O Animal Cordial: a duplicidade homem e fera
COLUNA CINEMA E PSICANÁLISE
Marcus Hemerly e Bruna Rosalem:
‘O Animal Cordial: a duplicidade homem e fera’
“Conheces esse mistério? O estranho é que a beleza é uma coisa não somente terrível como também misteriosa. É o diabo em luta com Deus e o campo de batalha é o coração dos homens”.
Irmãos Karamazov. Dostoiévsky. Por Marcus Hemerly e Bruna Rosalem
O cinema brasileiro é bem definido sob o ponto de vista de períodos e sua interação/comunicação com o público.
De um lado, historicamente, quando se contempla as tendências na produção sob o ponto de vista autoral ou comercial – ainda que se trata de manifestação artística – inolvidável se mostra lembrar do cinema novo, o cinema marginal, e ainda, voltando um pouco mais no tempo, das chanchadas realizadas pela Vera Cruz e Atlântica. Houve um tempo, no qual o brasileiro fazia cinema para o brasileiro, quando os títulos mais intelectualizados, ou mesmo apelativos da Boca do Lixo, disputavam público com aos blockbusters americanos.
Paralelamente às produtoras independentes, as leis de reserva de mercado ou a posterior criação da Embrafilme, é possível asseverar que mesmo de forma velada, o terror esteve sempre presente nesse panorama evolutivo. No entanto, que terror? Por óbvio, as diversas facetas do horror se desvelam a partir de nuances indiretas, até mesmo não identificáveis prontamente como tal; seja por sua inserção na comédia, seja em razão das derivações não perceptíveis como no cinema importado, de alto investimento.
De um lado, temos os lobisomens, vampiros e demais criaturas sobrenaturais – assim como os famosos monstros da Universal Studios – evidenciando de maneira incontestável a natureza e intenção da produção. No Brasil, contudo, o horror, até mesmo por escassez de recursos, gravita de forma velada, psicológica, não raro, simbólica, a partir de sutilezas que se coadunam com o conflito interior e, não raro, o social.
Importante pontuar que esta tendência é notada em outras nacionalidades, de igual forma despidas de investimento mais significativos, em formatação prática que remete à limitação como elemento criativo inovador. Com a dita retomada da produção nacional, entre grandes orçamentos e realizações independentes, dos mais variados gêneros e matizes, o terror, renove-se, sempre foi objeto de revisitação, e, não apenas isso, praticamente atua como significativa parcelas dos títulos elencados nos últimos tempos.
Conforme adiantado, apesar de irradiar as feições do horror das mais versáteis formas, cite-se o recorrentemente referido “O Jovem Tataravô”, comédia fantástica de 1936, o primeiro filme autenticamente rotulado como pertencente ao gênero Terror, inclusive, autotitulado como tal, foi a parte inicial da trilogia Zé do Caixão, concebida por José Mônica Marins, em “À meia-noite levarei sua alma”, lançado em 1964. Novamente, vemos o sobrenatural alinhado às crendices populares além de violação a concepções morais e religiosas que, no contexto sociológico da época, amoldam repúdio e desconforto, assim como se assentariam na contemporaneidade os jump scares.
Nas décadas subsequentes, após a crise do Polo Paulista nos anos 90, as realizações pontuais no meio carioca, a extinção da Embrafilme e do Concine, a partir de vários fatores, se desembocaria na redescoberta do cinema nacional. Entre realizações milionárias e as produções de guerrilha com baixíssimo orçamento, a arte floresce justamente no nicho naturalmente discriminado ou outrora relegado como impraticável em terras tupiniquins. O terror. Ressaltando, por óbvio, o estilo próprio que desborda em traços mais humanos, psicológicos e, recorrentemente, retratando problemáticas sociológicas.
Nesses meandros criativos, salta aos olhos dos apreciadores da sétima arte o curioso roteiro concebido e dirigido por Gabriela Almeida Amaral, que havia chamado a atenção da crítica pelo bem esmerado curta-metragem “A Mão Que Afaga (2012), agora destacando-se no longa O Animal Cordial, (2017). Na fita, Murilo Benício, replicando a ótima atuação em O Homem do Ano – a despeito dos vieses distintos – vive o dono de restaurante Inácio. Nos primeiros momentos da sequência de abertura, nos deparamos com a tensão entre o patrão e os empregados do restaurante, principalmente com o cozinheiro, interpretado por Irandhir Santos. A dedicação, ainda que artificial, permeada pelo aparente senso de deslocamento, intercalado ainda por uma provável tensão matrimonial sinalizada de forma indireta, é interrompida por um assalto nas dependências do estabelecimento.
Nesse passo, um libertar gradual de amarras sociais se desenvolve pelo suspense palpável nos diálogos e ações surpreendentes, culminando num derradeiro, e gráfico, romper com a cordialidade do contrato social e dar de mãos ao lado animalesco de Inácio. Aparentemente, o cotidiano do restaurante caminhava de maneira rotineira, aos poucos apresentando seus personagens: o dono, o cozinheiro, a garçonete, os clientes. Porém, aos quinze minutos finais do encerramento do expediente naquela noite, chega um animado casal que solicita uma refeição à base de coelho acompanhada do melhor vinho da casa. De repente, dois homens armados entram no estabelecimento, anunciam um assalto e rende a todos presentes. Dali para frente, a trama ganha novos contornos que flertam com o suspense, gore, sexo selvagem e cenas violentas regadas a sangue e suor.
A fotografia chama atenção ao pintar a tela com cores vermelhas vibrantes, tons marrons, remetendo ao chão de madeira que constantemente era esfregado para limpar o sangue das vítimas, cores terrosas, fazendo combinações com alguns ambientes mais escurecidos e claustrofóbicos, acentuados pelo espaço de interação dos personagens e seu contorno minimalista, aspecto bem desenvolvida do roteiro. A cozinha, sempre muito clara, contrasta perfeitamente com as lâminas sujas e os cortes das carnes frescas.
Assistimos gradativamente a uma ruptura daquele ritmo vagaroso de um restaurante prestes a findar suas atividades daquele dia, para um caótico e frenético evento que revelaria o lado mais selvagem e brutal não só de Inácio, como também da garçonete Sara. Exaltados, ambos parecem ansiar por domínio, poder e destruição.
No livro “O Animal Social”, do psicólogo e professor emérito da Universidade da Califórnia, Elliot Aronson, há uma interessante investigação sobre o comportamento humano. Perguntas que ecoam do tipo: o que leva um cidadão honesto a tomar uma atitude imoral? Como surge a agressividade? Por que pessoas que não são loucas fazem loucuras? Entre outros questionamentos sob a ótica da psicologia social. Nesta obra, o autor cita vários experimentos que visam “testar” atitudes humanas frente a determinadas situações. Muitas vezes, o resultado apontava, por exemplo, que certas características do ambiente e do contexto em si levavam a comportamentos diferentes diante das circunstâncias.
Já numa ótica psicanalítica, temos a ideia de um sujeito estrutural pulsional que manifesta, sob determinados limites da civilização e da cultura, ímpetos, pulsões que são inesgotáveis: sexualidade, agressividade e pulsão de morte. São forças constantes que precisam ser, de alguma maneira, apaziguadas para conseguirmos viver em sociedade e criar laços comunitários. Aquela velha história do homem culto e civilizado.
Em dois textos icônicos escrito por S. Freud em 1930, “O Mal-estar na civilização” e o “Mal-estar na cultura”, o pensador do psiquismo mais famoso da História nos coloca que a repressão das pulsões se mantem a serviço da socialização, uma vez que para criar laços sociais, sustentá-los e interagir com o semelhante sem destruí-lo, há que se renunciar nossos mais pulsantes ímpetos, sejam eles sexuais ou agressivos.
Mesmo assim, ainda que tenhamos que fazer isso enquanto sujeitos que precisam lutar contra a pulsão de morte, não nos impede em certa medida de orquestrarmos guerras, massacres, ataques ao semelhante, a destruição dos outros seres que habitam o mundo e a natureza que nos cerca. À época (1932), questionado, Freud recebe uma carta do famoso cientista Albert Einstein, indagando justamente sobre as motivações que levam os seres humanos a travar grandes e violentos embates, resultando em milhares de mortes. Será que realmente há vencedores numa guerra? Naquele momento e espaço, a partir da ruptura – intencional ? – com a realidade e modus vivendi dito apropriado, traceja-se a verdade batalha, interior ou coletiva.
Recentemente o premiado filme alemão “Nada de novo no front” retrata da maneira mais visceral, cruel e fria possível, os horrores da Primeira Guerra Mundial, nos inserindo ao longo da trama belíssima em fotografia e trilha sonora original, algo extremamente terrível: pessoas matando pessoas sem nem mesmo saber o porquê daquilo. Jovens vendo seus amigos definharem, deixando famílias e sonhos para sempre. Neste cenário real e, porque não, subjetivo, o célebre mandamento bíblico “Amai o próximo como a ti mesmo”, torna-se praticamente impossível, pois não somente destruímos o outro, antes, somos capazes de também destruir a nós mesmos.
Um dos caminhos das pulsões para atingir outras metas mais aceitáveis socialmente, diria Freud, é o da sublimação. Desviar, por exemplo, a agressividade para a prática de um esporte, ou ainda, para diversas manifestações artísticas. Contraditoriamente, até mesmo a guerra pode ser um ato sublimatório, pois sob o apoteótico discurso de defesa e honra da nação, haja luz, faz-se a guerra.
Voltando à película, no caso de Inácio, a presença voraz dos assaltantes e a ousadia reveladora de sua garçonete sedenta por ação, quase que por virar o jogo, antes obediente, agora dita as regras da situação, podem ter despertado a “fera” adormecida quando viu ali uma oportunidade de para além de defender seu território, exercer força, domínio, violência, subjugar o próximo, acuá-lo, como um felino que brinca com sua presa antes de matá-la e devorá-la.
Antes do assalto, Inácio expressa caras e bocas diante de um espelho, na tentativa de sustentar um semblante de homem fino, exigente, controlador (inclusive, há uma passagem ao telefone em que ele demonstra tal comportamento ao dialogar com sua esposa). Ele faz ensaios, forja sua máscara social enquanto artifício para transitar nos mais diversos ambientes que exigem cordialidade, gentileza, compostura.
Será que ser dono do restaurante, aos olhos da sociedade, um empresário bem-sucedido, seria o caminho encontrado por Inácio para conter seus mais bestiais desejos? Afinal, quando os assaltantes adentraram em seu estabelecimento, em momento algum quis chamar a polícia, ou seja, uma ajuda externa. Ele mesmo reuniu toda sua ira para afrontar aquelas pessoas e defender sua propriedade. Ali, sob o pretexto de ser roubado, permitiu revelar sua selvageria e brutalidade. O horror irrompeu naquela figura humana.
Talvez o filme queira nos dizer que qualquer pessoa pode se tornar um assassino em potencial, um lado obscuro habita em todos nós. Para longe de qualquer hipocrisia. No entanto, como é impossível tal comportamento para vivermos em comunidade, talvez só nos restaria a morte. O desfecho da película parece apontar isso. Inácio, a fera, é morto. Para a garçonete, ter dominado aquele cenário grotesco ocorrido no restaurante já não bastava, era preciso incorporar Inácio para si, num movimento que mescla o prazer de preparar um suculento prato, com a morbidez de tornar aquele corpo, meros retalhos. Sara, a deusa Ammit, devoradora de almas, encerra seu ato de maneira memorável.
Bruna Rosalem e Marcus Hemerly
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