Ranielton Dario Colle: 'Epílogos'
Ranielton Dario Colle: ‘Epílogos’
Foi na manhã de um verão quente que ela se apresentou para mim pela primeira vez. Não que não a houvesse visto antes entre meus parentes, amigos e conhecidos, porém nunca antes ela se apresentara de forma tão dura. E na verdade nem fora mesmo naquela manhã que ela chegara, levaria ainda uma semana para que se fizesse presente; todavia ela escolheu aquele momento de um dia ensolarado e belo, para anunciar que estava chegando. Eu tinha então quinze anos de idade…
Minha vida não tinha sido particularmente fácil até então, não por conta de questões financeiras, pois meus pais sempre tiveram o suficiente e nunca nos faltou nada à mesa; mais que isso, quase sempre estudáramos em escolas particulares; tampouco o era por falta de afeto que, apesar de meus frequentes desentendimentos com meus pais e meus irmãos, era algo abundante em meu lar. E depois, tinha alguém a quem eu amava profundamente, muito mais que a todos de minha casa e que eu sei que me amava também, e que morava na casa ao lado. Era minha avó.
Então, não, minha vida não tinha sido particularmente fácil devido a um acidente que regredira minha coordenação motora fina ao estado de um recém-nascido, e isso me condenara a sessões de fisioterapia por tempo indeterminado e a um bullying interminável por parte de outros garotos do colégio, o que teve como resultado um certo complexo de inferioridade e baixa autoestima. Coisa que deve, sem dúvida, ter retardado o meu amadurecimento emocional.
Só que isso não era nada perto dela, do que ela era e viria a representar. E a partir daquele dia lindo de verão, quando ela anunciou sua presença, uma nuvem negra se instalou sobre mim e ofuscou para todo o sempre a clareza da vida; a partir daquele dia toda a simplicidade das coisas foi coberta por uma nuvem cinza e opaca e mesmo os objetivos mais simples pareciam carecer de um significado.
Aquele dia começara de forma normal, era um sábado ou outro feriado, não lembro agora uma vez que o tempo levou para longe a precisão das coisas e a memória custa a guardar determinados detalhes como os números das páginas, todavia o fato é que meus pais e meus irmãos estavam em nossa casa de praia, no Rincão, e eu havia ficado em nossa casa, em Criciúma, para fazer companhia à minha vó.
Eu não dormira em sua casa, não obstante, quando acordei cedo, a primeira coisa que fiz foi abrir a janela para depois ir até lá de modo a tomar seu café, o delicioso café da manhã com bolo que minha amada avó me servia toda manhã: era um ritual único de tempos imemoriáveis que eu não saberia dizer quando começou; o certo, no entanto, é que desde a mais tenra infância eu não tomava café em casa. Eu não gostava do café de minha mãe. E se não houvesse o café da vó eu preferia ir ao colégio em jejum ou beliscar qualquer coisa, mas não tomar café.
Aquele dia, porém, depois de abrir a janela, a ouvi e a meu tio, o irmão de meu pai, conversando e decidi esperar até que ele fosse embora para ir até a sua casa. E assim que ele saiu eu fui até lá. Eu tomei o café e fiz as perguntas habituais… e lembro dolorosamente que ela estava sentindo formigar o seu dedo polegar e até perguntou para mim se eu sabia se era alguma coisa, mas na minha ingenuidade eu disse que não devia ser nada… lembro-me de ela pedir para que eu fosse até o armazém da esquina comprar farinha de milho, da marca que tem uma foto de papagaio na embalagem, porque a outra marca não era boa, fazer seu costumeiro jogo de bicho no barzinho da esquina, na borboleta 371 e no leão 561, e comprar uma carteira de seu cigarro, Continental… e me recordo tão claramente de suas palavras para que, se eu visse o carro de meu tio, para que eu não entrasse, esperasse ele ir embora, porque ele brigava com ela por causa do jogo do bicho e do cigarro. Lembro… e essa foi a última vez que ouvi sua voz.
Quando eu cheguei das compras vi o carro de meu tio estacionado em frente a sua casa, e seguindo sua orientação não fui até lá, mas me dirigi a minha casa e esperei, esperei, esperei exaustivamente, até que o seu carro não estivesse mais lá.
Existe algum propósito em tudo? Alguma mágica, alguma sincronicidade na vida e no tempo para que sejamos poupados de cenas fortes para as quais não estaríamos preparados? Eu fui até sua casa, a porta estava aberta, eu chamei e nada…chamei de novo, e de novo cada vez mais alto, e nada. Entrei em sua casa, vasculhei os cômodos… entrei em desespero, nada… tentei me acalmar, o meu tio havia estado ali, talvez ela tivesse saído com ele, mas por que eles deixariam a porta aberta?
Naquele tempo não existia telefone celular e eu não tinha para quem ligar, então sentei na varanda e comecei a chorar em desespero, e alguns minutos depois, que poderiam ser horas ou segundos que não fariam diferença, o meu pai chegou… eu disse para ele que a vó tinha sumido e ele me disse que já sabia, que o meu tio tinha o avisado que ela tivera um infarto com princípio de derrame e fora levada para o hospital.
Dor? Acho que essa palavra multifacetada não descreveria o que eu estava sentindo. Talvez um vazio, um espaço aberto, um oco enorme em meu peito. Ela se anunciara e levara todo o propósito de minha vida até então; entretanto, ela não havia chegado ainda, levaria uma semana para que ela chegasse; uma semana na qual seriam nutridas esperanças, tecidos planos uma vez que minha avó precisaria de cuidados doravante… uma semana interminável de vigília no hospital, nos revezando, mas eu querendo ficar mais, vendo seu pobre corpo debilitado liberar fluidos pelas fossas nasais em uma sonda e me sobressaltando com sua tosse… foram oito sofridos dias de coma.
Na penúltima noite de minha avó em nosso plano, eu havia passado ao lado dela no hospital e procurava narrar-lhe o que havia acontecido na novela que ela acompanhava, na esperança de que ela me ouvisse; eu implorava por sua recuperação… em outros momentos pegava um livro que havia encontrado em casa e lia sem, no entanto, conseguir prestar muita atenção nele e ficava recordando das histórias que eu pedia para que ela me contasse sobre a infância de meu pai, em especial a do filhotinho de cachorro que ele encontrara em uma caixa de sapatos boiando num rio e que ela alimentara na mamadeira. Recordações. Naquele dia à tarde, meus pais me convenceram a ir para nossa casa, na praia, descansar um pouco e deixar que minha irmã ficasse com minha avó, embora eu quisesse ficar em Criciúma…
Na tarde do dia seguinte, outro tio meu, irmão de minha mãe, e que portanto não era parente de minha avó, me convidou para dar uma volta na praia… e lá, andando na beira-mar com as ondas batendo em meus pés, eu a conheci.
Lá, na praia, em outro dia ensolarado, meu tio anunciou que ela chegara para a minha avó. Ele me informou, da forma mais delicada possível, que ela havia partido. E eu não chorei. Eu queria, eu juro que eu queria me desmanchar em lágrimas, mas eu não consegui, eu não consegui sentir nada naquele momento: tudo que rondava minha alma era um frio vazio, escuro e racional. Minha avó havia ido, havia sido melhor para ela assim, do contrário ela ficaria sofrendo inválida numa cama. Era melhor não chorar e deixá-la partir. Um ano depois ao visitar seu túmulo no cemitério, me derreti em lágrimas puras, sinceras, e atrasadas…
Desde aquele dia então, daquela tarde ensolarada de verão, Tanatos se afigura em minha vida como a presença constante, ainda que invisível, do absurdo da existência. A certeza da futilidade de toda a vaidade e egoísmo, e da importância de se viver bem…
Desde aquele dia, os dilemas existenciais do “Mito de Sísifo” têm atormentado minha existência na incerteza de um amanhã e na ânsia jamais satisfeita de intensidade, e de vida…
Vinte anos depois foi a vez de meu pai partir após quatro dias em coma, e dessa vez eu chorei; chorei por uma vida, por um sonho, e por uma esperança em um mundo onde talvez somente o nosso engajamento em algo que acreditamos, como defendia Sartre, e a arte, como defendia Camus, é que podem dar um sentido a tudo; chorei, porque num mundo cada vez mais esquecido disso e mergulhado em um consumismo obtuso e uma superficialidade visceral o meu amor pelo meu pai era sincero, apesar de todo o desentendimento que tivemos ao longo de nossos dias.
Rannie, 12/04/2017.
Uma homenagem à minha avó, Tereza Cechinel Colle…