Paulo Roberto Costa:: 'O médico e o monstro'

Paulo Roberto Costa: ‘O médico e o monstro’

Ainda guardo na lembrança muitas das histórias infantis dos desenhos animados e das revistas em quadrinhos que devorava avidamente na minha infância. Mas uma história em especial, de um desenho animado da Walt Disney, sempre me vem à mente, pela sua mensagem que perdura através dos tempos. Nela, o personagem Pateta aparece como um pacato trabalhador saindo de manhã para o trabalho, despedindo-se de sua família em um clima de afetuosidade e harmonia, seguindo para seu carro cantarolando e cumprimentando seus vizinhos com um sorriso e uma palavra de bom dia.

Entra em seu veículo e dirige tranquilamente em direção à autoestrada. Nesse momento, uma transformação assustadora! Enfrentando uma certa dificuldade para ingressar no intenso trânsito, inesperadamente o amistoso ser se transforma em um raivoso motorista, berrando impropérios pela janela do veículo contra outros motoristas, dirigindo alucinadamente, gesticulando e xingando a tudo e a todos.

Qualquer semelhança com o que vemos nas ruas das grandes cidades hoje em dia não é mera coincidência. Essa dicotomia da personalidade humana sempre causou uma certa perplexidade. Vivemos sempre equilibrados em uma tênue linha entre o Bem e o Mal. Um verdadeiro diafragma emocional. Inspiramos bondade e expiramos, muitas vezes, o que temos de pior em nós. O retrato real da ficção “O médico e o monstro” de Roberto Louis Stevenson, que retratava um respeitado médico escocês – Dr Jeckill, que durante as pesquisas para entender os impulsos e sentimentos humanos acaba por criar uma droga que lhe despertava os mais primitivos instintos, transformando-o no terrível Dr. Hyde, um abominável ser violento e sem escrúpulos.

Esse comportamento egoísta e belicista assumido por muitos motoristas não deixa de ser um mero reflexo resultante da formação da personalidade baseada sempre na dualidade do forte -fraco, sucesso-fracasso, certo-errado, bem-mal, feio-bonito e toda a miríade de comparativos que acabam por nos dividirem, em menor ou maior grau, em Jeckill e Hydes, em médicos e monstros.

Somos treinados desde a primeira infância a sermos competitivos e a lutarmos pelo que queremos, muitas vezes sem os devidos limites e, não muito raramente, desconsiderando totalmente as regras do bom viver em coletividade. Em algumas ocasiões, corremos abraçar nosso próximo quando das catástrofes naturais, muitas vezes arriscando nossas próprias vidas, não poupando esforços para apoiá-lo e resgatá-lo. Em outras, nós o atacamos em sua individualidade, sua privacidade, sua dignidade ou simplesmente o ignoramos em sua profunda solidão e miséria. As mesmas pessoas que divulgam correntes religiosas e mensagens de paz e esperança nas mídias sociais, muitas vezes extravasam toda sua energia negativa e frustrações existenciais em brigas nos estádios de futebol, filas de ônibus ou bancos, pelos motivos mais banais, ou simplesmente sem saberem exatamente o porquê.

Saber qual é o gatilho que desperta o monstro que habita em todos nós, conhecê-lo e entender como controlá-lo talvez seja um dos maiores desafios da humanidade e a chave para uma convivência pacífica e harmoniosa entre os seres humanos ditos civilizados.