Estômago – Uma viagem pelos apetites, impulsos e fantasias
COLUNA CINEMA E PSICANÁLISE
Marcus Hemerly e Bruna Rosalem:
‘Estômago – Uma viagem pelos apetites, impulsos e fantasias’
“A fome é eterna, como a vida e como a morte”.
Machado de Assis
A interação entre indivíduo e seu espaço de vivência já foi tratada de forma recorrente no simulacro das artes. Não raro, o ambiente atua como um personagem coadjuvante que realça as experiências do main character, seja no ponto de intensidade, seja numa provação que delineia um entendimento de si próprio como uma engrenagem a seu derredor. No neorealismo italiano, a abordagem focada na pessoa, realça o matiz dramático impresso pelo cenário; a trilogia dos apartamentos de Roman Polanski tem sua aura de morbidez e insânia a partir dos lúgubres prédios que atuam como pano de fundo, formando um exemplo de densidade quase palpável daquela interação.
Na história do cinema nacional, o viés existencial a partir dessa abordagem foi tratado com peculiar sensibilidade nas obras de Walter Hugo Khouri, muitas vezes comparado ao sueco Ingmar Bergman.
O espectro, repise-se, de coadjuvação do ambiente como uma ferramenta narrativa já foi utilizado belissimamente, inclusive com uma fotografia melancólica e azulada, no cult ‘Cidade Oculta’, (1986), no qual a urbe parece quase voluntariamente guiar as peças de sua engrenagem rumo ao clímax da ação.
No filme ‘Estômago’, de 2007, Nonato, (João Miguel) é um migrante nordestino que chega à cidade de São Paulo como muitos outros desde a explosão industrial dos anos 50 e 60, onde descobre um talento nato pela culinária, inicialmente, trabalhando como cozinheiro em um bar, sendo então descoberto pelo dono de um renomado restaurante. Sua história é contada de forma não linear a partir de uma cela na prisão.
O porquê de sua segregação e o percurso até seu derradeiro destino é intercalado pelo rememorar de descobertas na metrópole, incluindo um dúbio e idealizado relacionamento com a prostituta Íria, interpretada por Fabiula Nascimento. O tom de ingenuidade e quase pureza de Nonato é aos poucos confrontado com as intempéries e conflitos morais e circunstanciais no meio urbano, sempre impassível a seus habitantes naturais assim como os radicados.
A expressão “pegar pelo estômago” parece ser bem explorada nesta produção brasileira que evidencia a todo instante os prazeres e deleites proporcionados por uma refeição bem preparada. Raimundo Nonato, o cozinheiro, nos deixa claro que sabe o que está fazendo. Suas habilidades no preparo das refeições aprendidas, inicialmente, nos fundos de um bar fazendo coxinhas e afins, foi ganhando cada vez mais requintes de cozinha internacional.
Raimundo conhece os ingredientes, sabe como combiná-los no prato, parece ter o poder nas mãos ao misturar os alimentos e fazer surgir preparos “dos deuses”, exalando odores agradáveis, estimulantes na textura e no visual. Cores, formas, disposição, vibração. A refeição é convidativa, provocante, aguça aos olhos e a boca, se faz desejante, tudo o que se quer é devorá-la.
Uma voracidade ardente, muito bem vivenciada pela prostituta Íria, o grande amor de Raimundo. Ela expressa erotismo e sedução através da comilança. A pulsão oral evidenciada pelas cenas de grande prazer envolvendo o devorar das refeições e o ser devorada no ato sexual. Genuinamente, uma das pulsões que mais nos marca é a oral. Desde os primórdios do nascimento procuramos satisfazer a necessidade por alimento. Gradativamente, esta necessidade torna-se demanda de amor. Não buscamos apenas saciar a fome, o que desejamos mesmo é o toque da pele, o afago, o calor, o acalento, a segurança de estar sendo cuidado e mais, os regozijos que este momento proporciona para o corpo e para a mente. Raimundo Nonato “pega pelo estômago” a todos a sua volta.
Ele conquista sabedoria, autonomia, ganhos financeiros melhores, e até arrisca um pedido de casamento a sua amada Íria que, através do cozinheiro, evidencia a boca enquanto zona erógena que a entorpece de prazer. Curiosamente, em alguns momentos do filme, o enquadramento parece focar em outro orifício. Seria algo provocativo do diretor ao sutilmente nos lembrar que “tudo que entra, sai?”. Afinal a analidade também é um fator discutível quando se trata de zonas erógenas, e, propositalmente ou não, tal provocação é induzida a cada foco de câmera, num rememorar conjunto dos “extremos do prazer” e a multitude de estímulos proporcionados pelo corpo e mente.
Certa vez Nonato ouve de seu chefe, dono do restaurante italiano onde trabalhava atualmente, que o filé mignon era como se fosse a nádega da mulher. A melhor parte para se comer. Enquanto ele descrevia este pedaço da carne, apontava a Nonato o lugar exato de onde retirar da peça do boi a verdadeira iguaria. Parece que esta informação fixou como tatuagem no imaginário de Nonato: carne, nádega, melhor parte.
O que acompanhamos nas cenas seguintes é a passagem da metáfora para a coisa em si: Nonato, literalmente, prepara a nádega de Íria como um prato principal. Inconformado com o que presencia numa noite, após sua amada não lhe dar notícias, vê uma das portas do restaurante entreaberta e ao adentrar o local, depara-se com um cenário indigesto: Iria e seu chefe em pleno romance regado a vinhos e muita fartura. Além desta infeliz visão, a prostituta que dizia a Raimundo nunca beijar seus clientes, enlaça sua língua ao do chefe, parecendo torná-la também parte daquela refeição.
Nonato então ceifa a vida daqueles dois traidores nos brindando com a icônica cena na cozinha fritando a iguaria. Na prisão, o cozinheiro passa a fazer verdadeiros milagres com os parcos alimentos ofertados aos presidiários, além da sujidade e imundície do local onde eram servidos. Notadamente, pelas suas habilidades e conhecimentos culinários passa a ser requisitado pelos colegas, conquistando espaço e prestígio. Mais uma vez a máxima “pegos pelo estômago” entra em cena e Raimundo vai ganhando cada vez mais respeito e admiração. Só restava um feito para que o cozinheiro ganhasse sua estrela: eliminar a chefia. Quase uma reprise do que havia feito outrora.
Em um banquete final preparado com muito cuidado e dedicação para os encarcerados, Raimundo Nonato coloca seu tempero especial pondo fim a quem o impedia de alcançar patamares maiores. Pelo estômago mata-se a fome, e também mata-se o corpo. O cozinheiro que antes só sabia fazer coxinhas, hoje desfruta, mesmo que nos limites da cadeia, de um peculiar sentimento de glória. Sua expressão final é de plena satisfação, nos deixando pistas para novos preparos.
O título foi redescoberto pela disponibilização nas plataformas de streaming, que vem servindo inclusive à popularização de filmes então esquecidos ou não destacados de forma merecida quando de seu lançamento, tal como a era das videolocadoras propiciava projeção a fitas cujo sucesso não havia sido expressivo nos cinemas. Recentemente, de forma reversa, uma importante realização nacional recebeu também novos ares a partir de seu relançamento nos cinemas após processo de restauração, ‘A Hora da Estrela’, adaptado da obra de Clarisse Lispector.
Assim como o protagonista, o olhar não fenecido pela dureza da cidade, mas ainda mantido intocado pela dureza da vida sem oportunidades, apresenta ao espectador a história de Macabéa, que de forma similar, é tocada pela indiferença e aspereza da cidade grande, que oferta a promessa ilusória de um aparentemente “dar de mãos” como amoroso receptáculo, mas que cerra os olhos à sorte de seus integrantes.
Tamanho o sucesso das reflexões paralelamente compostas à comicidade, que o longo ganha nova vida também com o lançamento da continuação, que estreia nos cinemas no dia 29 de agosto. Quais serão os novos sabores ou dissabores criados por Nonato?
Marcus Hemerly e Bruna Rosalem
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