Ranielton Dario Colle: 'O motorista'
Ranielton Dario Colle: ‘O motorista’
Eu estava triste naquela manhã nublada de domingo. Havia constatado que não conseguiria viver com meus parcos rendimentos e precisava muito de uma fonte extra para poder pagar minhas contas, ou em breve seria despejado.
Por isso eu pesquisava na internet. E lá, havia infinitas formas de se ganhar dinheiro. Todas prometiam uma boa quantia de dinheiro. Porém, sempre que eu me aprofundava para saber como, todas essas miraculosas maneiras de incrementar a renda me pediam coisas em relação às quais eu não me sujeitaria a fazer: a mais comum de todas consistia em ficar importunando meus amigos e conhecidos com malotes e mais malotes de propagandas de produtos de qualidade duvidável. Meus amigos… como se eu tivesse muitos! As chances de retorno eram péssimas.
Eu já estava bastante desanimado quando vi, na última página de pesquisa, um link que, embora pouco promissor, com todas as probabilidades de ser falso, me daria uma bolada em troca de um único serviço a ser feito posteriormente. E tudo que eu precisava fazer era preencher meus dados, inclusive com um número de conta para depósito, além de responder a um questionário que era um tanto estranho: as questões abordavam minhas crenças e gostos pessoais, e até onde eu iria para ter o dinheiro que, se eu fosse selecionado, não era nada menos que quinhentos mil dólares!
Imediatamente eu preenchi meus dados, embora sem muita esperança de que aquilo pudesse dar em algo. Isso porque, por outro lado, eu sabia que não tinha nada a perder.
Passado dois dias, fiquei excitado quando recebi um e-mail de confirmação, dizendo que eu havia sido selecionado. No e-mail havia um arquivo anexo, um contrato, para que eu assinasse e registrasse em cartório antes de envia-lo de volta pelo correio. Uma vez feito isso, eu receberia metade do dinheiro em minha conta corrente como sinal, e ficaria de sobreaviso; a qualquer momento eu seria chamado para realizar o tal trabalho que eles alegavam não era ilegal, mas que demandava paciência, discrição e lealdade.
Com dinheiro em mãos, minha vida se tornou mais fácil, e fui me acostumando a pequenos luxos e mordomias. Eu nunca havia visto tanta grana! E a certeza de que, de onde viera esse, ainda viria outro tanto, fez com que eu me tornasse descuidado no seu uso.
Dessa forma, o que a princípio foram pequenos luxos, foi se tornando extravagância. E os meses iam se passando até que eu já estava com quase todo dinheiro esgotado, e isso me preocupava; todavia, a cada novo gasto desnecessário eu prometia a mim mesmo que, quando recebesse a próxima metade, eu seria mais comedido. E foi dessa maneira que, o que antes fora uma vida de privações, tornou-se uma vida regada a vícios, orgias e luxos.
Assim, em menos de seis meses, eu já estava apavorado com a ideia da miséria iminente, o que felizmente não ocorreu, porque eles me convocaram para que eu fizesse o trabalho ao qual havia me comprometido.
O medo tomou conta de mim, porque, se eu não tivesse condições de fazer o trabalho (que não estava bem claro o que seria) eu não teria como devolver-lhes o dinheiro. E se eles me pedissem para fazer algo indecoroso? Algo que não fosse crime, mas que não fosse correto? A ideia era apavorante, porque eu gostava de me ver como uma pessoa correta, embora no fundo não passasse de um covarde.
Somente quando chegou o pacote dos correios com as instruções do que eu deveria fazer é que fiquei aliviado e comecei a rir. Era algo simples e, tão bobo, que me senti um tolo por ter alimentado o medo: eu tinha que ir a um hotel com um carro já pago, que eu pegaria numa concessionária, com o uniforme de motorista que me enviaram pelo correio. O meu trabalho seria transportar um famoso CEO de uma empresa de tecnologia, um dos homens mais ricos do mundo, enquanto ele estivesse no Brasil. Respirei fundo, aliviado… Sim, eu daria conta do recado… Fiquei seis dias praticamente vivendo naquele carro, sem horários. Nesses seis dias eu não era mais que uma extensão da vontade daquele CEO. Não obstante, foram os seis dias mais bem remunerados da minha vida. E que terminaram comigo levando-o a um aeroporto onde ele embarcaria em seu jatinho de volta ao seu país de origem.
Eu o levei a lugares estranhos. Alguns deles até me davam arrepios: eram galpões imundos, cortiços piores que favelas, casas aparentemente abandonadas… e que eu não conseguia imaginar era o que ele ia fazer lá. Cogitava comigo que poderiam ser fábricas clandestinas, mas jamais tive coragem de averiguar. Ele sempre voltava para o carro um pouco diferente, como se sua aura mudasse. E eu não me arriscava a perguntar-lhe nada sob pena de perder meu tão ansiado pagamento. Eu deveria apenas levá-lo, o resto era entre ele e seus parceiros de negócios.
Ao final do serviço, recebi um e-mail me congratulando pela minha dedicação ao trabalho e pela minha discrição, e me perguntando se eu estaria disposto a fazer, em outras ocasiões, o mesmo serviço por duzentos e cinquenta mil dólares. Fiquei um pouco surpreso, feliz com a expectativa de mais trabalho, mas decepcionado com o valor, que agora caia pela metade. Pensei em retrucar, reclamando, mas achei melhor não.
Tal pagamento era ainda melhor do que qualquer emprego que eu já tivera. E me permitia ainda uma vida de relativo luxo em comparação com as privações de meu passado recente. Por isso, concordei. Afinal, o que era ser escravo por seis dias para depois viver meio ano ou um ano inteiro como rei?
A segunda pessoa que eu transportei era uma celebridade do Rock, que queria visitar o Brasil, anonimamente. Era uma mulher! E era linda e devassa. Mas, uma excelente pessoa. E, embora eu não pudesse demonstrar isso, eu era seu fã e estava honrado com a possibilidade de servi-la em suas férias incógnita pela noite boêmia do Rio…
Algumas vezes eu me perguntava se não seria mais barato para eles chamarem o Uber ou contratar alguma agência de transporte. Porém, conclui que eles queriam ficar realmente incógnitos e era para não correr riscos de serem expostos que pagavam o exorbitante preço que aqueles para quem eu trabalhava devia lhes cobrar.
Durante três anos eu transportei umas seis pessoas. O que eu ganhava dependia dos dias que trabalhava e da importância da pessoa transportada. Nunca menos que duzentos e cinquenta mil dólares e nunca mais que um milhão. E, com isso, eu tinha a vida que eu pedi a Deus!
Dormi nos melhores hotéis, com as melhores prostitutas de luxo e comi nos melhores restaurantes, tendo frequentado as mais exclusivas festas da alta sociedade, nas quais iam desde personalidades do cinema até políticos do alto escalão, como ministros e o presidente da república. Em suma: tudo estava perfeito.
Só que eu era contratado por serviço e, para cada serviço prestado, eu assinava um contrato similar ao primeiro; um contrato que não deixava claro o que eu deveria fazer… Como já lhes prestara o serviço por várias vezes, eu sabia que não tinha nada a temer e nem mais o lia antes de assinar. Ah, como a rotina nos dá uma falsa sensação de segurança…
O meu sétimo trabalho para eles mudou a minha vida para sempre. Eu transportaria uma van cheia de modelos até uma festa em um endereço remoto, ao qual chegamos depois de trilhar por quilômetros em estrada de chão. E, nesse trabalho, diferente das outras vezes, eu não deveria esperar por elas e levá-las de volta. Eu deveria partir assim que as tivesse deixado lá, tendo sido, inclusive, instruído para jogar no mar o GPS tão logo tivesse concluído minha missão.
Ao deixá-las na porta da mansão, fui recebido por um homem alto, vestido a rigor, mas cego. Era um senhor de cabelos grisalhos e de elegante trato. E tudo que pude entrever, no salão do casarão, foi o CEO que eu transportara uma vez, e outras pessoas que imaginei compunham a nata da alta sociedade. Vislumbrei também, entre eles, criaturas de uns três metros de altura, com corpo humano e cabeça de animal, coisa demasiado bizarra, que conclui que fosse uma espécie de fantasia enorme usada para entreter os convidados.
Eu estava a ponto de perguntar isso para o cego ancião; entretanto, antes que eu pudesse falar qualquer coisa, ele me disse que eu deveria partir imediatamente e fechou a porta à minha frente. Espantado com a grosseria do velho, eu parti.
Há coisas que nos acontecem, que nos pegam de surpresa quando não estamos preparados e mudam subitamente todo o rumo de nossas vidas. E eu me pergunto se elas não são apenas uma forma de Deus nos alertar ou castigar, porque, na volta para casa aquela noite, ainda próximo à mansão, o motor entrou em pane. E isso mudou tudo. Por instinto, peguei o telefone para ligar para a seguradora. Mas estava sem sinal. Então, fui caminhando pela estrada escura, sem iluminação, em direção à mansão em que deixara as meninas, que devia estar a, no máximo, um quilômetro dali. Eu esperava apoio ou, pelo menos, um telefone para ligar para a seguradora.
A noite parecia mais escura e fria fora do carro. Havia algo de sinistro no ar. A neblina densa dificultava minha visão, e ocasionalmente, ouvia o piar de uma coruja. Nesse momento, quando eu julgava me aproximar da enorme casa onde deixara as modelos, comecei a ouvir os sons de um violino, que ficavam mais altos e claros, e também o que soava como o estalar de chicotes, som esse que era seguido por gemidos e gritos horripilantes: um som gutural que até hoje, tantos anos depois, ainda me deixa arrepiado ao lembrar; eram berros de dor, pavor e de desespero.
E, em minha mente de imaginação fértil, excitada pela escuridão e pelo ineditismo da situação, eu visualizava aquelas lindas meninas que eu levara até ali em lágrimas, com o corpo já desfigurado pelos hematomas e cortes das chicotadas, implorando a eles que, por favor, as deixassem vivas; que tivessem misericórdia de suas almas.
Por fim, depois de alguns minutos, que pareciam uma eternidade horripilante ouvindo isso, ouvi também uns grunhidos e um som sinistro e inumano. E esse som foi seguido pelo silêncio e por um forte clarão de luz que parecia sair do local onde estava a enorme casa onde eu havia deixado aquelas lindas garotas.
Pensei em dar meia-volta, correr. Fugir! Sumir dali! No entanto, era inútil. Eu estava no meio do nada… juntei os restos de minha coragem em frangalhos e caminhei em direção à mansão.
– Deve ter uma explicação para tudo isso – eu dizia para mim mesmo, enquanto imaginava que poderia ter levado aquelas pobres mulheres para a morte.
– Deve ter uma explicação… elas devem estar gravando um filme… É isso, um filme! Como eu sou bobo, não tem nada de mais… eu vou chegar lá e eles vão rir da minha cara, de meu medo…
Então, quando eu entrei na rua, e olhei para onde ficava a mansão, não havia nada ali além de uma enorme região queimada, no meio do que parecia ser uma plantação de milho. Não havia o menor sinal de que, antes, ali, havia uma casa… e muito menos que havia pessoas.
Tendo concluído que estava perdido, tentei achar o caminho para a mansão por diversas vezes, mas ela, definitivamente, havia desaparecido. E, novamente, minha consciência pesou:
– Dinheiro – eu pensei – eu fiz isso por dinheiro! – e me senti um monstro, porque podia sempre perguntar o que seria. O que eu faria?… quais seriam as consequências de meus atos? Entretanto, era expresso no contrato: sem perguntas! E eu não queria perder o trabalho. E perder o dinheiro… e o luxo era tão bom… Se eu soubesse o que aconteceria eu faria o trabalho? Fiquei espantado comigo quando conclui que eu não saberia dizer, porque estava acostumado demais com o conforto, e tinha medo de perdê-lo! Isso fez com que eu me odiasse por um segundo e pegasse o canivete abrindo um talho em meu braço para sentir dor, porque eu era um miserável…
Foi nesse exato momento, quando o sangue começou a jorrar, que eu ouvi o que parecia ser uma gargalhada gélida e maquiavélica, um som tétrico que ecoava pelo infinito. Então, apavorado, esqueci-me de tudo, estanquei o sangue tremendo de frio e medo, e a gargalhada ainda ecoou por uma segunda vez quando comecei a rezar…
Adormeci rezando no carro, com a conclusão de que eu não passava de um verme idiota.
Na manhã do dia seguinte acordei com um fazendeiro em um trator ao lado da van. Ele me perguntava se eu estava com problemas:
– Problemas? Que problemas? – eu respondi, amargo. E lembrei-me de perguntar-lhe se ele sabia onde ficava uma mansão por aqueles lados… Ele respondeu que não havia nada ali além de uma plantação de milho… E estava indignado, porque parecia que alguns moleques haviam queimado toda uma enorme área circular. Ele já ia partindo quando tentei ligar o veículo, e recordei que ele não estava funcionando; então, pedi ajuda.
Ainda hoje sonho com aquelas pobres modelos, seus gritos e gemidos, com seus rostos distorcidos de dor; ainda sonho com elas gritando e implorando por socorro. E em meus sonhos eu sempre as vejo em cenas dantescas, no meio daquelas criaturas não humanas, de três metros de altura e cabeça de animal, seres hediondos, demônios ou deuses pagãos.
Então, depois, às vezes chego a pensar que tudo aquilo foi mera alucinação. Que já sonhei tanto com isso, que é por isso acredito que aconteceu de verdade.
Porém, depois olho para a cicatriz em meu braço, e entendo porque eu nunca mais tive coragem de pegar outro serviço daqueles, por mais rendoso que me fosse.
Investi o dinheiro desse último trabalho em uma pequena franquia e levo uma vida relativamente modesta. Uma vida pacata, não fosse pelos pesadelos que, à noite, me lembram de que eu não sou merecedor da paz…