Alexandre Rurikovich Carvalho
‘O Golpe que Destituiu a Monarquia no Brasil: Contexto, Dinâmicas e Consequências’


Introdução
A Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, é frequentemente descrita como um marco fundacional do Brasil republicano. No entanto, por trás do discurso oficial de “transformação pacífica”, há um processo político marcado por tensões, articulações militares e ações planejadas que configuram um golpe de Estado contra a monarquia constitucional do Imperador Dom Pedro II. Este artigo examina os fatores que conduziram à queda do regime imperial, os agentes envolvidos no movimento e os impactos imediatos e duradouros da abrupta mudança de ordem política.
1. A Crise do Segundo Reinado
O final do Segundo Reinado foi marcado pela convergência de tensões políticas, econômicas, sociais e ideológicas que corroeram as bases do regime. Embora a monarquia tivesse oferecido ao Brasil um raro período de continuidade institucional – sobretudo quando comparado aos demais países latino-americanos -, a década de 1880 apresentou sinais de desgaste que, somados, criaram o cenário favorável ao movimento golpista de 1889.
Os fatores dessa crise não se limitaram às chamadas “três questões” clássicas (Religiosa, Militar e Abolicionista). Eles incluíam mudanças culturais, pressões internacionais, novas correntes de pensamento político, ascensão de classes urbanas emergentes e profundas disputas pelo controle do Estado moderno. A seguir, cada uma dessas dimensões é analisada em profundidade.
1.1. A Questão Militar: De Força Secundária a Protagonista Político
Durante grande parte do Império, o Exército desempenhou papel secundário na estrutura do poder. A Guarda Nacional – composta por elites locais – era responsável pela segurança interna, enquanto o Exército era visto como força técnica e pouco prestigiada.
Todavia, após a Guerra do Paraguai (1864–1870), os militares retornaram fortalecidos e conscientes de seu peso político. A campanha havia consolidado uma cultura corporativa e um sentimento de missão histórica.
Alguns fatores contribuíram para o crescente conflito entre o Exército e o governo imperial:
- consciência de classe militar: jovens oficiais passaram a reivindicar autonomia, reconhecimento profissional e tratamento igualitário frente à elite civil;
- penetração das ideias positivistas: Benjamin Constant e outros formadores elevaram o Exército a um “partido fardado” com vocação reformista;
- insatisfação com punições disciplinares: episódios como o de Sena Madureira, punido por manifestar apoio a um escritor republicano, alimentaram tensões;
- percepção de desprestígio: militares viam o Império como excessivamente civilista, resistente a suas demandas.
Assim, ao final dos anos 1880, o Exército não era apenas uma corporação desconfortável; era um ator político articulado, com ideologia própria e liderado por oficiais que acreditavam que a república era o caminho natural da modernização.
1.2. A Questão Religiosa: Conflito entre Ultramontanismo e Regalismo
A disputa entre a Igreja Católica e o governo imperial, ocorrida principalmente entre 1872 e 1875, teve raízes profundas. A atuação das irmandades maçônicas, a tentativa da Santa Sé de reforçar seu controle sobre o clero (ultramontanismo) e o regalismo herdado do período colonial criaram um choque de legitimidades.
O Império se via como responsável pela administração das questões religiosas, enquanto a Igreja buscava autonomia espiritual e política. A prisão dos bispos de Olinda e Belém, por desobedecerem a ordens imperiais, radicalizou o conflito.
As consequências foram profundas:
- parte do clero passou a ver a monarquia como obstáculo moral;
- movimentos católicos se aproximaram, paradoxalmente, do republicanismo;
- a autoridade imperial foi abalada internamente.
Embora Dom Pedro II tenha resolvido a crise por meio de anistia, o desgaste institucional permaneceu. A Igreja, importante base moral da sociedade, deixou de ser um pilar incondicional do regime.
1.3. A Questão Abolicionista: Ruptura com a Velha Elite Agrária
A partir da década de 1870, o movimento abolicionista ganhou força com o apoio de intelectuais, jornalistas, artistas, advogados e grupos urbanos. A escravidão, além de moralmente insustentável, tornara-se economicamente atrasada para o País que buscava integrar-se ao capitalismo mundial.
O governo imperial, embora progressista, adotou uma postura gradualista:
- Lei Eusébio de Queirós (1850): fim do tráfico;
- Lei do Ventre Livre (1871);
- Lei dos Sexagenários (1885);
- Lei Áurea (1888).
A abolição foi um triunfo moral, mas produziu uma ruptura política decisiva:
- a elite escravista sentiu-se abandonada pelo Estado;
- republicanos ruralistas — sobretudo paulistas — intensificaram o apoio ao novo regime;
- o Império perdeu sua base política histórica, os grandes proprietários de terra.
Esse desalinhamento foi mortal para um regime que se sustentava sobre alianças oligárquicas e instituições moderadoras.
1.4. Transformações Socioeconômicas e Urbanização
A dissolução da monarquia não pode ser entendida apenas por seus conflitos internos. O Brasil dos anos 1880 vivia transformações profundas:
- expansão das ferrovias e telegrafia;
- crescimento das cidades (Rio de Janeiro, São Paulo, Recife);
- surgimento de uma burguesia comercial e industrial;
- introdução de novas ideias políticas (liberalismo radical, positivismo, republicanismo).
Essas mudanças criaram uma nova elite urbana, mais dinâmica, mais conectada ao mundo e menos identificada com o sistema monárquico.
A monarquia, com sua estrutura tradicional, foi percebida por alguns como símbolo de atraso administrativo e lentidão modernizadora, embora historiadores contemporâneos ressaltem que Dom Pedro II promovia reformas constantes — apenas de forma gradual e cautelosa.
1.5. O Cansaço Político e Pessoal do Imperador
A figura de Dom Pedro II é elemento central da crise. Nos últimos anos de vida pública, o Imperador demonstrava sinais de exaustão:
- problemas de saúde debilitantes;
- longas ausências do país;
- desapontamento com disputas políticas que considerava mesquinhas.
Dom Pedro II jamais cultivou o personalismo. Sua visão de poder era quase burocrática e altamente filosófica. Entretanto, sua postura austera e avessa ao protagonismo político foi interpretada por alguns como desinteresse.
Essa percepção enfraqueceu a imagem da monarquia diante de setores que aguardavam um líder energicamente envolvido na política diária.
1.6. A Ruptura Política Entre Liberais e Conservadores
A alternância de poder entre Liberais e Conservadores – alicerce da estabilidade imperial – entrou em crise no final do século XIX. Os partidos se tornaram:
- facções personalistas;
- estruturas envelhecidas e distantes da sociedade;
- incapazes de incorporar novas demandas urbanas e militares.
O sistema bipartidário, sustentado pelo Moderador, já não conseguia canalizar tensões.
O Império, cuja robustez fora construída sobre equilíbrio político, perdeu a capacidade de acomodar conflitos emergentes.
1.7. Pressões Internacionais e o Avanço das Ideias Republicanas
O contexto geopolítico internacional também influenciava o ambiente interno. Em toda a América do Sul, a monarquia brasileira destacava-se como exceção. Nos círculos diplomáticos e intelectuais, a república era vista como símbolo de modernidade política.
As relações com os Estados Unidos – já república consolidada – tornaram-se mais intensas, assim como a influência cultural francesa, onde o positivismo e o anticlericalismo ganhavam força.
O Brasil inseria-se em um fluxo ideológico global que valorizava:
- laicidade;
- constitucionalismo republicano;
- centralização estatal modernizante.
Embora não determinantes por si só, esses elementos ajudaram a legitimar a ideia de que a monarquia era um regime ultrapassado.
2. A Construção do Movimento Golpista
A derrubada da monarquia brasileira não foi um acontecimento repentino, nem fruto de uma revolta popular. A Proclamação da República foi o desfecho de um processo articulado por grupos militares, civis e econômicos que atuaram de forma coordenada – ainda que nem sempre consciente – para desestabilizar o Império e preparar as condições políticas, ideológicas e psicológicas que permitiram o golpe de 15 de novembro de 1889.
O movimento republicano no Brasil, diferentemente do que ocorreu em países como Estados Unidos, França ou Chile, não emergiu de mobilização de massas, mas sim de elites urbanas, círculos militares e setores agremiados contra o governo imperial. Este capítulo examina as forças que construíram o movimento golpista, suas disputas internas, suas alianças táticas e a formação da mentalidade que tornou possível a queda do regime.
2.1. A Identidade Política do Exército e a Doutrinação Positivista
O Exército foi o principal vetor da mudança institucional, mas o caminho até seu protagonismo político foi gradual. Após a Guerra do Paraguai, cresceu uma cultura militar baseada em mérito, disciplina e nacionalismo, que contrastava com a política imperial, vista como conciliadora e excessivamente moderadora.
2.1.1. O Positivismo como Ideologia de Poder
A doutrina positivista de Auguste Comte, difundida nas escolas militares por Benjamin Constant e seus seguidores, exerceu papel decisivo. O positivismo pregava:
- centralização técnica do Estado;
- primazia da razão sobre a tradição;
- “ditadura científica” como etapa necessária para a ordem;
- rejeição de instituições “arcaicas”, como a monarquia;
- valorização moral e cívica das Forças Armadas.
Essas ideias penetraram profundamente entre jovens oficiais, que passaram a se ver como vanguarda moral da nação, responsáveis por conduzir o país a um novo estágio de progresso.
2.1.2. A Radicalização da Questão Militar
Os choques com o governo imperial – punições disciplinares, desprestígio institucional, interferências civis – alimentaram ressentimentos corporativos. Nas casernas, formou-se uma cultura de oposição ao gabinete monárquico.
A soma de ideologia (positivismo) e ressentimento (Questão Militar) criou um Exército politizado e inclinado a intervir.
2.2. O Movimento Republicano Civil e o Papel das Elites Urbanas
Embora a queda da monarquia tenha sido executada pelo Exército, o movimento republicano civil teve papel crucial na preparação do terreno.
2.2.1. Os Clubes Republicanos
Desde 1870, multiplicavam-se clubes republicanos em centros urbanos como:
- Rio de Janeiro
- São Paulo
- Pernambuco
- Rio Grande do Sul
Eles funcionavam como espaços de doutrinação política e propaganda ideológica. Muitos eram formados por jovens advogados, jornalistas, professores e comerciantes, que viam a república como símbolo de modernização política.
2.2.2. A Imprensa Republicana
Jornais como A República, Gazeta da Tarde e O Radical foram fundamentais para criar uma narrativa de desgaste da monarquia:
- ridicularizavam a figura do Imperador;
- atacavam ministros;
- exaltavam modelos republicanos estrangeiros;
- difundiam a ideia de “inevitabilidade histórica” da república;
- retratavam a monarquia como obstáculo ao progresso.
Essa pressão cultural produziu mudanças de opinião entre setores influentes da sociedade.
2.2.3. As Elites Agrárias Paulistas
A elite cafeeira paulista, ressentida com a Abolição, viu na república uma oportunidade de recuperar influência política, ampliar autonomia estadual e romper com o centralismo imperial.
Embora inicialmente não liderassem o movimento, tornaram-se importantes financiadores e apoiadores ideológicos.
2.3. Intelectuais, Maçons e Modernizadores: A Cultura Política da Mudança
Uma rede de intelectuais, maçons e reformadores sociais também se articulou em torno do ideal republicano.
- A maçonaria oferecia espaços de sociabilidade política.
- Professores das escolas militares disseminavam positivismo.
- Juristas debatiam novos modelos constitucionais.
- Artistas e escritores exaltavam valores modernos e seculares.
- Cientistas buscavam participar mais ativamente da política nacional.
A república emergiu como símbolo de racionalidade, ciência e progresso — conceitos cada vez mais valorizados nas cidades em transformação.
2.4. A Rivalidade Pessoal e Política entre Deodoro e Ouro Preto
Um dos elementos mais conhecidos, porém, frequentemente subestimados, é o papel das rivalidades pessoais.
2.4.1. Deodoro: Monarquista por convicção, golpista por circunstância
O marechal Deodoro da Fonseca era amigo pessoal de Dom Pedro II e, até poucos meses antes do golpe, um monarquista convicto. Entretanto:
- estava debilitado por doença;
- tinha relações conflituosas com o presidente do Conselho, Visconde de Ouro Preto;
- foi manipulado por rumores de que seria preso.
Republicanos civis e oficiais encantados pelo positivismo aproveitaram o antagonismo pessoal para persuadi-lo de que derrubar Ouro Preto era ato de salvação nacional.
2.4.2. A Falsa Acusação de Prisão
Agentes republicanos difundiram a informação falsa de que Ouro Preto havia expedido ordem de prisão contra Deodoro. Isso foi decisivo. O marechal, orgulhoso e sensível à honra militar, deixou-se levar ao movimento.
Dessa forma, a queda da monarquia dependeu não apenas de macroprocessos políticos, mas também de intrigas pessoais que catalisaram ações militares decisivas.
2.5. A Desarticulação da Monarquia: O Golpe como Oportunidade
A monarquia, apesar de suas forças estruturais, encontrava-se fragilizada politicamente:
- o Imperador estava enfermo;
- o gabinete de Ouro Preto era impopular entre militares;
- a elite agrária desertara;
- a princesa Isabel não consolidara alianças com setores conservadores;
- os principais ministros civis subestimavam a conspiração.
Quando as tropas tomaram as ruas, o governo não reagiu — não por fraqueza militar, mas por ausência de vontade política de enfrentar concidadãos em combate.
Essa passividade foi interpretada pelos conspiradores como sinal de inevitabilidade histórica, abrindo espaço para transformarem a deposição do gabinete em deposição da monarquia.
2.6. A Aliança Tática entre Militares e Republicanos Civis
O golpe de 1889 foi resultado de uma aliança tática entre grupos distintos, que tinham interesses diferentes:
- Militares positivistas: buscavam centralização técnica e moralização política.
- Republicanos civis: queriam uma constituição laica e democrática.
- Elite cafeeira paulista: desejava maior autonomia regional e menor intervenção estatal.
- Intelectuais urbanos: almejavam modernização cultural e científica.
Embora unidos contra o Império, esses grupos divergiam profundamente sobre o tipo de república a ser construída — tensões que emergiriam logo após o golpe.
3. O Golpe de 15 de Novembro
Na manhã de 15 de novembro de 1889, tropas marcharam em direção ao Ministério da Guerra, pressionando o gabinete e forçando a renúncia de Ouro Preto. O objetivo inicial não era a derrubada da monarquia, mas sim a troca ministerial. No entanto, nas horas seguintes, republicanos civis e militares manipularam a situação para transformar o ato em ruptura total. Sem resistência armada e sem mobilização popular significativa, o Império foi deposto. Dom Pedro II recebeu comunicação oficial durante a tarde e, com serenidade exemplar, decidiu evitar qualquer derramamento de sangue.
No dia 16, a família imperial foi intimada a deixar o país em 24 horas. No dia 17, embarcou para o exílio na Europa.
4. A Legitimidade Questionada
A Proclamação da República não passou por referendo, plebiscito ou consulta pública. Foi um movimento preparado por minorias e realizado por ação militar direta – características típicas de um golpe de Estado.
Documentos e testemunhos da época revelam:
- ausência de revoltas populares pró-república;
- perplexidade da população, que assistiu aos acontecimentos como espectadores;
- continuidade administrativa abrupta, com mudanças apenas no topo do poder.
Dessa forma, o novo regime nasceu sem base social sólida, sustentando-se principalmente na autoridade do Exército.
5. Consequências Imediatas e de Longo Prazo
5.1. Exílio da Família Imperial
A expulsão sumária dos Bragança representou uma ruptura dolorosa na história nacional. Dom Pedro II faleceu em 1891, em Paris, ainda amado por muitos brasileiros.
5.2. Militarização da Política
A República Velha foi marcada pela tutela militar. Os presidentes marechais (Deodoro e Floriano) ilustram a influência direta do Exército nos rumos da jovem república.
5.3. Centralização e Controle
O novo regime buscou consolidar-se controlando a imprensa, reprimindo revoltas (Canudos, Contestado, Revolta da Armada) e limitando a participação popular.
5.4. A Persistência do Debate Monarquia x República
Com o passar das décadas, cresceu o reconhecimento de que o Império oferecia estabilidade institucional rara na América Latina. Historiadores contemporâneos debatem as consequências do golpe e questionam se a transição poderia ter sido gradual e democrática.
Conclusão
O golpe que destituiu a monarquia em 1889 foi resultado da convergência de insatisfações políticas, interesses corporativos e articulações militares que encontraram um Império fragilizado por crises sucessivas. Apesar de sua narrativa oficial, a Proclamação da República não representou um clamor popular, mas sim uma manobra conduzida por minorias organizadas.
Ainda hoje, o episódio provoca reflexões sobre a legitimidade do poder, o papel das Forças Armadas na vida política e o processo de construção institucional no Brasil. Revisitar esses acontecimentos é essencial para compreender a natureza do Estado brasileiro e os desafios que historicamente marcam sua trajetória política.
Referências
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