Coisa que só eu ouço
Paulo Siuves: Poema ‘Coisas que só eu ouço’


Sempre vi o frio
como poesia sazonal.
Ele chega devagar,
no começo do outono,
cortante e sussurrante —
um frio que as pessoas desprezam,
até que percebem
que não era só um ventinho qualquer,
mas um inverno disfarçado.
De manhã,
o frio contrasta com o brilho generoso do sol,
mas é um brilho gelado,
como o da luz acesa da geladeira —
presença sem calor.
À tarde,
o vento sopra na minha orelha
frases que ninguém mais escuta.
Os outros correm pela avenida,
com seus fones de ouvido,
seus compromissos,
suas camisetas de verão.
E eu,
me encolho
num frio que castiga
os mais frágeis do que eu
— e às vezes, sou eu quem é.
À noite,
um mingau, um caldo,
ou um vinho encorpado,
tinto generoso como as estrelas
que brilham de longe,
trazem algum alento.
Os tecidos de algodão
tentam, em vão, proteger minha pele
desse poema gelado
que o frio insiste em declamar
na minha orelha.
E eu me recolho,
em silêncio,
sob o abrigo dos cobertores,
porque o frio —
o frio não é psicológico, coronel.
Ele só gosta de fingir que é.