Angelo Lourival Ricchetti: Continuação do livro que conta a história de uma família, desde 1400 até 2023. Ficção com base em documentos e narrativas de pessoas reais

Angelo Ricchetti Angelo Lourival Ricchetti:  Continuação do livro ‘DA ARTE DE SE CRIAR PONTES’ – 12ª PARTE

 

DÉCIMO SEGUNDO ‘PEDAÇO’ DO ROMANCE ‘DA ARTE DE SE CRIAR PONTES’
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Temendo fazer alguma besteira mudei-me de lá deixando a casa do Álvaro.
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(CONTINUAÇÃO)
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Cinthya chega e interrompe minha leitura. Está muito triste. Pergunto o que houve.
– Sabe aquele estudante que estava liderando o projeto pela USP? O Marco Antonio?
Faço que sim com a cabeça. Ela continua.
– Não o encontramos em nenhum lugar. Ele ficou de ir conosco para a sessão da Assembleia Estadual. O que será que aconteceu?
Eu não sei responder essa pergunta. Ela pega o seu celular e começa a ligar para todo mundo sobre o paradeiro do rapaz. Eu continuo a ler.
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(Continuação do vigésimo nono da história do Uth)
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Procurei em Jarinu uma casa para morarmos.
Indicaram-me uma chácara de um alqueire de um rapaz que trabalhava na Prefeitura. Chamava-se João Pedro. Não queria garantia ou qualquer coisa disse que confiava em mim.
Ficava mais perto de Jarinu. Até a Lucila com o Antonio e a Vera Maria iam a pé.
Eu achei falta dos bons vizinhos de Nova Trieste, do vinho do Brollo, do queijo e o leite da fazenda do Primo e os longos passeios a cavalo naqueles campos.
Levava o Antônio comigo. A égua Primavera fora vendida e logo teve um potrinho. Ela estava cm muita idade e morreu depois do parto. `
As galinhas, patos e perus foram também vendidos.
Troquei com uma égua, um cavalinho xucro.
Nesse lugar alugado do Sr. João Pedro, vinham nos visitar o Angelo e o José Eduardo que trabalhavam em São Paulo. Vinha um amigo do Angelo chamado Seixas.
As meninas da Vila Apareciam aos domingos para jogar bola e comer milho assado. Era uma festa para todos. A terra preparada e arada deu muitos pés de milho.
Nesse sitio vivemos muitos casos desagradáveis.
Um tal sujeito de apelido “Amor” começou a ter amizade conosco.
Um dia eu estava lendo um livro impróprio para menores e a filha dele pediu para lê-lo. Eu não deixei.
Mais tarde, eu e a Vera Maria, o Antônio e o Fernando, fomos visitar o tal do “Amor”. Logo de entrada na casa dele começou a nos agredir e atirou um tijolo que por pouco não atingiu o Fernando.
A filha me intrigara do modo dela e o homem estava uma fera.
Na hora pensei em matá-lo. Sempre pensei nas consequências e me contive.
Soube mais tarde que ele não era certo na cabeça.
No mesmo dia um vizinho nosso veio tirar satisfações porque eu havia prendido uns franguinhos dele.
Fui obrigado a fazer isso, pois eles vinham na minha plantação de milho acabavam com tudo que eu plantava.
O Angelo deixou o José Eduardo comigo, mas ele não quis ficar em Jarinu.
Arranjou emprego em Jundiaí e me levou com ele.
Já estava trabalhando alguns dias quando uma menina, amiga da Vera Maria, veio me contar que a nossa casa fora assaltada.
Estavam na casa a Lucila, a Vera Maria, o Antônio e o Manuel Fernando e era num sitio afastado da cidade.
Larguei o emprego e tomei o próximo ônibus para Jarinu.
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Vou até a faculdade ver se já estão marcadas as provas. Nada ainda. Volto a ler o texto do meu bisavô.
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A Lucila falou que passaram a noite em claro. Forçaram a porta, mas ela resistiu.
A cachorrinha que dormia dentro de casa latiu muito e os bandidos foram embora.
Fiquei com remorsos de ter abandonado a família e ir na prosa do José Eduardo.
A Vera Maria já havia terminado o Grupo Escolar e queria continuar os estudos, então mudamos para Jundiaí onde havia Ginásio.
 Conheci um tal Carmelo, que tinha um irmão em Jundiaí e ele pediu ao irmão que arranjasse uma casa para eu morar.
No mesmo dia encontramos uma casa de três cômodos.
Arrumei o caminhão para a mudança e no dia seguinte que era num sábado iríamos para Jundiaí.
Aconteceu que o Angelo, o amigo Seixas e um irmão menor dele, chegaram e ficaram assustados com tudo pronto para a mudança.
Contei o ocorrido (os ladrões).
O Seixas havia brincado com o irmão que em Jarinu estavam muitos índios e o menino queria conhecê-los.
O Angelo veio da pensão de São Paulo morar conosco. Estava a família reunida outra vez.
O caminhão para a mudança não apareceu no sábado, pois chovia muito. Veio no dia seguinte.
Deixei a roça de milho para o Sr. Carmelo negociar.
Na hora da partida o Sr. Jorge Zanutto me procurou dizendo que um fazendeiro queria que eu tomasse conta da fazenda dele. O ordenado era bom. Prometia até ajudar arranjando condução para Vera Maria fazer o Ginásio em Jundiaí.
Mas era tarde para tudo isso. Eu estava indo de mudança para a cidade de Jundiaí.
A Lucila não queria morar em sitio nem fazenda. Queria morar na cidade.
Assim fomos morar na Vila Agapeama.
Em Jundiaí morava um primo da Lucila. Chamava-se Jorge. Ele me apresentou para o diretor do Ginásio.
O José Eduardo foi fazer Contabilidade e a Vera Maria começou o Ginásio. Tudo de graça.
Minha mãe, todos os meses, mandava quatro contos de reis.
O diretor ficou meu amigo e me arrumou um emprego na fabrica das maquinas Vigorelli.
Logo sai. Vi muitas injustiças lá. Quando os empregados erravam uma peça o prejuízo era descontado no ordenado deles.
Estava desempregado outra vez.
Esperando sempre pelo emprego da Prefeitura de São Paulo (Capital).
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Estou lendo o texto do Uth sem reparar que a noite já se foi e já é dia. Fico preocupado. Hoje à tarde tenho de estar na Assembleia Legislativa. Minha namorada não vai admitir que eu pegue no sono durante a apresentação do projeto.
Parece que não tive dúvidas e não senti necessidade de fazer comentário neste trecho. A impressão que fica é que o bisavô Uth e todos que foram morar com ele em Jarinu e depois em Jundiai foram muito felizes, mesmo com muita dificuldade de dinheiro. O Uth lidera a família o tempo todo. Ficou diferente do que era em São Manuel. Talvez tenha amadurecido.
Ele havia sido criado desde muito cedo como um mascote da banda de música do pai maestro. Morto o pai, a sua mãe cuida de tudo para ele a ponto dele se sentir asfixiado. Ele constitui família e tenta fazer o melhor possível, dentro de suas condições físicas e psicológicas.
Lembra um judeu errante. Aluga uma casa atrás da outra, muda-se de cidade para outra cidade. Tenta viver como sitiante, talvez seu maior sonho, não recusa trabalho depreciativo, vai trabalhar em fábrica, sempre aguardando um emprego como funcionário público.
Não vou perguntar nada ao Lolou. A Cinthya não tem lido, mas parece que nas férias vai tirar o atraso e ler tudo. Ela é outra que vai fazer perguntas e querer saber também do vô Lolou.
Acordo com a minha namorada me sacudindo. Peguei no sono sem perceber. O micro estava caído no chão.
– Dormindo até agora, preguiçoso! Vamos nos aprontar para ir à Assembleia. Fiz um almoço rápido! Já tomar banho, se aprontar, fazer a barba e almoçar.
Cinthya é como um sargento de tropa. Dá ordens, organiza tudo, assume a liderança e não aceita sugestão ou perguntas. Lá vou eu.
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Chegando à Assembleia do Estado de São Paulo com Cinthya muito bem vestida, eu, de terno e gravata e antes de entrar, procuramos pelo pessoal da USP-ECA, da Prefeitura de Itapetininga, da Associação dos Municípios do Estado de São Paulo. Não encontramos. Minha namorada se preocupa e se dirige à Portaria:
– Por favor, minha Senhora, sabe se já chegou o pessoal do interior que vem assistir a esta Sessão Especial?
A Senhora remexe seus papeis e responde sorrindo:
– Já entraram no prédio.
Cinthya me puxa pelo braço até a porta que dá acesso ao auditório. Os seguranças pedem nossas cédulas de entidades, buscam na lista de convidados e nos deixam entrar. Logo avisto o pessoal de Itapelinda e eles também. Vamos o encontro deles. Todos estão com o traje adequado, até o Vovô Lolou, em um terno bonito, camisa clara, gravata azul. Nos abraçamos, dizemos palavras cerimoniais, estamos todos sentindo o clima dessa local no qual o povo residente no Estado de São se faz representar pelos seus deputados.
– Lolou, que terno elegante, diz a minha namorada.
– Pensei que ia servir apenas para ser enterrado com ele quando fosse o momento propício. Eu comprei para usar na posse da Academia Itapetiningana de Letras. Ele sorri, brincando.
Chegam os colegas do USP que participaram do projeto, mas que serão representados pela Reitoria. O amigo da Cinthya, o Marco Antonio, chega perto dela, a abraça, sorrindo e depois percebe minha presença, aperta forte minhas mãos e diz:
– Durante a parte cerimonial não haverá pedidos de perguntas dos Deputados e das pessoas no Auditório. Depois sim é aberto o debate e todos nós e o pessoal de Itapelinda poderá ser questionado.
– O que houve com você que ninguém o encontrava? Ele fica sério e fala baixinho para ninguém ouvir, mas e ouço.
– Fui procurado por umas pessoas que não conheço e levado a um escritório para falar com uma senhora que devia ser a gerente. Ela me avisou para não vir até aqui hoje. Perguntei por que e ela deu uma gargalhada e disse que era bom para a minha saúde. Fiquei apavorado. Procuram me ter o máximo possível, mas quando se descuidaram eu conseguir fugir.
Cinthya o abraça bem forte e me chama para entrar no Auditório.
Há muitas pessoas lotando já o Auditório quando entram os deputados e o Presidente da Casa, como é anunciado que convida a todos a receber os convidados especiais. Isto é, a Reitoria da USP, o Presidente da Associação dos Municípios, o Prefeito e Presidente da Câmara de Itapetininga, que logo ocupam os lugares demarcados.
O Presidente declara aberta a Sessão Especial e convida a todos para se levantarem para ouvir o Hino do Estado de São Paulo. Todos ficam de pé, em posição de sentido. Ao final do Hino há uma salva de palmas e todos se sentam novamente.
O Presidente diz algumas palavras e convida a Reitora da USP para a apresentação do projeto. O nome do amigo da Cinthya é citado, bem como o professor que permitiu a feitura do projeto, os professores que aprovaram e estão sentados nos Auditório.
Com muita ênfase é feita a exposição, acompanhada de vídeos, projeções, solicitação para que o Governador do Estado aprove a aplicação do projeto na própria USP.
A seguir o Presidente lê a recomendação aprovada por parte dos Deputados de que os próprios Executivos e Judiciários propiciem, se julgar conveniente, apoio à divulgação do projeto e, no que couber, determina a execução das partes que couberem em seus órgãos.
Ele anuncia então a abertura do debate com todos os presentes sobre o projeto Munícipio Saudável, podendo serem feitas perguntas por todos e respondidas por quem se achar em condições.
Aberto o debate um dos deputados pede a palavra e inicia a discussão dizendo que não se pode colocar em prática um mero projeto, mesmo que feito e aprovado por uma entidade como a USP.
O prefeito de Itapelinda pede a palavra para responder e diz como está no momento a prática do projeto no seu Município. Aproveita para exibir vídeos, textos, para mostrar o avanço da execução. Levanta argumentos a favor do projeto dizendo para não se esquecer de que temos falta de petróleo, falta de água e falta de energia. Além do mais há que se considerar não apenas a economia, mas também as formas de vida que respeitem a vida como, por exemplo, o parto natural, as tradições rurais e urbanas, a vida em comum de antigamente. Conhecer o envenenamento das pessoas e animais pelo uso dos agrotóxicos que também vai para os lençóis freáticos, rios, mares. A luta contra os transgênicos é uma luta necessária.
Quando começa uma verdadeira briga verbal entre os que apoiavam e os que combatiam o projeto eu disse para minha namorada que ia sair por não estar me sentindo bem.
– Tudo bem, fique um pouco ao ar livre e depois volte se sentir melhor. Ou então fique lá fora e nos encontramos na saída.
Saio já folgando o laço da gravata. Essa discussão vai muito longe. Há muitos interesses contrariados. Por outro lado os que estão aplicando esse projeto não tem base teórica de sustentação de seus pontos de vista. Fico me sentindo estranho por pensar em “base teórica”! Será que minha mente está sendo condicionada por pensamentos acadêmicos? Resolvo sair do prédio e ir até uma banca que vende cachorro quente do lado de fora. Quando vou fazer o pedido, paro a tempo. Não é saudável. O moço da banca me pergunta o que eu desejo.
– Me dá um refrigerante…! Mas logo corrijo e peço uma garrafa de água mineral. Ai ai agora percebo que não é uma simples mudança de comportamento. É mais que isso.
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Preciso de um café. Como não dormi estou sonolento. Entro no prédio de novo e pergunto pela cantina. A atendente me diz como chegar lá.
Peço um café sem açúcar, mesmo com o espanto do moço, ele me serve assim mesmo.
De pé, do lado do balcão está um senhor bem vestido falando em Inglês. Sei alguma coisa dessa língua e tento entender. Traduzo, mais ou menos, o que entendi.
Ele diz a um deputado que o ouve atentamente, que essas idéias apresentadas não devem prosperar. Que os Estados Unidos se fez forte vendendo produtos que agradam as pessoas e não, necessariamente, que sejam saudáveis.
Sei que é um deputado porque a moça do balcão pergunta se ele quer mais alguma coisa.
O senhor bem vestido continua a justificar não mexer em nada. Se as pessoas não ficarem doentes, o que será dos médicos, dos hospitais, dos medicamentos, etc?
Que as pessoas precisam ser livres para comprarem o que desejam e não serem condicionadas para comprar ou não tal produto.
Saio de perto. Não devo me dar ao luxo de discutir.
Creio que no fundo eu já sabia que o projeto e o que está sendo aplicado em Itapetininga, não irão para frente.
Talvez o Lolou tenha razão. Essa publicidade vai alertar aos que lucram com tudo que não é bom em municípios saudáveis para se organizarem e derrotarem essa iniciativa. Eles têm dinheiro e vão investir pesado em ciência para comprar que a saúde não é prejudicada pelos produtos consumidos pela população.
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Espero a saída das pessoas do Auditório. Como são muitas pessoas fico com medo de não encontrar a Cinthya e o Lolou. Quero despedir dele antes de embarcar com o pessoal de Itapelinda.
A Cinthya me vê de longe e acena para mim. Vou ao encontro deles. Ela, entusiasmada, me conta o desfecho:
– O presidente da Assembleia resolveu encerrar o debate a sessão quando percebeu que para cada pessoa que atacava o projeto outra defendia.
Uma nutricionista, por exemplo, dizia que a proteína animal não pode faltar na alimentação humana e outra nutricionista dizia que isso não era científico, era tabu.
Médico contra médico, presidente dos supermercados contra pequenos negociantes, pessoa da Federação da Agricultura dizendo que o Brasil é o maior exportador de carnes e de produtos agrícolas e um projeto assim vai impedir essa produção que o país precisa com reflexos negativos para a economia brasileira, outra pessoa ligada às associações em defesa dos animais gritava contra ele, e assim por diante. Um caos o debate.
– E terminou assim?
– A proposta dele para encerrar a sessão foi pedir aos deputados que formem comissões para estudar bem o assunto, inclusive com contatos com especialistas, catedráticos, entidades e assim por diante. Quase que houve empate, mas os deputados aprovaram a proposta. Disse que vai enviar ofício à Reitoria da USP pedindo estudos mais apurados sobre o que foi dito no projeto.
Lolou se aproxima de mim:
– Eu avisei que ia ser um desastre, mas ninguém me ouviu!
– Lolou, amanhã quero falar sobre o isso tudo e o que li do Uth. Tudo bem?
– Fique a vontade, Kainã.
Olho meu avô bem nos olhos. Parece que ele está certo. Ainda está tudo muito no começo. Dou um abraço forte nele.
Nos despedimos uns dos outros e fui para o apartamento na USP com a Cinthya. Não via a hora de cair na cama e dormir tudo que pudesse.
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Dormi feito uma pedra. Foram seis horas de sono no mesmo lugar. Do jeito que deitei acordei.
Tomando café com minha namorada comento sobre o dia anterior. Pergunto:
– O que houve com o seu amigo?
– Kai, estou bem preocupada. O Antonio Carlos sofreu uma espécie de sequestro, mas não vamos fazer nada a respeito.
– Claro que temos de fazer. Tenho conhecimento na polícia. Vou ligar.
Ela não me deixa pegar o celular e me empurra. Caio no chão.
– Não vamos fazer nada por enquanto. Vamos ver o que vai acontecer.
Eu me levanto. Afinal é amigo dela. Mudo de assunto.
– Eu imaginei que o vô ia ficar chateado com os apartes que começaram sobre a idéia que ele teve de um Município Saudável, porém ele parecia até estar contente com o resultado.
– Se a discussão levantou pontos importantes e poderia se pensar que o pessoal de Itapetininga deveria ter pensado melhor, o resultado foi ótimo porque agora tudo que se pensou vai ter um fundamento científico.
– Mas esse fundamento pode derrubar o projeto!
– Oh Kai por que pensa isso?
– O método cientifico parte de hipóteses de trabalho, isto é, provisórias e podem revelar que a hipótese inicial é falsa, não cientifica!
– Que seja isso feito! Se houve verdades serão reveladas por outro lado. Kai tem alguém chamando no seu celular. Atende logo que não aguento essa música tola que você colocou nele.
Eu me levanto e vou até o quarto e vejo quem me chama no celular, não é outro senão o Lolou:
– Preciso pedir um favor a você.
– Qual?
– Que você ou a Cinthya acompanhe os estudos que serão feitos no projeto para eu passar para o povo aqui em Itapê.
– Combinado. Outra coisa, eu li mais um pouco do texto do seu pai.
– E dai?
– Você morou longe deles um tempo, mas depois voltou e foi morar com ele em Jundiai, certo?
– Corresponde à verdade sim.
– Então quando puder me conta o que fez quando morava sozinho.
– Depois mando um e-mail sobre isso. Vou desligar. Custa caro essas ligações.
Ele desliga e eu também. Como tenho ainda duas horas vou ler mais sobre o Uth. Estou curioso para saber como continua.
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(Trigésimo texto do Uth Ricchetti)
O dinheiro de São Manuel não havia chegado e o domingo de Páscoa estava perto.
A Vera Maria, o Antônio e eu tínhamos ido à missa e na volta sentimos o cheiro gostoso de carnes assadas. Eles diziam:
– Que cheirinho bom, não pai?
Em casa só havia arroz e feijão.
Na parede uma folhinha do ano (1955), mostrando um leitão assado e um limão na boca. Eu disse às crianças, brincando:
 – Olhem a folhinha e comam o que temos.
No meu coração a dor era grande.
Em minha infância sempre tive a maior fartura. Não posso ver uma criança passando fome, lembro sempre dos meus filhos naquela época.
Indo a São Paulo (Capital), procurei o meu irmão Henrique (era Secretário da Educação da Prefeitura).
Ele arrumou emprego. Pediu ao prefeito Waldomiro Pisa. Ia trabalhar na seção das Finanças, como Fiscal de Ambulantes. Ia de Jundiaí à capital todos os dias.
Nossa vida começou a melhorar. O José Eduardo saiu da fabrica e começou a trabalhar num armazém perto de casa.
O Angelo cansou de viajar todos os dias e foi para São Paulo morar numa pensão.
Ele gostava de ir ao teatro. O ultimo trem para Jundiaí saia de São Paulo às 11 horas da noite e não dava para ele tomar quando ia ao teatro que terminava muito tarde.
Aos sábados vinha passar os domingos conosco.
Mudando para Jundiaí conhecemos o irmão do Carmelo, chamava-se Angelo, mas era tratado por Angelim.
Tinha um deposito de bananas. Era analfabeto.
Comprava um caminhão de bananas por 800 cruzeiros e vendia as bananas nessa base. Daí tirava o sustento da família.
Não havia lucro, nem dinheiro para novas compras. Emprestava dinheiro para comprar outro caminhão de banana e nada de lucro.
O Angelim tinha três filhos e vivia sempre devendo e as crianças na maior necessidade.
A mulher dele pediu para eu tomar conta dos negócios dele.
Vi que não dava lucro com o modo como ele fazia. Aumentei o preço das bananas. Paguei as dividas. Acabei com o deposito de bananas e arrumei a ele um emprego na Prefeitura de Jundiaí onde meu amigo Guido Canella era feitor.
No Natal, o Angelo, o José Eduardo e eu compramos presentes para as crianças do Angelim e mantimentos para o Natal.
O Angelim ficou bravo, falou que os meninos iam ficar viciados com essas coisas.
Hoje eles estão bem de vida. Tem casa própria e a caçula estudou. Faz viagem de recreio nas férias. Quando estivemos em Jundiaí fizeram questão de fazer banquete para nós dois, eu e a Lucila.
Estando vivendo em Jundiaí, na vila Agapeama, aconteceu de alugarmos uma casa em frente a uma chácara.
A chácara pertencia a um sargento da Força Pública. Um casal de mineiros morava lá e tomavam conta de tudo.
O rapaz trabalhava no Correio e a mulher tomava conta dos filhos e da direção da chácara.
Logo fizemos amizade.
Como o marido, às vezes, trabalhava até de noite, ela ia ficar conosco até a chegada dele.
Durante o dia apareceu um preto na chácara e queria ficar por lá. A mulher, com medo, pediu para ficar em casa.
Logo que o marido chegou do serviço eles foram para chácara.
Dona Aparecida, era o nome da mineira, voltou correndo e pedindo socorro. O tal negro estava lá.
O marido estava na entrada da chácara tremendo tanto que não conseguia carregar a espingarda que trazia sempre consigo.
Tirei a arma dele, carreguei e fui enfrentar o preto. Ele foi para fora da chácara sem fazer resistência.
Tudo bem, só que mais tarde quase perdi a vida por esse fato.
Eu trabalhava em São Paulo e tomava o trem das 19 horas, chegando a Jundiaí às 20 horas.
Vindo para casa, teria que passar por uma rua escura.
Percebi um vulto perto de um muro. Era o negro. Ele pulou em mim com uma faca. Como eu era moço e conhecia alguns golpes de judô ele só conseguiu rasgar meu paletó.
Um moço que passava por ali me ajudou a agarrar o negro e levá-lo para a cadeia.
Por esse arrojo eu quase morri e por cima de tudo o mineiro ficou com raiva de mim. A mulher dele havia o chamado de covarde por não enfrentar o intruso.
O meu filho José Eduardo trabalhava em São Paulo e aos domingos vinha para Jundiaí.
Logo apareceu dizendo que o primo Angelo Henrique possuía uma casa em São Miguel Paulista na Vila Rosário.
Nos mudamos para lá debaixo de muita chuva. O Angelo veio junto com o caminhão.
Eu, Lucila, Antônio e o Fernando fomos de trem e depois de ônibus.
A Vera Maria ficou em Jundiaí, na casa de uma das amigas. Queria ficar para terminar o ano ginasial.
Logo ao chegarmos, tomamos muita chuva. O lugar não tinha luz na rua nem calçamento.
Começamos outra vez nossa vida, agora no bairro de São Miguel Paulista, na capital do Estado de São Paulo.
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Recebo um e-mail do Lolou contando sobre o que havia pedido:
– Como você deve ter percebido, meu pai faz de tudo para manter a família unida.
Por isso você vai ler que ora estou morando sozinho, ora eu estou com eles.
Meu pai sofre com a falta de recursos financeiros. Sua mãe adianta para ele parte da herança e sempre vem um dinheiro mensalmente.
Eu ajudo como posso, mas ganho muito pouco. Para você ter uma ideia, o quarto em que fui morar quando sai da casa da minha tia Linda custava 100 cruzeiros ao mês e eu ganhava duzentos reais como Office boy.
Por falar nesse quarto preciso contar o susto que passei na primeira noite nele. No quarto somente cabiam quatro camas, duas e duas, e a porta, não havia janelas. Tinha de guardar meus objetos pessoas na mala embaixo da cama. Fui me deitar, cansado e ansioso, lá pelas 19 horas.
Pouco depois chegou uma pessoa com sotaque de Portugal me dizendo boa noite. Sentou-se em sua cama, deu de costas para mim e parecia que contava dinheiro e guardava em uma bolsa embaixo da cama.
Nesse momento entrou uma figura muito estranha acompanhado de um homem muito forte com sotaque castelhano. A figura era diferente de tudo que eu já havia visto: tirou a camisa e tudo nele, do rosto até os pés não tinha nenhum pelo. Ele sorrindo se apresentou e disse que os dois trabalhavam no Mercado Municipal como carregadores. De fato era perto dessa pensão.
No dia seguinte acordei e estava só. Todos já haviam saído. Fui tomar o café com pão (só isso mesmo!) e fui a pé para a Mesbla.
Ao final do dia voltei e fui jantar. Mas não se podia chamar de janta aquele arroz duro, grudento, o feijão aguado e uma carne cheia de nervuras. Comecei assim minha vida de morar sozinho.
Depois desse aluguel nesse quarto, para economizar encontrei um corredor, um cortiço na verdade, com várias “casas” de um cômodo feitas de madeiras e zinco no teto, havia apenas uma cama, mas não podia reclamar porque custava menos, ou seja, oitenta cruzeiros. Tomava um café com pão em um bar de esquina da Praça da Sé.
O terceiro lugar para moradia já foi bem melhor. Meu irmão José Eduardo havia encontrado um pensionato de família mineira que servir café, almoço e jantar, além de camas. A comida era muito boa. Lá tinha como colega de quarto um moço mineiro que era hábil no idioma japonês e inclusive dava aulas dessa língua estranha.
Ficamos os dois irmãos muito doentes por haver golpes de vento no quarto. Com febre, garganta irritada e prostrados no quarto, fomos descobertos por meu pai que nos levou a morar com ele em Jundiai.
Eu ia de trem da Companhia Paulista de Jundiai até São Paulo, Estação da Luz e dai para o emprego. O trem seguia até Santos e cheguei a fazer essa viagem.
Era tudo um mundo novo tão diferente de nossa vidinha em São Manuel.
O trem era tão bom que os homens, indo para São Paulo, faziam a barba nos banheiros do trem e não se cortavam. Também eram hábeis com o aparelho de barba, é claro.
Tudo isso, desde a saída de São Manuel não havida durado mais que um ano.
Agora eu paro aqui Kainã e peço não se esquecer de mandar informações sobre o estudo do projeto da USP-ECA.
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Ele não me falou nada das aventuras do meu bisavô Uth como o negro que o atacou e ele se defendeu bem. Talvez nem lembre bem das leituras que fez desses textos há dez anos.
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Estão chegando as férias de fim de ano. Minha namorada insinua que gostaria de passar alguns dias em Itapelinda para acompanhar como vão as atividades do nascente Município Saudável.
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Fiz as provas finais do semestre. Pareceu que fui bem. A Cinthya me diz que tudo foi muito fácil. Ela é bem inteligente. Vou ler mais algum texto do pai do Lolou. Quando estiver em Itapetininga vou pedir para ele me contar. Muita coisa fica sem explicações no texto.
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(Trigésimo primeiro texto do Uth)
A Vila era habitada na maior parte por estrangeiros, havia só alguns brasileiros.
O vizinho da esquerda chamava-se Senhor Neves e a mulher Dona Emília. Tinham um casal de filhos. A moça chamava-se Rosa e o menino, Manuel (Cuca). Haviam nascido todos em Portugal. A Rosa estudava programação de computadores de grande porte.
À direita da nossa casa uns pernambucanos. A mulher, Dona Santa. Um dos filhos deu-me trabalho. O Zelito bebia demais.
São Miguel Paulista era muito perigoso.
Os nortistas viviam brigando entre eles, porem, nos respeitavam muito e ficamos amigos.
Os moradores da Vila Rosária, principalmente os estrangeiros, eram bebedores e intrigantes. Faziam as festas, bebiam muito e brigavam. Fomos convidados para uma de suas festas, mas não participamos porque o ambiente não era bom para nós.
Quiseram colocar luz elétrica na rua, sendo que cada semana a ligação partiria de uma das casas.
Não deu certo, porque a Companhia soube e acabou com tudo.
Não demorou muito e houve a instalação pela (Companhia) Força e Luz em toda a vila.
Sofremos muito com a transformação da terra em barro, nos dias de chuvas. A roupa para lavar ficava difícil, os sapatos enlameados.
Enfim tudo passou.
Nas férias da Vera Maria eu fui buscá-la em Judiai, para ela continuar os estudos em São Miguel.
Na Vila Rosária, tivemos muito desgosto.
As mulheres tinham ciúmes da nossa união. Começaram fazer intriga com o meu nome.
Logo afastei de suas amizades.