Celso Lungaretti: 'O IMIGRANTE INJUSTIÇADO E O ARTISTA DOMESTICADO'

 Celso Lungaretti: TENHO UM ANTEPASSADO ILUSTRE: ANGELO LONGARETTI, QUE MATOU O TRUCULENTO IRMÃO DO PRESIDENTE CAMPOS SALLES

 

Italianos posando no pátio central da Hospedaria dos Imigrantes, por volta de 1890.

Minha família é a mais prosaica possível, gente com ambições meramente materiais, cujo ramo italiano jamais saiu do anonimato e cujo ramo brasileiro nunca almejou voos mais altos, tendendo a passar despercebido se duas moedas não houvessem caído em pé:

  • um jovem de 20 anos matou em 1900 o truculento irmão de um presidente da República; e
  • um jovem de 18 anos participou em 1969/70 da luta armada contra a ditadura militar.

Como continuo vivo e ativo, a parte que me cabe nesse latifúndio é mais conhecida. Falemos, portanto, da outra, até porque encontrei na internet uma ótima dissertação de mestrado sobre o episódio de 1900 e anos seguintes, um dos mais marcantes dos abusos cometidos na patriamada contra os imigrantes italianos, cuja íntegra pode ser acessada aqui. Trata-se de O caso Longaretti: crime, cotidiano e imigração no interior paulista, de autoria de Christiano Eduardo Ferreira.

Uma lembrança remota da minha meninice é a do meu pai e meu tio comentando a morte deste antepassado ilustre, Angelo Longaretti (1). Circulava de mão em mão a notícia publicada no jornal italiano Corrieri della Sera.

Atraído pelas promessas dos fazendeiros brasileiros, que mandavam recrutadores à Itália oferecendo viagem gratuita, Angelo veio trabalhar na lavoura cafeeira.

Raul Salles, filho do fazendeiro Diogo Eugênio Salles, assediou a irmã de Angelo. Este tentou transferir-se com a família para outra fazenda, mas Raul fez com que fossem rejeitados. E ainda persuadiu o delegado de Analândia a prender Angelo por embriaguez.

Quando o soltaram, no dia 3 de outubro de 1900, Diogo e Raul vieram com seus capangas para expulsarem os Longaretti da fazenda, deixando de pagar-lhes os 2 mil réis a que tinham direito por seu trabalho. O idoso Francisco, pai de Angelo, disse que não sairiam. Diogo o agarrou e  sacudiu, atirando-o no chão.

Angelo, vendo o velho desmaiado, supôs que estivesse morto. Ficou transtornado; foi buscar uma garrucha enferrujada (2) e baleou Diogo. Por um capricho do destino, o disparo, apesar de impreciso, acabou sendo letal.

Seguiu-se uma série de descalabros, como as intimidações policiais a habitantes de Analândia para que depusessem contra Angelo.

Este evadira-se, mas acabou sendo detido em 18 de maio de 1901, delatado por um compatriota de olho na recompensa oferecida por sua prisão.

No processo não foi levada em conta a minoridade do réu (Angelo ainda não completara 21 anos) nem o juiz providenciou tradutor para ele e as testemunhas da defesa que não falavam bem o português. E foram relevadas várias contradições dos acusadores.

O falecido era irmão do quarto presidente da República do Brasil, Campos Sales, que cogitou até efetuar uma tentativa de instauração da pena de morte, com efeito retroativo (!), para que pudesse ser aplicada nesse caso; mas, foi dissuadido pela Inglaterra, que lhe fez ver quão aberrante seria a iniciativa, em termos jurídicos.

O governo italiano, supondo tratar-se de mais um anarquista, não deu a mínima. Angelo foi, entretanto, fortemente apoiado pela colônia, que até se cotizou para pagar-lhe um advogado famoso. Isto não impediu sua condenação a 21 anos de reclusão.

Num segundo julgamento a pena diminuiu para 10 anos. Acabou cumprindo sete anos e meio e sendo libertado por decisão do Supremo Tribunal Federal; com Campos Salles fora do poder, a justiça pôde, finalmente, prevalecer. Voltou à Itália, onde levou vida tranquila até a morte, em 1960.

  1. o sobrenome familiar correto é Longaretti, mas meu pai foi registrado equivocadamente como Lungaretti (o escrivão não entendeu a pronúncia italianada) e eu herdei o erro;
  2. a qual, curiosamente, lhe fora entregue há tempos pelo próprio Raul, em substituição a um pagamento.

 

QUEM NASCE PARA BOB ZIMMERMAN
NUNCA CHEGA A DYLAN THOMAS


O poeta galês Dylan Thomas, inconformado com a aceitação do Prêmio Nobel de Literatura por parte de Bob Dylan, mandou-lhe este recado do além: 

“Sr. Zimmerman, peço-lhe que pare de fazer alusão a mim no seu nome artístico, pois o que tal homenagem agora me causa é constrangimento. Nunca escrevi para deslumbrar acadêmicos. 

Lembro-me de uma canção do início de sua carreira, em que dois versos me chamaram a atenção: ‘Quantas orelhas um homem precisará ter / para que ele possa ouvir o povo chorando?’.

Tive, naquele momento, esperança de que viesse a ser um artista de verdade. Infelizmente, o povo hoje chora como nunca, mas o sr. nem tenta mais escutá-lo. Agora seu lado é o dos jubilosos paparicados pelo sistema, aqueles para quem a vida é sempre uma festa.

O desgosto que sua tibieza me causou foi tamanho que, se eu já não estivesse morto, beberia outras 18 doses de uísque!”

Falou e disse.

Por que o agraciaram, afinal? Por não compor mais canções como esta?


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