Rannie Cole: conto 'Pela 'Família Cristã'

Rannie Cole publica o conto ‘Pela ‘Família Cristã’, que trata da questão da homofobia

 

Estava escuro ainda quando Jeane abriu os olhos. A cabeça doía um pouco. Ela estava confusa. O quarto em que acordara não era o seu. Estava seminua e, embora estivesse sozinha na cama, gostaria de lembrar como fora parar lá. Era horrível aquela sensação de não saber se ficou com alguém ou não. De estar na casa de uma desconhecida e ter que sorrir e fingir quando ela chegasse com um café da manhã. “Droga!” como ela gostaria de lembrar-se do rosto da menina. Se ela era bonita ou não…

Não que fosse exatamente uma novidade acordar com uma amnésia temporária. Isso já lhe acontecera umas duas vezes. Só que, geralmente, ela acordava na própria casa, ou na de uma amiga. Vezes essas que ela bebera demais e, portanto, sabia o motivo de seu esquecimento. Dessa vez, no entanto, o próprio local em que estava lhe era estranho, e ela não se recordava nem mesmo de ter bebido mais que dois goles de vinho. Precisava lembrar-se de nunca mais misturar o Rivotril com álcool. Nem mesmo com uma dose.

Ao passar a mão na cabeça para ajeitar os cabelos, Jeane sentiu umas casquinhas se soltarem acima da testa e percebeu que era sangue coagulado. Num primeiro momento: pânico. Porém, ela refletiu que tudo parecia estar bem, e poderia não ser nada: “devo ter batido a cabeça, só isso.” – pensou. Resolveu então chamar: – Ei. Ei, tem alguém ai? – nada. O silêncio, todavia, foi interrompido pelo celular que estava sobre o criado-mudo e começou a tocar. Não era o seu telefone, então teve receio em atendê-lo. Mas, ouvi-lo tocar deu lhe a ideia de procurar o seu, e ligar para alguém; encontrou-o no chão, ao lado de sua saia, mas sem bateria. E não havia nenhum carregador à vista. Estava arrependida de ter saído de casa.

– Vamos, menina! – ele insistia com ela – Vai ser legal. Tem uma garota que você tem que conhecer!

– Pode ser outro dia? Eu tô cansada hoje.

– Quê, cansada!. Você sempre dá uma desculpa… vamos! Eu juro, ela é a tua cara! Foi feita para você, você vai amar. E depois Jeane, você está precisando transar, menina. Senão, vai acabar virando uma vadia amarga como eu.

Jeane relutara, mas ele era o seu melhor amigo. Era uma Diva, cheia de trejeitos, extremamente afeminado, e se arrumava melhor do que ela. Mas era seu melhor amigo. E depois, fazia tanto tempo que ela não saia, desde seu término com Lara, que acabou se convencendo de que seria bom espairecer. Por isso, saíram.

No barzinho ela conheceu Daniela. E ela era tudo que Roberto/a tinha lhe dito: linda, meiga, e inteligente. Chegou a achar que a garota era até boa demais para ela. No entanto, Dani teve que ir embora mais cedo. Trocaram telefones e ficou nisso. Então, não satisfeito, com a sensação de ter sido cortado, Roberto/a cujo nome de guerra era Angel, decidiu levá-la a uma boate LGBTS… Mas Jeane não lembra-se de ter entrado lá. Eles viram umas viaturas paradas frente à boate e decidiram ir a um barzinho ali perto.

Jeane foi ao banheiro da suíte. Olhou-se no espelho e viu que tinha mais sangue do que imaginava em sua nuca. Lavou demoradamente o rosto, sentindo a água gelada em sua face. Depois, molhou os cabelos limpando o sangue que havia neles. E, de repente, percebeu que estava tranquila e até razoavelmente despreocupada dada a gravidade da situação.

Após enxugar o cabelo, ela foi se vestir, mas percebeu que suas roupas estavam rasgadas e sujas de sangue. Abriu o guarda-roupa e viu apenas vestes masculinas ali. Não hesitou em vestir uma calça jeans e uma camiseta preta. Só então arriscou abrir a porta do quarto.

Na mesinha de centro da sala, e por todo o chão, havia cacos de uma garrafa de vinho. E duas taças quebradas. Ela começava a recordar:

– “Oi” – ele tinha um rosto bonito e encarava o Roberto: – Oi – disse Jeane, encarando-o, e depois sorrindo para Angel, que parecia interessado. – Meu nome é Cristian. Tá vendo aquela menina lá na mesa do canto? É a Michelle. Ela tá a fim de ti, e gostaria de saber se tem alguma chance. – Ah, senta aqui com a gente e diz pra ela vir também.

Na copa, Cristian e Angel estavam caídos no chão, com uma poça de sangue. Jeane correu até Angel, mas era tarde. Ele estava frio. Ela o sacudiu, abraçou o seu cadáver e começou a chorar, lembrando:

– Sabe Michelle, minha amiga aqui amou você; disfarça, mas acho que ela está mal-intencionada essa noite. – disse Angel, olhando com ares de deboche para Jeane. – Ela é uma menina muito má!

– Ah fica quieto, sua bicha! – disse Jeane, brincalhona, para Angel.

– Que tal irmos nós quatro lá para casa? ─ sugeriu Michele, segurando com doçura a mão de Jeane, que estava encantada e decidida…

Eles seguiram o carro de Michelle até sua casa na zona norte. Estacionaram. Entraram, e tudo parecia bem, até que Cristian pegou uma garrafa de vinho com apenas duas taças e serviu uma para Michelle.

– Ei, e a gente? ─ perguntou Angel, ainda tranquilo.

– Vocês já vão ter o seu! – respondeu rudemente Cristian, enquanto erguia a taça. Depois, brindou:

– A um novo mundo, livre de aberrações!

Angel olhou para a estante e viu, entre outros livros, “Minha Luta”, de Adolf Hitler, ao lado da Bíblia e de “A Família Cristã”, e percebeu o que estava acontecendo ali:

– Escuta cara, eu não estou entendendo esse teu papo, mas valeu mesmo, obrigado por tudo; de qualquer forma a gente vai indo, OK? Está tarde já…

– Vocês ficam aí, seus lixos! Vocês foram julgados e condenados!

Eles tentaram correr. A garrafa de vinho quebrou na cabeça de Jeane e ela apagou. Foi tudo muito rápido. Angel deve tê-la defendido…

– SAIAM COM AS MÃOS NA CABEÇA! – intimou o policial. – VOCÊS ESTÃO PRESOS POR INVASÃO, TENTATIVA DE ASSASSINATO, ROUBO E AGRESSÃO!

Jeane saiu com as mãos para o alto e viu Michelle com um leve hematoma, sorrindo malevolamente para ela, ao lado da viatura policial. Um tiro foi disparado acidentalmente e Jeane caiu…

Um policial, primo de Michelle, membro devoto da igreja, e parte de um grupo religioso chamado “A Família Cristã” foi indiciado, mas liberado por “atirar em legitima defesa” em uma assassina de alta periculosidade, sendo condecorado também por isso mais tarde.