Rannie Cole: 'É o caos'
Ranielton Dario Colle: ‘É o Caos’
– É o caos – disse ela – todos os nossos conceitos são linguisticamente vagos! Não há segurança nenhuma quanto à exatidão das palavras. Os signos têm significantes e significados móveis, tanto temporal quanto geograficamente. Então, qual a certeza que eu posso ter para interpretar qualquer afirmação? E se isso acontece num mesmo idioma, imagina em idiomas diferentes? É um papo de loucos!
– Você está errada. Se não, como? Como evoluímos até aqui? Como estamos tendo esta conversa? – disse ele, enquanto a fitava de forma desconcertante.
Ela olhou no fundo de seus olhos e respondeu sorrindo: – Sorte? Veja, não é um relativismo absoluto. É muito difícil que eu diga algo e você entenda exatamente o contrário do que eu falei a não ser numa distopia estapafúrdia como 1984 onde paz é guerra e guerra é paz e amor é ódio e ódio é amor…
– Como eu ia dizendo – continuou ela – é até possível que agora você esteja entendendo exatamente o que eu estou dizendo, mas também é bem possível, e até provável, que você esteja entendendo algo que seja próximo ao que eu quero dizer… mas não exatamente o que estou dizendo ou querendo dizer, e tudo bem; mesmo assim esta conversa transcorrerá perfeitamente e sairemos satisfeitos daqui, um acreditando que o outro entendeu tudo que ele estava querendo dizer.
– Então… veja, acho que entendo o que você está dizendo – disse ele rindo. – Você está dizendo que me ama, né? É isso?
– Claro, claro… mas falando sério… agora você me deixou sem jeito… bem, o que eu quero dizer é que toda a história, toda evolução da humanidade está alicerçada não apenas em atos, interesses e conquistas: mas em palavras. Palavras! E é por isso que há tanto desentendimento, tanta tragédia, e tantas guerras… As palavras não são bons alicerces! E, infelizmente, são o nosso único meio de nos comunicarmos…
– Ai eu discordo de você, Carol; poxa, eu sou um músico! Também nos comunicamos pela música, partituras, olhares, expressões faciais… e números…
– Ah, você entendeu o que eu quis dizer! A música é divina… mas eu não posso defender uma causa como advogada com uma música! E um engenheiro ou arquiteto também não pode construir um prédio apenas com números, embora eles sejam essenciais para seu projeto…
– Tudo bem, eu realmente entendi, mas o que eu quero dizer é que tem dado certo até hoje!
– Sério que você acha isso? Tá, vamos acreditar que sim… mas tudo isso porque, apesar dos desacordos entre significantes e significados as pessoas têm agido de boa fé, pelo menos no que diz respeito à construção da sociedade! Porém, diariamente vemos casos, em casa mesmo, em que as pessoas escolhem entender o que lhe é mais conveniente de uma fala. Até inconscientemente é assim! O que nos é menos doloroso é mais fácil de digerir, ou se temos uma autoestima baixa o contrário, pensamos o pior, subvertermos a fala aos valores que estamos inclinados a aceitar. Agora, imagine isso transposto para alguém com poder, por exemplo: um juiz que quer dar ganho de causa a um lado comprovadamente perdedor ou coisas do gênero. Se ele forçar o limite semântico do entendimento da lei, achar brechas nas retóricas…
– Ah, para! Hoje você tá muito chata, Carol! Quanto blá-blá-blá! Sim, a gente sabe que a retórica tem limites… Mas é por isso que apenas pessoas dignas e de reputação ilibada tomam posse nesses cargos. Por isso que não é qualquer um…
– E se, por algum acidente do destino, não for assim?
– Mas é! Nós temos instituições sólidas! Nenhum bandido vai ser um juiz ou promotor! Tem que se estudar muito para esses cargos…
– É verdade… talvez. Só que alguém inteligente não é o mesmo que ser alguém incorruptível… Todavia, minha argumentação vai além disso. O que eu quero dizer é que, uma das bases sobre qual está construída toda a civilização ocidental é fraca. E é uma coluna que, se desmoronar, desmorona todo o resto!
– Ah, deixa disso, vai! Assim você vai pirar! Nem todo mundo leu Hegel, Heidegger, Sartre, Kant, Hannah Arendt, ou esses teus filósofos malucos… as pessoas estão mais preocupadas com suas vidas e o dia a dia; e sempre foi assim, e sempre funcionou!
– Funcionou? Sério?
– Sai dessa, vai! Senão eu vou embora. Que saco! Esse papo já deu… a gente tem que falar menos e fazer mais sexo! Isso sim…
– É isso? Você quer ir embora? Quer fazer sexo? Pode ir! Quem sabe seus cinco amiguinhos ai na sua mão não te dão uma ajuda com isso?
– Ei? Não é isso, poxa. Eu sei que é complicado. Mas você tem que relaxar cara! Eu estou preocupado contigo… você se preocupa muito com essas coisas de cunho puramente teórico…
– Mas não é teoria só… pessoas boas cometem atrocidades! Pessoas boas matam! A segunda guerra provou isso… E Hannah Arendt nos mostrou como isso é possível…
– Relaxa então… ninguém mais lê Hannah Arendt!
– Ai é que mora o perigo! Você sabia que Mein Kampf é best-seller de novo na Alemanha?
– Tudo bem, você venceu! Mas, e ai? Qual é a saída? Abolirmos as palavras? – ele disse, rindo.
– Não! Justamente o contrário! As pessoas parecem ter um vocabulário cada vez menor, é só você ver essas musiquinhas da moda que estão tocando por ai! Isso é muito perigoso!
– Agora você está sendo preconceituosa…
– Estou? “Meu pau te ama”? Sério?
– Tá, nem tanto… mas qual é o ponto?
– Bem, creio que George Orwell estava certo ao sugerir que pessoas com um vocabulário pequeno são mais fáceis de manipular… nossas emoções primárias são muito básicas: amamos o que nos faz bem, e odiamos o que nos faz mal… e o que não entendemos classificamos como Bem ou Mal; aí odiamos ou amamos conforme nos é ensinado por “quem entende”
– Tipo alguns crentes odiarem gays? Mas e o que você disse com aquele papo de signos com significados móveis etc.? Saber o significado não impede sua ressignificação. Você está se contradizendo Carol…
– Não… não estou, porque se as pessoas conhecem bem o significado de um signo, ele tem mais consistência. E ai é mais difícil corrompê-lo e mesmo de ressignificá-lo por má-fé
– Má fé… você e esses conceitos Sartrianos… Você fica linda quando fala essas coisas difíceis – ele disse, e ela enrubesceu…
Umas duas horas depois os dois estavam em um motel.
E uma semana mais tarde, ficou claro para Carol o que ele queria, afinal ele não ligou para ela e não atendeu suas ligações ou respondeu suas mensagens…
As palavras… pensava ela enquanto não sabia se ria de sua ingenuidade, ou se chorava. Porém, um observador mais atento teria notado quais as verdadeiras intenções dele desde o começo, não apenas por suas palavras, mas também por seus gestos naquela noite.
Já ela, tinha agora para si a prova cabal de sua fala de que as pessoas entendem e enxergam o que querem de uma situação. O que for mais fácil e mais conveniente segundo suas convicções ideológicas… e ela não era exceção. Estava decepcionada consigo mesma.