Deficiência visual nas literaturas

 Raimundo Campos Filho (UFMA) e Renata Barcellos (BarcellArtes): ‘Deficiência visual nas literaturas’

 Raimundo Campos Filho (UFMA) e Renata Barcellos (BarcellArtes)
 Raimundo Campos Filho (UFMA) e Renata Barcellos (BarcellArtes)

O presente texto visa apresentar como as pessoas com deficiência visuais são retratadas nas literaturas afro-brasileiras e indígenas ao longo do tempo. Vale ressaltarmos que o mais antigo documento que menciona a cegueira é o Papiro de Ebers, escrito no Egito (1.553 – 1.550 a.C.                                                                                                          

Jacob Twersky (pesquisador com deficiência visual) dividiu sua investigação sobre a representação de PDVs nas literaturas em quatro períodos. O primeiro contempla desde o Velho Testamento (Bíblia relata a história de Tobias, que ficou cego devido a uma doença após cobrir os olhos com fezes de andorinha, sendo posteriormente curado por um anjo no livro de Tobias, que faz parte dos livros deuterocanônicos. No Novo Testamento, há o caso de Saulo (Paulo) que ficou cego temporariamente após um encontro com Jesus na estrada para Damasco, e o cego Bartimeu, curado por Jesus perto de Jericó) até as obras lançadas no ano de 1784.                                                                                                 

Segundo é de 1784 (que abarca o início da primeira escola para cegos em Paris, fundada por Valentin Haüy) até o ano de 1873 (um momento de ampliação do sistema Braille).    O terceiro, de 1873 a 1914 (um tempo de iniciação dos programas de reabilitação para 37 soldados cegos americanos).                                                                                                        

Exemplos: o conto As Estrelas do Cego, de João da Câmara, 1900.                                                                        O cego era um velho corcovado, trêmulo, com a face cheia de rugas cruzadas, como um pedaço de papel amachucado. O Conto A cega, de Viriato Corrêa, está no seu primeiro livro Minaretes, 1902. O conto A Caolha, de Júlia Lopes de Almeida, publicado em 1903. Trata-se da história de um filho, Antonico, e sua mãe que perdeu um olho. O filho sente vergonha da mãe, sofrendo bullying devido à sua deficiência. Após tentar se afastar dela para se casar, ele descobre que a mãe foi cegada por ele quando criança, num acidente com um garfo, o que leva à sua reviravolta e ao desmaio de Antonico.                              E o último é de 1914 até a publicação da pesquisa, em 1955, de Jacob Twersky. 

Exemplos são as obras: Apólogo brasileiro sem véu de alegoria, de António de Alcântara Machado (de 1936 – no livro Mana Maria e contos avulsos) – onde o personagem com deficiência visual é flautista. A autora chama atenção para o lugar-comum da associação entre cegueira e dons musicais, lembrando ao leitor que a deficiência não gera nenhum talento ou aptidão especial. Infância, de Graciliano Ramos (de 1945 – narra memórias do autor, e a sua condição de criança cega é uma memória real e significativa, que moldou sua introspecção e sua relação com o mundo).                     

São Marcos, de Guimarães Rosa (de 1946 – o protagonista e narrador Izé fica temporariamente cego, perdendo a visão após zombçar do feiticeiro João Mangolô.        A cegueira é provocada por um vodu, mas Izé recupera a visão ao rezar a oração de São Marcos e se aproximar da casa do feiticeiro, que retira a venda de um boneco, simbolizando a libertação do protagonista da maldição).                                                                                                                                        

A partir desta divisão do pesquisador Jacob Twersky, investigamos obras a partir da terceira fase do Modernismo, Neste período, há As cores, de Orígenes Lessa (de 1960 – da coletânea intitulada Balbino, homem do mar.  A personagem Maria Alice é a única cega. Ela é a figura central da narrativa, que aborda o drama de uma pessoa que perdeu a visão, um tema que a obra explora de maneira irónica, uma vez que o conto se chama “As Cores”) – onde a pesquisadora afirma que a personagem é representada como se pertencesse a um mundo limitado pelo fato de ter uma deficiência.                                          

E o conto
Em “Amor”, conto Amor de Clarice Lispector (1960). Neste, o cego mascando chiclete é o elemento que causa uma epifania na personagem Ana. Embora não seja um personagem principal no sentido tradicional, a figura do cego funciona como um gatilho para a crise interior de Ana. Revelando a ela a crueza da vida e o contraste entre a sua existência mecanizada e a realidade pulsante.                                                                                 

O conto A Estrela Branca, publicado em Mistérios de Lygia Fagundes Telles, 1980 e, depois em Um Coração Ardente, 2012. Neste, a escritora arra um transplante de olhos que devolve a visão a um cego, mas não o controle sobre a percepção que passa a ter, explorando a dualidade entre o que se vê e o que se “enxerga”, e como a memória e a subjetividade moldam a realidade.                                                                                                              

E, na contemporaneidade, podemos citar: nas Literaturas Brasileiras: Até que a morte nos separe, de Ana Teresa Pereira, 2000. Esta revela a história de um inspector da polícia assombrado por ter morto, num fogo cruzado, um inocente professor de literatura, acabando por ter um caso com uma jovem misteriosa, com quem casa e leva a morar com a sua filha cega. A filha morre e o segredo da jovem esposa é revelado. A personagem Dorinha, da Turma da Mônica, foi criada por Mauricio de Sousa, 2004. Ela foi inspirada na educadora Dorina Nowill e sua criação teve como objetivo sensibilizar as crianças para a questão da deficiência visual. 

Eternidade e o Desejo Inês Pedrosa O grande desafio, 2007. Narra a história de Clara, uma jovem professora portuguesa que decide voltar a Salvador anos após uma terrível experiência na cidade – ao tentar salvar das balas o homem que amava, levou um tiro que a deixou cega. O grande desafio, 2007de Pedro Bandeira Moderna, 2016.  A obra narra a história de Toni, um garoto bonito e inteligente, que leva uma vida quase normal apesar de ser cego. Com muita coragem ele enfrenta os obstáculos sem nunca desistir. Essa determinação será fundamental para que ajude Carla sua paixão a livrar o pai de uma trama cruel.                                                                                                       

Olhando com Ritinha (de Sharlene Serra, 2018) narra a  história de Ritinha (uma garotinha deficiente visual) que nos faz entender a sua forma de ver e perceber o mundo à sua volta. Fala dos recursos principais para sua aprendizagem e nos apresenta as combinações do Braile, sistema de leitura e escrita tátil. Uma história que nos faz acreditar ser a inclusão algo possível.                                                                                        

A Cega Era Eu de Eliane Brum, 2019. É um texto que narra a experiência da autora de se tornar cega ao encontrar um cego, Leniro, e como essa vivência a levou a explorar o universo dos deficientes visuais, questionando preconceitos e compreendendo o mundo por outras perspectivas, especialmente através da tecnologia e da leitura de um outro.                                                                                                               

Nas Literaturas Africanas, o conto A MAKA DA VELHA SAMBA de  Beni Dya Mbaxi, do livro Quando Não Olhas Para Trás, 2018.                                                                            

Nas Literaturas Indígenas, o Velho Cego, um personagem que surge nos mitos Krahó, é discutida a sua relação com o surgimento do homem branco. Sua narrativa serve para refletir sobre a oposição entre meninos e a sociedade, e a consequente perda de sua inocência.                                                                                                                                                                                                                                                           

No estudo Quarenta anos retratando a deficiência: enquadres e enfoques da literatura infantojuvenil brasileira de Barros, 2015, a pesquisadora debruçou-se sobre 150 livros infantis, editados nas últimas décadas. A autora constatou que, no mercado editorial brasileiro, tem ocorrido uma crescente publicação de livros que têm como tema a diferença e, especificamente, as deficiências. Ela observou que, nos livros publicados entre as décadas de 1970 e 1980, a deficiência visual é a segunda mais retratada, já a deficiência física está em primeiro lugar.                                                                                     

De acordo com Glauco Mattoso (poeta, ficcionista, estichologo e philologo. É membro benemérito da Academia Brazileira de Sonnettistas – ABRASSO…), “à parte a lenda de Homero, o caso mais emblematico é o de Sansão, personagem assumido por John Milton em SANSÃO AGONISTA, ja sob uma perspectiva masochista mas ainda camuflado de christianismo piedoso.

Retomei o personagem ja na perspectiva SM explicita no cyclo SÃO SANSÃO, SANCTA DALILAH, alem de me identificar com a figura do cego victimizado por normovisuaes sadicos em varios outros poemas e contos. Tudo fiel à minha biographia de deficiente bullyingado desde a infancia”. 

Vale destacarmos o trabalho realizado pela amiga Dinorá Couto Cançado (fundadora e presidente da AIAB- Academia Inclusiva de Autores Brasilienses – Blog: https://aiabbrasilia.blogspot.com). A seguir, entrevista:

1. A Biblioteca Braille Dorina Nowill foi fundada 1995. Está completando 30 anos. Qual é a contribuição social? O que motivou a fundação? Dinorá Couto Cançado: Cases impactantes demonstram o número de resultados obtidos com a existência dessa Biblioteca Pública Braille, a única no DF, onde a maioria do seu público alvo compõe-se de pessoas adultas, onde o resgate da autoestima abalada pela perda da visão  é o mais urgente entre os frequentadores que voltam a ter uma vida com mais dignidade. Estudam, trabalham e vivem  com mais cidadania. A motivação para a criação da mesma se deu pela chegada de duas pessoas com deficiência visual (PcDV) e cerca de 2 mil livros em Braille à cidade, precisando de um local que que resolvesse de forma adequada à necessidade desse público especial. A solução foi a criação da Biblioteca.

2. Como é realizado o Projeto Luz & Autor em Braille? Também completando 30 anos? Dinorá Couto Cançado: Nascido junto com a Biblioteca para a dinamização desse espaço recém inaugurado, consiste na integração de escritores brasilienses  à PcDV que leem a obra acessível  do autor  que é seu par e cria a sua produção literária, portanto ambos são Autores em Braille. Com isso, acabamos de ganhar um recorde mundial oficial do maior número de produções publicadas de PcDV. Esse projeto, com 22 anos, deu origem a uma Academia Inclusiva.

3. Ano também de comemoração dos 8 anos da AIAB, a primeira e única inclusiva. Quais são os projetos para este ano? Dinorá Couto Cançado: A ampliação do número de membros titulares, beneméritos e correspondentes é uma meta contínua levada adiante com a execução de vários projetos ao ano. O 1º deles é o Carnalivro, que é um movimento social, inclusivo e cultural que une a literatura ao carnaval e outras artes integradas. Também a celebração das principais semanas nacionais (Museus, Arquivos, Primavera…) mas o que dura quase o ano todo é o PIEI: Prêmio Internacional de Espírito Inclusivo que  mantém a mesma característica do projeto inicial da Biblioteca: duplas concorrem, sendo uma pessoas vidente par com uma pessoa com deficiência visual,  resultando na produção de textos e num reconhecimento público certificado. Várias outras ações que surgem, como oficinas, rodas, jornadas. Vale dizer que sou (Barcellos) membro da AIAB e participo da bela iniciativa do PIEI: Prêmio Internacional de Espírito Inclusivo.  Para finalizarmos, vale ressaltarmos que, ao longo desta pesquisa, pudemos constatar que tanto Júlia Lopes de Almeida e Viriato Corrêa também foram precursores da Literatura Infantil (leia mais em https://www.facetubes.com.br/noticia/6674/literatura-infanto-juvenil-precursores-e-primeira-biblioteca-publica-do-brasil). Você, leitor e ou professor de literaturas, tinha conhecimento disso? Urge a historiografia das literaturas ser reescrita, a fim de reconhecer quem (de fato) contribuiu com as diversas literaturas.            

        Raimundo Campos Filho (UFMA) e Renata Barcellos (BarcellArtes

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