Élcio Mario Pinto: conto 'Uma lente de Natal'
Élcio Mario Pinto: ‘UMA LENTE DE NATAL’
Quando o homem me disse para ver a imagem que sua lente mostrava, senti uma espécie de tremedeira interna. É o que acontece quando as emoções fazem o coração bater mais depressa. Já me disseram que é assim que o corpo se prepara para alguma emergência: evitar o perigo e correr.
Mas, qual nada, pensei comigo. Desta vez, nada de desembestar, porque ao mesmo tempo que as emoções me faziam tremer, a cabeça dizia para compreender.
O que haveria ali, naquela simples lente, para ser compreendido numa época repleta de significados como o Natal?
Pensando em responder, disse a ele:
– Pois é o que lhe digo, senhor Rangel. Não sei explicar direito o que me acontece. Só sei que quando o tal de dezembro começa, sinto-me outra pessoa. Não que eu seja supersticioso. Longe de mim tal coisa. E sem dar a mão à palmatória, assumo e o faço agora: deve existir algum tipo de magia do Bem no tal dezembro de Natal!
O homem me olhou com sorriso, diferente de quem acredita e se ofende se o outro diz não crer nas mesmas coisas e na mesma medida.
Foi naquele momento que entendi que o senhor Rangel não queria me convencer de coisa alguma, mas fazia questão de me dizer de suas crenças, ou melhor, me mostrar como é que as coisas aconteciam a ele, pela sua Lente.
– O que pode ver em minha mão?
– Vejo uma lente, nada mais.
– Algum tipo especial?
– Pelo que vejo, nenhum tipo que mereça um título assim.
– E se nela tal coisa existisse?
– Do que é que o senhor me fala?
– Digo de alguma coisa mais do que especial neste círculo transparente que uso para ver as coisas.
– Que coisas?
– A maior de todas: o tempo, meu amigo, o tempo!
– Não me diga que tal é possível?
– Se não devo dizer, então, por respeito ao amigo, eu não digo.
– Não, não, não! É só um modo de falar. Na verdade, quero, ou melhor, peço, com todo o meu desejo e com toda a minha vontade, diga-me, por favor: do que se trata?
– Sendo assim, então, sente-se aqui e enquanto seus ouvidos se atentam para o que digo, seus olhos contemplam o que mostro.
– Existe algo de poesia nisso.
– Sempre! Poesia existe como existe o ar respirado, aquele que desafoga a Terra e não sufoca as criaturas. Ar e poesia participam desta Lente como fazem o Natal ser o que ele é e poucos conseguem ver.
– Ver pela lente ou pela poesia?
– Para responder, digo-lhe: veja com seus olhos…
Com novo susto a tremedeira voltou e desta vez, até minha boca tremia de emoção. A tal Lente do senhor Rangel fazia a magia do Natal mostrar tempos diferentes e distantes. Nela, ora o presente estava todo realçado, ora, o passado aparecia e se sobrepunha ao presente. E eu, todo confuso, perguntei:
– É algum tipo de imagem em três dimensões, o famoso 3D?
– De forma alguma!
– Mas, então, o que é que isso significa?
– Diga-me o que pode ver que digo seu significado.
– Vejo uma nítida imagem do presente. Mas, quando coloco sua Lente, as cores ficam mais vivas, brilham e parecem ter movimento próprio; vejo que tudo se multiplica em significados. E, mesmo não conseguindo compreender todos eles, não me afobo, não me desespero e me sinto feliz…
– Assim o amigo me facilita a vida de explicações.
– E como o faço?
– Está me dizendo de toda a sua vida interior. São os seus mais profundos sentimentos de alegria que fazem as cores do presente ficarem tão vivas e reluzentes; é a sua crença no Natal que transforma sua incapacidade de total compreensão, em realização pelo que seus sentimentos conseguem experimentar e, finalmente, é a sua esperança, repleta de expectativas, a trazer felicidade no tempo que decidiu escolher.
– Não sei ao certo se o meu tempo é este presente. Às vezes, queria viver em épocas passadas e sentir aquele tempo como se fosse o meu.
– Falando do passando, o que pode ver que se sobrepõe ao seu presente?
– Eu não lhe disse a respeito. Como sabe?
– A Lente me é familiar.
– Entendo! Mas, algo de estranho e de surpreendente acontece quando eu a movimento na direção oposta.
– O que acontece?
– Vejo o passado do mesmo presente.
– Diga-me dele.
– A imagem me traz algumas sombras, poucas coisas coloridas e tudo por se fazer. O que significam tais imagens?
– Vejamos: sombras, poucas cores e tudo por acontecer… Significam que aquele não é o seu tempo, por isso não pode experimentá-lo do mesmo modo. Contudo, vendo-o, consegue senti-lo, por isso, algumas cores se destacam. Mas, nem tudo se revela, então, são as sombras.
– E as construções inacabadas?
– Reafirmam que não se trata de seu tempo. E ainda assim, pode senti-las. As coisas feitas perduram por muitas épocas!
– Mas, amigo Rangel, o que isso tudo tem a ver com o Natal?
– Esta é uma Lente de Natal. Por ela pode-se ver o presente realçado quando vivido em sua intensidade. Para tanto, escolher é necessário! Já o passado, revela-se, ainda que o tempo seja outro, sem se esconder de quem o procura. E o Natal, meu amigo, é o tempo visto pela Lente escolhida pela criatura que o deseja.
– Então, eu desejei ver o passado?
– Foi o que mostrou a Lente.
– O que aconteceria com as pessoas que por ela olhassem, não só para uma foto, mas para uma paisagem, um ambiente, um objeto qualquer e até para uma pessoa, ou melhor, muitas pessoas?
– A Lente revelaria o que a pessoa vive e o que deseja viver.
– Seria um ótimo presente de dezembro, não acha, Rangel?
– Isso depende de algumas condições?
– Quais seriam?
– Para quem o Natal é fartar-se de comida, bebida e barulho, gritaria, brigas e desencontros, a Lente faria seu presente mostrar-se cheio de falhas – como acontece numa fotografia perfurada pela ferrugem –, poucas cores e muita destruição. Para os mesmos olhos, observando o passado e contemplando-o sem sair de seu presente, a Lente revelaria épocas melhores, possíveis, fazendo o inverso da expectativa pelo futuro e respondendo ao interessado que, para um presente estragado, um bom passado pode ser o seu conserto.
– Como posso traduzi-lo em poucas palavras?
– Faça deste futuro passado, um bom presente quando as crianças crescerem. Mas, faça-o agora para que a Lente não o sufoque naquilo que não pode ser mudado quando o futuro se encerrar.
– Então, esta Lente deveria ser distribuída para todos os cantos da Terra!
– Mas, isso já acontece, meu amigo!
– Como?
– É o que chamamos de Natal. Ele sozinho é a maior Lente a nos mostrar presente e passado, sonhos e ações para um futuro com expectativas e possibilidades.
– O Natal é uma Lente?
– A maior e a melhor delas!
– Ainda assim, um objeto poderia ajudar.
– Os presentes trocados deveriam ser essa ajuda.
– Eles existem, mas não fazem tanto!
– Porque quem os dá e quem os recebe recusa-se a vê-los pelo Natal. Um presente só se transforma em Lente quando assim é desejado. Do contrário, soma-se ao acúmulo das coisas estragadas que estragam as pessoas.
(…)
Foi então, que compreendi meus sentimentos no dezembro do Natal. Olhei para Rangel que, apontando para a Lente, antes de desaparecer, me disse:
– Seja feliz no Natal!
– Feliz Natal, Rangel!
E ele, sorrindo, me respondeu:
– Eu sou o HOMEM FELIZ!(*)
(*) Menção feita à publicação: “Socratisa: parteira de livros, escultora de ideias”.
24/12/2016 – ÉLCIO MÁRIO PINTO