O poder ambíguo da literatura

Ela Dominici

‘O poder ambíguo da literatura: entre a subversão e a submissão’

Ella Dominici
Ella Dominici
Imagem criada por IA do Bing - 11 de julho de 2025, às 15:41 PM
Imagem criada por IA do Bing – 11 de julho de 2025,
às 15:41 PM

A literatura, enquanto arte da palavra e exercício da imaginação, transita em um campo dúbio de potências: pode metamorfosear, subverter e libertar, mas também coagir, reprimir e conduzir à submissão. O gesto de escrever – e, por extensão, o de ler – carrega em si a possibilidade de resistência política, mas igualmente pode reforçar estruturas de dominação simbólica e emocional. Entre a chama da inquietação e o sopro da apatia, a literatura atua como campo de disputa.

Do ponto de vista crítico literário, nomes como Roland Barthes, Mikhail Bakhtin e Antonio Candido revelaram que a palavra escrita nunca é neutra. Barthes, por exemplo, ao desconstruir a figura do autor como autoridade última do texto, abre espaço para o leitor como agente de sentidos, portanto, também como ser político. Bakhtin, ao propor a noção de dialogismo, aponta para uma literatura que se constrói em tensão com o outro, abrindo margem à subversão. Já Antonio Candido, em sua defesa do direito à literatura, vê a leitura como exercício fundamental para a formação da sensibilidade e da cidadania.

Por outro lado, a história mostra que a literatura também já foi instrumento de conformismo. Narrativas padronizadas, discursos que reforçam estigmas ou textos alinhados a regimes autoritários serviram – e servem – para modelar consciências, neutralizar críticas e naturalizar opressões. O cânone, por vezes, é tão responsável pela exclusão de vozes quanto pela consagração delas.

Sob o olhar da psicanálise, esse embate entre coagir e estimular ganha novas camadas. A escrita, conforme Freud sugeriu, nasce do recalque e da sublimação. Ela é, ao mesmo tempo, sintoma e cura. Escrever pode ser um ato de libertação do inconsciente, uma tentativa de elaborar traumas e dar nome ao indizível. Mas também pode operar como mascaramento, repetição compulsiva ou fixação melancólica – caminhos possíveis à dépressivité, como apontaria Lacan ao discutir o sujeito do desejo preso em estruturas simbólicas.

Entre a repressão e o florescimento, a literatura é palco de tensões. O mesmo texto pode libertar um leitor e paralisar outro. O que para um é estímulo para a ação, para outro pode ser consolo anestésico. É nesse terreno ambivalente que a literatura opera: nem sempre como antídoto, nem sempre como veneno, mas como substância viva, pulsante e imprevisível.

No fim, talvez seja esse seu maior valor: não servir a um único propósito, mas inquietar. E nesse desconforto, provocar transformações. Afinal, como já disse Clarice Lispector, “escrever é uma maldição que salva”. A literatura não promete salvação, mas, ao menos, a possibilidade de ressignificar a dor – e, com sorte, transformar silêncio em voz.

Ella Dominici

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