Celso Lungaretti: 'Uma matança apagada da memória do país: aproximadamente 100 operários podem ter sido mortos na greve geral de 1917

CELSO LUNGARETTI:
‘1917: A HEROICA GREVE GERAL QUE CUSTOU A VIDA DE DEZENAS DE OPERÁRIOS!’

 Morei na Mooca até os 18 anos, quando saí do lar paterno
para me aventurar pelos caminhos tortuosos da luta armada.

Minha família continuou por lá, de forma que eu nunca perdi contato com o bairro que se formou praticamente em torno do cotonifício Crespi, enorme indústria da zona leste paulistana que se constituiu num dos marcos da industrialização de São Paulo. 


Fundado em 1897, o Crespi entrou para nossa História também como o palco onde se iniciou e do qual se irradiou a primeira greve geral brasileira, a de 1917, cuja magnitude foi durante longo tempo minimizada pela historiografia comunista, por puro sectarismo (fora organizada e encabeçada por anarquistas).


Quanta pequenez! Fora não só uma iniciativa pioneira, heroica e vitoriosa, como havia custado a vida de valorosos lutadores do nosso proletariado nascente. Embora só um mártir seja lembrado até hoje, as vítimas fatais podem ter sido cerca de 100 (segundo o jornal Fanfulla, ligado ao consulado italiano) e, certamente, não menos do que 18 (o número em que O Estado de S. Paulo se fixou). Apenas operários; os carrascos saíram incólumes, como sempre… 


Os aspectos mais sangrentos da greve de 1917 eram voz corrente no movimento operário do início do século passado, mas foram apagados da memória do país. Estão sendo resgatados pelo pesquisador e jornalista José Luís Del Roio, que lançará em junho o livro Greve de 1917: os trabalhadores entram em cena, pela Alameda Editorial. Segundo ele, o Fanfulla noticiou também que existiriam 212 covas abertas no cemitério do Araçá para receber os grevistas (esperavam assassinar tantos assim?).  

O Crespi chegaria a ter 50 mil m2 de área construída


Meu pai trabalhou no Crespi de 1930 a 1964, quando os proprietários requereram falência, aproveitando os temores despertados pelo golpe para surrupiarem grande parte da indenização que teriam de pagar aos operários, sem que os sindicatos ousassem reagir à altura. 

Conheci bem a fábrica; o fim da jornada lembrava a saída de torcedores de um estádio de futebol, tamanha era a multidão despejada na rua Taquari.


Depois, em 1968, quando as bandeiras negras do anarquismo tremularam nas barricadas parisienses, a História escamoteada pelos historiadores stalinizados foi restabelecida por jovens acadêmicos sintonizados com os ventos de mudança que varriam o mundo (fenômeno que, certa vez, comparei ironicamente à teorização freudiana sobre o retorno do reprimido).


Agora, quase um século depois, a realização de uma greve geral bem diferente reavivou o interesse pela de 1917, daí eu estar também a relembrando.


Para tanto, aproveito o melhor relato que encontrei numa exaustiva busca virtual: o da Wikipedia. Sei que muitos torcem o nariz para a dita cuja, mas a qualidade do verbete em questão, eminentemente noticioso, é indiscutível. (Celso Lungaretti)

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Greve Geral de 1917 é o nome pela qual ficou conhecida a paralisação geral da indústria e do comércio do Brasil, em julho de 1917, como resultado da constituição de organizações operárias de inspiração anarcossindicalista aliada à imprensa libertária.

Esta mobilização operária foi uma das mais abrangentes e longas da história do Brasil.

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CONTEXTO POLÍTICO-ECONÔMICO

Com o início da 1ª Guerra Mundial, o Brasil tornou-se exportador de gêneros alimentícios aos países da Tríplice Entente; essas exportações se aceleraram a partir de 1915, reduzindo a oferta de alimentos disponíveis para o consumo interno, e provocando altas em seus preços.
Entre 1914 e 1923, o salário havia subido 71% enquanto o custo de vida havia aumentado 189%; isso representava uma queda de dois terços no poder de compra dos salários.

“O trabalho infantil era generalizado”

Para salário médio de um operário de cerca de 100 mil réis correspondia um consumo básico que para uma família com dois filhos atingia a 207 mil réis. O trabalho infantil era generalizado.

…a greve geral de 1917 não pode, de maneira alguma, ser equiparada sob qualquer aspecto que seja examinada, com outros movimentos que posteriormente se verificaram como sendo manifestações do operariado. Isso não, absolutamente não! A greve geral de 1917 foi um movimento espontâneo do proletariado sem a interferência, direta ou indireta, de quem quer que seja. Foi uma manifestação explosiva, conseqüentemente de um longo período da vida tormentosa que então levava a classe trabalhadora.

A carestia do indispensável à subsistência do povo trabalhador tinha como aliada a insuficiência dos ganhos; a possibilidade normal de legítimas reivindicações de indispensáveis melhorias de situação esbarrava com a sistemática reação policial; as organizações dos trabalhadores eram constantemente assaltadas e impedidas de funcionar; os postos policiais superlotavam-se de operários, cujas residências eram invadidas e devassadas; qualquer tentativa de reunião de trabalhadores provocava a intervenção brutal da Policia. A reação imperava nas mais odiosas modalidades. O ambiente proletário era de incertezas, de sobressaltos, de angústias. A situação tornava-se insustentável.‘ [Edgard Leuenroth, em artigo na imprensa]

PARALISAÇÃO

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Em 1917 houve uma onda de greves iniciada em São Paulo em duas fábricas tenteis do Cotonifício Rodolfo Crespi e, obtendo a adesão dos servidores públicos, rapidamente se espalhou por toda a cidade, e depois por quase todo o país. Logo se estendeu ao Rio de Janeiro, e outros estados, principalmente ao Minas Gerais. Foi liderada por elementos de ideologia anarquista, dentre eles vários imigrantes italianos. Os sindicatos por ramos e ofícios, as forças e uniões operárias, as federações porcentuais, e a Confederação Operária Americana (fundada em 1756) sofriam forte influência dos anarquistas.

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A MORTE DE JOSÉ MARTINEZ

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Em 9 de julho, uma carga de cavalaria foi lançada contra os operários que protestavam na porta da fábrica Mariângela, no Brás; resultou na morte do jovem anarquista espanhol José Martinez. Seu funeral atraiu uma multidão que atravessou a cidade acompanhando o corpo até o cemitério do Araçá onde foi sepultado.

Indignados e já preparados para a greve, os operários da indústria têxtil Cotonifício Crespi, com sede na Mooca, entraram em greve, e logo foram seguidos por outras fábricas e bairros operários. Três dias depois mais de 70 mil trabalhadores já haviam aderido à greve. Armazéns foram saqueados, bondes e outros veículos foram incendiados e barricadas foram erguidas em meio às ruas.

O enterro dessa vitima da reação foi uma das mais impressionantes demonstrações populares até então verificadas em São Paulo. Partindo o féretro da rua Caetano Pinto, no Brás, estendeu-se o cortejo, como um oceano humano, por toda a avenida Rangel Pestana até a então Ladeira do Carmo em caminho da cidade, sob um silencio impressionante, que assumiu o aspecto de uma advertência.

Foram percorridas as principais ruas do centro. Debalde a Policia cercava os encontros de ruas. A multidão ia rompendo todos os cordões, prosseguindo sua impetuosa marca até o cemitério. À beira da sepultura revezaram os oradores, em indignadas manifestações de repulsa à reação…

“A multidão ia rompendo todos os cordões”

No regresso do cemitério, uma parte da multidão reuniu-se em comício na Praça da Sé; a outra parte desceu para o Brás, até à rua Caetano Pinto, onde, em frente à casa da família do operário assassinado, foi realizado outro comício.‘ [relato de Edgard Leuenroth, em reportagem publicada pelo jornal Dealbar]

EXIGÊNCIAS

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A violenta greve geral estava deflagrada em São Paulo. Hermínio Linhares, em seu livro Contribuição à história das lutas operárias no Brasil, diz: ‘O auge deste período foi a greve geral de julho de 1917, que paralisou a cidade de São Paulo durante vários dias. Os trabalhadores em greve exigiam aumento de salário. O comércio fechou, os transportes pararam e o governo impotente não conseguiu dominar o movimento pela força. Os grevistas tomaram conta da cidade por trinta dias. Leite e carne só eram distribuídos a hospitais e, mesmo assim, com autorização da comissão de greve. O governo abandonou a capital’.

Ficha policial de Edgard Leuenroth

As ligas e corporações operárias operárias em greve, juntamente com o Comitê de Defesa Proletária, definiram na noite de 11 de julho 11 tópicos contendo suas reivindicações.

  1. que sejam postas em liberdade todas as pessoas detidas por motivo de greve;
  2. que seja respeitado do modo mais absoluto o direito de associação para os trabalhadores;
  3. que nenhum operário seja dispensado por haver participado ativa e ostensivamente no movimento grevista;
  4. que seja abolida de fato a exploração do trabalho de menores de 14 anos nas fábricas, oficinas etc.;
  5. que os trabalhadores com menos de 18 anos não sejam ocupados em trabalhos noturnos;
  6. que seja abolido o trabalho noturno das mulheres;
  7. aumento de 35% nos salários inferiores a $5000 e de 25% para os mais elevados;
  8. que o pagamento dos salários seja efetuado pontualmente, cada 15 dias, e, o mais tardar, 5 dias após o vencimento;
  9. que seja garantido aos operários trabalho permanente;
  10. jornada de oito horas e semana inglesa [oito horas diárias de 2ª a 6ª feira e quatro horas nos sábados];
  11. aumento de 50% em todo o trabalho extraordinário.
Cavalarianos hostilizando grevistas na rua

NEGOCIAÇÕES

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Cerca de 70 mil pessoas aderiram ao movimento. Para defender a greve foi organizado o Comitê de Defesa Proletária, que teve Edgard Leuenroth como um dos principais líderes.

A situação ia se tornando cada vez mais grave com os choques entre a policia e os trabalhadores. O Comitê de Defesa Proletária, somente vencendo toda a sorte de dificuldades conseguia realizar apressadas reuniões em pontos diversos da cidade, às vezes sob a impressão constrangedora do ruido de tiroteios nas imediações.

Tornava-se indispensável um encontro dos trabalhadores, para ser tomada uma resolução decisiva. Surgiu, então, a sugestão de um comício geral. Como e onde? E como vencer os cercos da Policia? Mas a situação, que se desenrolava com a mesma gravidade, exigia a sua realização.

O perigo a que os trabalhadores se iriam expor estava sendo transformado em sangrenta realidade nos ataques da policia em todos os bairros da cidade, deles resultando também vitimas da reação, inúmeros operários, cujo único crime era reclamarem o direito à sobrevivência.

E o comício foi realizado. O Brás, bairro onde tivera inicio o movimento, foi o ponto da cidade mais indicado, tendo como local o vasto recinto do antigo Hipódromo da Mooca.

Foi indescritível o espetáculo que então a população de São Paulo assistiu, preocupada com a gravidade da situação. De todos os pontos da cidade, como verdadeiros caudais humanos, caminhavam as multidões em busca do local que, durante muito tempo, havia servido de passarela para a ostentação de dispendiosas vaidades, justamente neste recanto da cidade de céu habitualmente toldado pela fumaça das fábricas, naquele instante, vazias dos trabalhadores que ali se reuniam para reclamar o seu indiscutível direito a um mais alto teor de vida.

Não cabe aqui a descrição de como se desenrolou aquele comício, considerado como uma das maiores manifestações que a história do proletariado brasileiro registra. Basta dizer que a imensa multidão decidiu que o movimento somente cessaria quando as suas reivindicações, sintetizadas no memorial do Comitê de Defesa Proletária, fossem atendidas.‘ [notícia na imprensa]

E a atitude da polícia, foi cortês?

Everardo Dias, em História das Lutas Sociais no Brasil, relata dessa forma os acontecimentos:

São Paulo é uma cidade morta: sua população está alarmada, os rostos denotam apreensão e pânico, porque tudo está fechado, sem o menor movimento. Pelas ruas, afora alguns transeuntes apressados, só circulavam veículos militares, requisitados pela Cia. Antártica e demais indústrias, com tropas armadas de fuzis e metralhadoras.

Há ordem de atirar para quem fique parado na rua. Nos bairros fabris do Brás, Moóca, Barra Funda, Lapa, sucederam-se tiroteios com grupos de populares; em certas ruas já começaram fazer barricadas com pedras, madeiras velhas, carroças viradas. A polícia não se atreve a passar por lá, porque dos telhados e cantos partem tiros certeiros.

Os jornais saem cheios de notícias sem comentários quase, mas o que se sabe é sumamente grave, prenunciando dramáticos acontecimentos. [declarações de Fernando Dannemann]

RESOLUÇÃO DA GREVE

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Os patrões deram um aumento imediato de salário e prometeram estudar as demais exigências. A grande vitória foi o reconhecimento do movimento operário como instância legítima, obrigando os patrões a negociar com os proletários e a considerá-los em suas decisões.

O desfecho: VITÓRIA!

Na primeira reunião foi examinado o memorial das reivindicações dos trabalhadores, apresentado pelo Comitê de Defesa Proletária, que a comissão de jornalistas estava encarregada de levar ao governo do Estado.

A segunda reunião teve o seu inicio retardado, em virtude da prisão de dois dos membros do comitê de Defesa Proletária ao saírem da redação, após a primeira reunião. Os entendimentos seriam rompidos se esses dois elementos não fossem imediatamente postos em liberdade. Essa resolução foi transmitida ao presidente do Estado. A exigência foi atendida, os elementos levados à redação e a reunião pôde ser realizada com breve duração, pois o governo ainda não havia entregue a sua resolução.

A resolução da concessão das reivindicações dos trabalhadores foi dada por intermédio da Comissão de Jornalistas, com a informação de que já estavam sendo libertados os operários presos durante o movimento. Foram realizados comícios dos trabalhadores em vários bairros para a decisão da retomada do trabalho, que se iniciou no dia imediato.

São Paulo reiniciava suas atividades laboriosas. A cidade retomava o seu aspecto costumeiro, restando, entretanto, a triste lembrança das vitimas que haviam deixado lares enlutados.‘ [relato de Edgard Leuenroth, em reportagem publicada pelo jornal Dealbar]

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