os outros e mais os novos que vieram aprender o ofício. Um deles foi
Bento Pais de Campos Mello, filho de Bento de Campos Mello e Maria Elisa Arruda Leite Campos Mello.
Também vieram aprender João Mota Macedo (com oito anos), Francisco Borges (oito anos) os quais se
tornaram meus amigos.
Com Bento Pais de Campos Mello, conheci em sua casa, sua irmã. Uma menina de oito anos (e eu contava
nesse tempo 12 anos). Disse ao Bento filho:
_ Vou me casar com sua irmã. E ele respondeu:
_ Vai crescer mais um pouco para depois pensar em casamento.
Aquilo ficou em minha ideia.
Continuando sobre as casas. esta, na Rua 15 de Novembro em continuação com a Gomes de Faria.
Na frente da casa estavam: – a papelaria e a livraria.
Atrás uma sala de visitas, banheiro e a cozinha, embaixo desses cômodos estavam guardadas as garrafas de
vinho que o Hermínio (meu irmão) e eu engarrafávamos. Pois naquele tempo, meu pai mandava vir da Itália
cartolas de vinho que púnhamos em garrafas.
Um dia quis provar do vinho e bebi demais ficando tonto e o meu irmão Fausto para esconder o fato de papai,
me levou para a cama.
Esse irmão sempre me protegeu livrando-me das surras pelas minhas peraltices. Dava-me conselhos bastantes.
Já o meu irmão Henrique gozava com tudo o que eu fazia.
Eu caçava com uma armadilha as pombas do vizinho. Ficava em cima de um barracão coberto de zinco onde
ficavam os caixotes vazios. Quando as pombas iam cair na armadilha o Fausto as matava, ainda no ar, com um
rifle e então ria porque eu ficava nervoso e ia contar tudo para mamãe.
O Fausto e o Henrique (meus irmãos mais velhos) sempre foram meus amigos.
Esqueci-me de contar: quando em tinha cinco anos, papai mandou fazer um fraque (uma calça preta comprida)
e comprou uma bengalinha e me levava no coreto do jardim, onde os músicos ficavam. Naqueles trajes eu
ficava todo enjoado fazendo inveja aos outros meninos.
Essa casa da Rua 15 de novembro foi demolida e em 1928. Foi construída outra que em 1976 pegou fogo e
acabou com Casa Ricchetti; todo um patrimônio que meu pai conseguiu no Brasil.
Meus outros amigos de infância. Lauro de Oliveira (falecido) formou-se em medicina, Henrique Faschietti,
também médico, Artur e Gilberto Marmolite, que só vim encontrar depois de moços (operários) em São Paulo,
Gilberto já falecido (mais tarde, o filho dele veio me conhecer aqui em São Manuel), Carlos e Silvio de Barros
que depois estudaram comigo no Ginásio São Bento em São Paulo.
Silvio é médico afamado, foi diretor do Hospital das Clínicas em São Paulo. O Carlos (irmão do Silvio) é
engenheiro.
No mesmo Ginásio São Bento fui amigo de Célio Souza Aranha, que faleceu logo depois, Carlos Pupo,
advogado; Anísio Floriano de Toledo também médico, hoje numa cadeira de rodas.
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Depois desse trecho longo tenho muitas perguntas a fazer, mas meu avô não quer falar sobre essas coisas e me
manda voltar no outro fim de semana. Eu me pergunto por que estou lendo essas histórias antigas. O que elas
vão me ajudar? No quê?
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No sábado seguinte nos sentamos um a frente do outro e vou fazendo perguntas e ele tenta me explicar. Esse
mundo, essa gente, tudo isso é muito distante do que vivo agora e não faço ideia dessas coisas que o bisavô Uth
conta. Parece que ele está fazendo um rol de fatos, de nomes, de lembranças.
– Por que ele escreveu tudo isso? Quantos anos ele tinha? Como podia se lembrar de tudo isso? Por que se
lembrar disso tudo?
Lolou chama minha atenção para um fato importante:
– Antes de tudo, vamos pensar quem era Angelo Ricchetti? Ele importava vinho da Itália, entendia de
tipografia, de negócios, Li em um recorte de jornal de 1925, se não me engano, um anuncio em nome dele,
oferecendo lotes de terreno na Capital em um novo bairro, sendo ele mesmo o incorporador. Nesse tempo,
afastado já de São Manuel, morava no pensionato da irmã da minha avó que veio da Itália junto com ela.
Foi líder político, divulgando as idéias anarquistas desde Garibaldi, publicou toda a Primeira Guerra Mundial,
ouvindo rádio galena e publicando em seu jornal, portanto jornalista também, além de músico.
Ele não veio como imigrante custeado pelos governos da Itália e do Brasil e sim chamado pelos amigos
imigrantes que sentiam saudades da Itália. Pagou ele próprio sua passagem de vapor.
Era filho de pais ricos, pois para estudar música naquele tempo na Itália precisava-se de muito dinheiro. Casou-
se com uma jovem cuja mãe trabalhava no Palácio do Rei Humberto I como babá da filha do rei.
Essa moça, minha avó, ao descer do vapor que a trouxe ao porto de Santos, desmaiou ao ver, pela primeira vez
na vida, um jovem negro, semi nú a descarregar bagagens de um navio.
Trouxe junto com ela objetos de louça para lavabo, para uso pessoal. Tive acesso a esses objetos na Casa
Ricchetti, uma mansão enorme, muitos quartos. Lembro de minha avó me ensinando em um misto de português
mal aprendido com dialeto de sua região na Itália:
– Deixa a espuma do sabonete espalhada no rosto por um tempo, bambino, para que penetre nos poros e depois
enxagua, desse modo sua pele vai ficar sempre limpa e sem rugas!
Olho então para o rosto do meu vô Lolou e reparo como seu rosto não é de um velho para a idade que tem.
Pergunto sobre a tal de Casa Ricchetti.
Ele me explica que na parte de baixo ficava a Tipografia, na frente da casa, a papelaria e depois também uma
loja de presentes, nos fundos ficavam os depósitos de todo o necessário para a tipografia, a loja, os vinhos, etc.
– No andar de cima, em uma parte vivia minha tia Helena com seu esposo, José Alves, a filha Maria Helena, por
quem me apaixonei aos dez anos, e o filho Ulisses. Na outra parte vivia minha avó, meu tio Hermínio e esposa.
Eram duas casas ligadas no mesmo andar superior, separadas apenas por uma porta de vidro com desenhos de
florais.
A Casa Ricchetti, o casarão era assim quando meu avô já havia morrido e minha tia Linda, casada, com muitos
filhos, morava em outra casa. Meus tios Henrique e Fausto já moravam na capital, São Paulo.
Ainda tenho a lembrança, devia ter uns oito anos, da minha avó fazendo o molho da macarronada, que só ela
sabia fazer, minhas tias ajudando na cozinha, na enorme sala de jantar, os demais membros da família, tios,
primos meus, muita gente, aguardando a chegada das travessas italianas enormes de macarronada!
Nesse tempo todos os meus tios e esposas ainda moravam São Manuel.
As garrafas de vinho da adega do meu vô Angelo já haviam sido abertas e todos os adultos já saboreavam o
suprassumo da uva, como diziam.
Quando chegam as travessas com a macarronada, fumegante, trazidas pelas minhas tias, todos, velhos, jovens e
crianças começávamos a cantar Il Solio Mio, a canção que minha avó mais amava…
O Sole Mio – Il Volo
Che bella cosa na giornata'e'sole
N'aria serena doppo na tempesta
Pe'll'aria fresca pare gia' na festa
Che bella cosa na giornata'e sole.
Ma n'atu sole cchiu' bello, oi ne'
'O sole mio sta nfronte a te!
'O sole o sole mio
Sta nfronte a te… Sta nfronte a te.
Quanno fa notte e o sole se ne scene,
Me vene quas'na malincunia.
Sotto a fenesta toia restaria,
Quanno fa notte e o sole se ne scene.
Ma n'atu sole cchiu' bello, oi ne'
'O sole mio sta nfronte a te!
'O sole o sole mio
Sta nfronte a te… Sta nfronte a te.
Ma n'atu sole cchiu' bello, oi ne'
'O sole mio sta nfronte a te!
'O sole o sole mio
Sta nfronte a te… Sta nfronte.
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(Continua)